O Direito Internacional dos Direitos Humanos impõe que o Estado proceda à investigação e a persecução penal dos crimes contra a humanidade
Inaugurando o Blog Allonsanfan, o jurista Marcio Sotelo Felippe*, apresenta o artigo: “As pedras vão falar”. Com a epígrafe de um poema de Affonso Romano de Sant’Anna (Os desaparecidos), Marcio explica porque o Brasil tem obrigação de julgar os crimes contra a humanidade praticados durante a ditadura militar e destrói a tese de que a decisão da OEA não é vinculante para nós. O STF não vai poder simplesmente dizer: a sentença da Corte esta na esfera da ‘convencionalidade’ e, então, ignorá-la.
Leia alguns trechos:
O ministro [Peluso] parece ter recorrido a um truque semântico: confundir o sentido técnico-jurídico e um sentido genérico da palavra. Neste último caso, a expressão denota uma ideia de quase arbítrio frente a um dispositivo ou regra qualquer, sem força vinculante. Mas convencionalidade no plano do Direito Internacional tem um sentido técnico específico: é o modo de criação de normas jurídicas vinculantes.[1] Não há uma autoridade central no concerto das nações com as funções do Estado moderno. O fenômeno normativo torna-se vinculante por acordo entre os Estados. O fundamento dessa vinculação é o princípio pacta sunt servanda. O pactuado deve ser cumprido. Como há vinculação, o não cumprimento caracteriza ato ilícito. Estamos longe, portanto, daquela atmosfera de mero arbítrio que a frase do Ministro tenta invocar.
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Além do fenômeno da convencionalidade, sustentado logicamente pelo princípio pacta sunt servanda, há, portanto, normas de Direito Internacional que tem a característica da cogência, e contemporaneamente se reconhece que normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos são assim. Derivadas dos costumes e de outras fontes formais do Direito, independem, para sua eficácia, da vontade dos sujeitos envolvidos numa relação jurídica. A racionalidade disto é clara: como poderia a proteção da vida e dos direitos básicos da pessoa humana depender de um ato de vontade, em qualquer plano do fenômeno jurídico?
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Permitir que o decurso do tempo tornasse impuníveis crimes contra a humanidade significaria relativizar a defesa da humanidade. Certamente cabe lembrar agora que a prescrição no Direito comum é reputada um conceito iluminista, necessário e civilizado e explicar o motivo da diferença. As declarações de direitos na Revolução Francesa tinham como destinatários os indivíduos. Nos momentos históricos seguintes surgem outros destinatários: coletividades passam a ser sujeitos de direitos (trabalhadores, excluídos, minorias, etc.). No Direito Internacional dos Direitos Humanos surge, num terceiro e sublime momento, a própria humanidade como sujeito de direito. Nos crimes contra a humanidade há na grande maioria das vezes um enorme potencial de aniquilação de seres humanos (frequentemente o imenso poder de um Estado e sua capacidade de destruição interna e externa). Há o risco de extermínio de etnias, minorias, de certos valores culturais, espirituais, sociais, expressões políticas, filosóficas, etc. O que se protege é a própria sobrevivência da humanidade em sua inteireza, complexidade e riqueza. Por isso o poder de persecução é imprescritível, absoluto, transcende fronteiras, soberanias e limitações próprias de outro estágio de civilização e de outro Direito.
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Contra a resistência de setores desinformados, de má-fé ou com interesses obscuros a resguardar deve ser oposta a consciência jurídica universal e a segura trilha de construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. Trata-se de saber que sociedade estamos construindo. Uma em que é possível admitir que o Estado, em um momento, aniquile, brutalize, torture, faça desaparecer pessoas e imponha a uma parte de seus cidadãos sofrimento indizível até o final de seus dias, e em outro momento ignore tudo por razões políticas; ou uma sociedade em que cada brasileiro tenha a proteção de membro da humanidade. Muitos de nós fizemos a escolha moral, que é amparada pelo Direito, e não vamos renunciar ao bom combate. Outros, que calam indiferentes, que façam a escolha que não os envergonhe perante as gerações futuras. Porque as pedras falarão.
Leia no Allonsanfan a íntegra de “As pedras vão falar”
*Marcio Sotelo Felippe foi procurador-geral do Estado de São Paulo, é Mestre em Filosofia e Teoria Geral do do Direito (USP) e autor de “Razão Jurídica e Dignidade Humana” (Ed. Max Limonad)
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