….a prisão das mulheres….

 
 
 
 
Livro de Bruna Angotti analisa surgimento dos presídios
femininos
 
 
 
A campanha “Estou presa, continuo mulher” (doação de
roupas íntimas e absorventes a mulheres em situação de prisão) revelou o
descaso do Estado com a saúde das detentas e descortinou os graves problemas
causados pela enorme expansão do encarceramento feminino, em que se perpetua da
criminalização da pobreza.
Com o enrijecimento das leis sobre entorpecentes, enfim, a
questão deixou de ser periférica no sistema penitenciário, já que mulheres são
parte expressiva do exército de funcionários da microtraficância.
Trata-se de uma ótima oportunidade para conhecer a
monografia de Bruna Angotti: “Entre
as Leis da Ciência, do Estado e de Deus (o surgimento dos presídios femininos
no Brasil) Ed. IBCCrim”.
Não faltam boas referências acadêmicas à obra, que foi
fruto de dissertação de mestrado aprovada na área de Antropologia Social da USP
e ainda venceu o concurso de monografias do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais. Mas o texto é fluente e não cai no academicismo que impeça a leitura
pelo leigo.
Acompanhado de uma profunda pesquisa histórica no interior
do sistema penitenciário, Bruna demonstra como a pretendida reeducação, de
fundo moralista, se antagonizava com as necessidades sociais –preparar a mulher
para a vida doméstica no exato momento de uma expansão fabril e aumento da participação
feminina no mercado de trabalho. E como a ausência de enfrentamento da
vulnerabilidade vem contribuindo até hoje para frustrar a reinserção social.
O livro enfoca preferencialmente as décadas de 1930 e 40,
quando do surgimento dos primeiros presídios femininos no país (Reformatório de
Mulheres em Porto Alegre, 1937; Presídio Feminino em São Paulo, 1941; e
Penitenciária do Distrito Federal, no Rio, em 1942), relatando o esforço dos
penitenciaristas em produzir uma certa humanização nos cárceres, que
acompanhasse a modernidade científica
da época.
Esse é também o momento de criação do novo Código Penal,
no qual se produz o encontro de duas tendências aparentemente contrapostas,
como o positivismo naturalista de Ferri e Lombroso e o liberalismo da escola
clássica.
Os penitenciaristas queriam cumprir as diretrizes da
Constituição de 1824, que extirpou penas cruéis, e exigia “cadeias seguras,
limpas e bem arejadas” e ao mesmo tempo ingressar na vanguarda do novo
pensamento que vinha da Itália.
A humanização acabou por seguir no esteio desse
pensamento positivista que entendia a necessidade absoluta de cárceres
distintos, inclusive pelo perigo do contato com os homens, dada a perversa capacidade
que a mulher tinha de influenciá-los ou torná-los revoltosos.
Ainda assim, a improvisação guiou a administração nos
primeiros estabelecimentos –como o do presídio paulista, construído no espaço
dedicado aos diretores da Penitenciária masculina.
A monografia nos delicia com passagens de Lombroso,
paradigma da época para a compreensão da mulher delinquente, que se revelaram puras
demonstrações de preconceito: “a criminosa é fraca em sentimentos maternais”, “seu
amor por exercícios violentos e mesmo as roupas se assemelham aos homens”; “toda
mulher é organicamente monogâmica e frígida”.
Inescondível o vínculo que para os positivistas ligava a
“delinquência feminina” a atos de expressão sexual. Não à toa, entre as
categorias que distinguiam a suposta “mulher honesta” da “criminosa habitual”, Lombroso
situava a prostituta –um espécime de mulher “primitiva”.
O livro narra muitas contradições que se revelaram neste
processo de dita humanização.
De um lado, ideias que vinham para excluir o sentido de
vingança da pena, como o fim dos uniformes zebrados, dos números estampados nas
roupas, e na identificação pela matrícula de sentenciados; de outro, a
administração dos primeiros presídios inteiramente a cargo da Congregação de
Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor D’Angers, ampliando as características
