O STF fulminou a lei de imprensa, mas não coibiu o mais importante: a prática rotineira da censura prévia por meio judicial.
“Ulysses é um assombroso tour de force. É alternadamente brilhante e tedioso, inteligível e obscuro. Cada palavra do livro contribui como uma peça de um mosaico na minuciosa composição do quadro que Joyce tenta oferecer aos seus leitores”.
O parágrafo acima cairia como uma luva no discurso de um conceituado crítico literário analisando um dos maiores e mais complexos romances do século XX. Mas são trechos de decisão judicial, proferida em 1933, nos Estados Unidos.
Apesar de entender que o livro de James Joyce era mesmo uma bebida forte para ser ministrada a certas pessoas de sensibilidade delicada, a conclusão do juiz é de que o romance não tendia a excitar impulsos sexuais ou pensamentos lúbricos e, portanto, não devia ser proibido.
A preciosidade se encontra n’ A Cultura do Romance, organizado Franco Moretti (Cosac Naify, 2009) e relembra um período em que a descrição da atividade sexual era tida como perigo que cabia aos poderes constituídos proteger dos cidadãos.
Embora ainda vigente nas ditaduras e teocracias, a tutela da obscenidade não mais seduz as democracias modernas. Mas isso nem de longe significa o exercício pleno da liberdade de expressão.
Entre nós, de triste lembrança, a censura do subversivo (e com ela, curiosamente, também a do obsceno), foi exercida por mais de vinte anos pelos órgãos da repressão.
Agentes federais mensuravam as bebidas fortes que não podiam ser ministradas a pessoas sensíveis, mas, sobretudo, as informações e críticas que colocavam o discurso do poder em xeque.
É ilusão imaginar que a censura se encerrou com a redemocratização.
Mesmo vedada expressamente pela Constituição Federal, ela se revigora hoje, paradoxalmente, a partir de decisões judiciais.
Sob o fundamento de preservação da honra, vários juízes proíbem a circulação de obras e informações jornalísticas.
Não são incomuns as sentenças que impedem órgãos de comunicação de publicar determinada matéria, mesmo sem conhecê-la, pelo efeito danoso que poderiam causar à imagem dos ali retratados, políticos em regra.
É certo que, como qualquer outro direito, a liberdade de expressão não é absoluta.
A punição da violação de segredo ou da discriminação racial são alguns exemplos de limites admitidos.
A censura prévia, no entanto, não se articula com essa esfera de liberdades e proteções da Constituição Federal.
Ela equivale a ressuscitar, por vias transversas, a censura, incumbindo-se ao juiz avaliar, antes de todos, o que podemos ou não saber.
O controle de informações, quando ele nada mais é do que uma possibilidade de dano, reduz o espaço da política e cerceia o exercício da democracia.
Levando o raciocínio do perigo ao infinito, podemos dizer que sempre haverá, em uma reportagem, suscetibilidades afetadas ou reputações que possam ser feridas.
Submeter antecipadamente a este juízo hipotético, mutilando o direito à informação, é um remédio amargo demais para os bens que se pretende defender.
O STF tangenciou a questão quando esta lhe foi colocada.
Apesar de ter feito muito barulho ao declarar que a Lei de Imprensa não valia mais, nada fez para impedir a censura prévia de que foi vítima o jornal O Estado de S. Paulo, em face de notícias sobre ilícitos do filho do presidente do Senado.
O abuso na informação, a imprudência da reportagem danosa e até mesmo a invasão de privacidade desmedida podem ser regularmente objetos de reparação.
Mas quando a ação judicial se antecipa e frustra por si só a liberdade de expressão, acaba se transformando em um extemporâneo órgão de censura.
A prudência tende a virar controle e os magistrados dificilmente resistirão à tentação de glosar os seus Ulysses.
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