Juízes prestam contas à sociedade quando cumprem a Constituição, não quando a ignoram
Dentre as várias novidades que o julgamento do mensalão trouxe, a mais inusitada é a noção de fatiado, até então desconhecida no processo penal.
Diante da forma quase virulenta com que foi repelido o desmembramento em relação a quem não tinha foro privilegiado, supunha-se que a ideia fundamental era prestigiar a inteireza do julgamento e a integridade de suas decisões.
Mas logo que se deram início às sessões com o voto do relator Joaquim Barbosa, começou a vingar a ideia dos fatiamentos.
A princípio como estratégia para permitir que um ministro pudesse participar de parte do julgamento de alguns réus (mesmo aposentando-se antes do término), depois para separar condenações e penas e, então, para a execução parcial da condenação, fragmentando-se de forma inédita o trânsito em julgado.
Por fim, o que se assistiu foi o fatiamento dos próprios mandados de prisão oriundos de uma mesma decisão –alguns expedidos no meio do feriado, como se supunha de máxima urgência, e outros ainda sem previsão.
Quando do julgamento dos embargos infringentes, houve fortíssima pressão da imprensa sobre os ministros que os aceitavam, com exacerbadas manifestações de repúdio à propalada impunidade.
O decano Celso de Mello, por exemplo, sofreu nada menos que um lichamento moral, ainda que suas considerações, ao final, não tivessem sido contraditadas seriamente por um único jurista.
Mas antes que esses próprios embargos “de impunidade” pudessem ser julgados, o STF resolveu dar a partida para uma espécie de execução de penas incertas –o que deve, como em outros passos do processo, provocar novas e acirradas discussões mais adiante.
A ansiedade pode causar uma regressão de regime sem nenhuma falta ou até, em razão do tempo, o efeito inverso de se anular por completo o cumprimento de pena em regime fechado, determinado pelo acórdão.
É certo que diante da noção de efetividade do provimento judicial, juízes e tribunais devem estar sempre atentos a não produzir resultados que jamais se cumpram.
Mas a recorrência ao “sentimento de impunidade”, que se afirma tão presente no imaginário social, não serve de álibi para a supressão do processo ou de quaisquer de suas garantias.
Nenhum afago na consciência social pode sobrepujar o direito ao cumprimento da pena –e nada além dele.
Nada que seja desproporcional, excessivo ou que fira a dgnidade humana pode ser considerado punição justa.
Juízes prestam contas à sociedade quando cumprem a Constituição, não quando a ignoram, ainda que para atender clamores populares. Isto porque a Constituição existe fundamentalmente para nos proteger, ainda que muitas vezes de nós mesmos.
Se por um lado é inequívoco que réus condenados em um regime não devem ser obrigados a suportar prisão em regime mais gravoso, nem que seja por um único dia, também é certo que essa infringência se tornou absurdamente rotineira para milhares de presos de nosso sistema, que costumam aguardar no fechado até que vagas sejam criadas no semiaberto.
Curiosamente, e apesar da notória superlotação dos abarrotados presídios brasileiros, sempre acima de suas capacidades físicas, neles ninguém deixa de ser preso por falta de vaga.
No regime fechado, tem prevalecido a regra de que “sempre cabe mais um” –inclusive para aqueles que penam esperando a transferência ao local adequado.
Se os desvios de execução que estão sendo apontados servissem ao menos para forçar o cumprimento generalizado da lei, o julgamento poderia provocar algum reflexo sensível no sistema penitenciário brasileiro.
Afinal, se é algo que não se pode fatiar é a própria Constituição.
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