de instituição total, como a uniformização rígida de roupas, penteados e
condutas, de forma a anular por completo a identidade das presas.
De quebra, um rompimento profundo na nascente noção de
estado laico, com a incorporação, na rotina de disciplina, de momentos de
saudação a Deus e orações coletivas.
O livro tem, ainda, passagens ilustrativas que ensinam muito
sobre o presente.
Como, por exemplo, quando situa a repressão ao
alcoolismo: “Fonte de risco para a ordem pública, o alcoolismo preocupava as
autoridades policiais, que buscavam contê-lo por meio do aprisionamento dos
ébrios” –cerca de 1/3 das mulheres detidas, no começo da década de 40, ingressaram
nas delegacias por alcoolismo, que não raro estava associado a outras fontes de
detenção feminina, como a desordem, o
escândalo e a vadiagem
.
Fruto do pensamento higienista, a ideia recorrente de
que, estando o alcoolismo associado à degenerescência, a necessidade de combate
ao vício tornara-se uma premente questão de saúde pública, a ser “urgentemente
controlada e resolvida”.
A forma de “controlar e resolver urgentemente” não é nada
estranha a quem habita uma metrópole nos dias de hoje: a internação.
De acordo com a explicação de Olívia Maria Gomes da Cunha:
“estes indivíduos nocivos são, no entanto, na maioria das vezes, intocáveis
pelas malhas da polícia ou da justiça, em seus comportamentos nem sempre
criminalizáveis. Necessário, assim, para a defesa da sociedade, definir para os
mesmos uma instância legal e legitimada de exclusão e controle: a medicina
mental se encarrega de ocupar esse espaço”.
Difícil não comparar com a forma como se tratam usuários
de crack nas grandes cidades, com a força policial e o empenho pela internação compulsória. Para nosso
desagrado, todavia, a experiência nos mostra que a repressão no binômio
cadeia-internação, que já ocorreu com alcóolatras, em nada diminuiu os níveis
de consumo no país.
Trabalhando com categorias de antropologia, a autora
procura mostrar a ideia que está por trás do padrão de “dever ser” exigido da
mulher e consequentemente seu caráter desviante. Em questão, quase sempre a
ideia de inferioridade, docilidade e submissão, na qual se insere a negação da
sexualidade da mulher.
Tipo ideal de ser doméstico, a repressão sobre a mulher
se dá quanto mais aumenta sua participação no espaço público –o que aprofunda o
critério seletivo de criminalização. A urbanização e a progressiva destruição
de cortiços acabou fazendo com que a população mais pobre se utilizasse com
frequência da rua como seu espaço de lazer, ficando, portanto, muito mais
exposta à fiscalização.
Essa distinção se fazia ainda mais visível no caso da
prostituição, diante da separação entre as profissionais de cabaré (aceitas pela
sociedade como um mal necessário) e a forte repressão ao baixo meretrício de
rua.
O caráter “doméstico” da mulher chegou, inclusive, a ser
importante referência legislativa: enquanto os reclusos tinham direito a
trabalho externo, este era proibido para as mulheres presas até 1977.
Pensando criminalização e ressocialização desta forma, o
resultado não poderia mesmo ser alvissareiro.
Como aponta a autora, em suas conclusões, “a proposta de
reeducação e recuperação moral das detentas para a sua reinserção na sociedade
não possibilitou uma real transformação social, capaz de retirar essas mulheres
das condições de subordinação e precariedade que as tornavam vulneráveis e
expostas aos olhos da justiça criminal”.
O estudo é rico em arquivos extraídos das penitenciárias,
estatísticas de prisões, relatos do cotidiano prisional e serve como um
excelente ponto de partida para outras pesquisas na área.
Afinal, a ideia expressada em 1924 por Cândido Mendes de
Almeida Filho, de que “o sistema penitenciário brasileiro era vergonhoso”, não
está muito distante da realidade de hoje, quase um século depois.
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