….a Bíblia na sala de audiências…

O artigo que segue foi escrito pelos defensores públicos do Estado de São Paulo, Gustavo Augusto Soares dos Reis e Rafael Rocha Paiva Cruz, e publicado na versão impressa do jornal “Juízes para a Democracia”.

É uma importante reflexão sobre as garantias processuais do adolescente no Estado Democrático de Direito e, sobretudo, uma defesa intransigente da laicidade do Estado.

O Judiciário e o senhor das trevas

“O adolescente entra na cela… recebe a Bíblia (símbolo do bem)…faz uma leitura e reflexão…é conduzido para a sala de audiências pelo ‘senhor das trevas’ (símbolo do mal) devidamente caracterizado – roupa preta, que representa as escolhas erradas que o adolescente fez e todo o mal que causou à si, sua família e à sociedade…é indagado se está preparado para receber a luz (símbolo do bem e de uma nova vida), toma
um cálice de água e ingressa na sala de audiência…presentes a família do adolescente, o representante do Ministério Público, o escrevente e um técnico da unidade de internação. Executa-se… cantos gregorianos…músicas de enlevo espiritual. É anunciada a entrada do magistrado (símbolo da justiça). Ao adolescente é explicado o simbolismo usado na audiência…O adolescente diz o que o ‘senhor das trevas’ representa para ele e em seguida ele ordena que o mesmo saia de sua vida e o expulsa da sala …. o magistrado pede que a família se aproxime … acende uma vela e a mãe faz a entrega da mesma, ou seja, entrega a luz ao filho, símbolo de uma nova vida, de um reencontro.
É pedido ao adolescente que explique o que aquilo representa para ele, é relembrado
que tudo o que ele passou e o mal que causou foi por uma escolha errada dele, ou seja caminho das ‘trevas’. O adolescente faz o compromisso com a família dizendo o que fará dali em diante, e a mãe…diz o que espera dele. Palavra dada ao Ministério Público para suas observações…à técnica da unidade de internação…o magistrado pede ao adolescente que feche os olhos para que faça o compromisso consigo e com Deus… O adolescente reflete durante cinco minutos, após é usada a técnica de Lacan (o adolescente pega o espelho e olha nos seus olhos), antes, o magistrado diz a ele que vai lhe apresentar uma pessoa que há muito deseja falar com ele. O adolescente diz o que sentiu e o que fará para melhorar. Faz o compromisso com a justiça e recebe a progressão. Ao final o magistrado bate o martelo (símbolo da justiça)”- (http://www.premioinnovare.com.br/praticas/audiencia-de-progressao-de-medidasocio-educativadramatizacao-2861/).

O trecho transcrito corresponde à descrição de uma prática judicial goiana relacionada à progressão em medida socioeducativa que foi inscrita no Prêmio Innovare de 2007.
O idealizador da prática sustenta que a dramatização trabalha com o emocional do adolescente usando elementos de psicologia e psicanálise e que a prática ensejou redução de cerca de 60% nas fugas da unidade de semiliberdade e sensível diminuição na reincidência. Sem contestar a base psicológica e psicanalítica e os resultados apontados, até porque tão ou mais importante do que os fins atingidos pelo Estado Democrático de Direito são os meios utilizados para tanto, é fato que a dramatização aplicada (que utiliza bíblia, velas, castiçal, indumentárias e canto gregoriano) colide com alicerces do Estado ocidental moderno: a laicidade e a liberdade religiosa.
O processo de secularização e separação entre Estado e Igreja, conseqüência da Reforma Protestante, é marca do Estado Moderno e aparece já na primeira emenda à Constituição Americana de 1787. No Brasil, a constitucionalização da laicização e da liberdade religiosa surge na Constituição de 1891 e está reforçada na Constituição de 1988, que cuida do tema em diversos dispositivos e ainda permite a absorção dos tratados internacionais de direitos humanos.

Apesar dessa consolidação, já ensinava Rui Barbosa que “é difícil ao povo perceber o alcance da liberdade religiosa e, consequentemente, sua importância, sem uma provocação direta e material.”(1)

A laicização implica na impossibilidade do Judiciário praticar atosjudiciais, como a realização de audiências de progressão de medida socioeducativa, que adotem elementos religiosos, como ocorre na prática referida.(2)

No Estado Democrático de Direito, os atos judiciais devem observar o princípio da legalidade e seguir o devido processo legal, sobretudo quando se trata de processo relacionado a adolescente, que tem absoluta prioridade na garantia dos direitos à dignidade, respeito e liberdade.

Ao contrário do que costuma ocorrer, o princípio do superior interesse da criança e do adolescente não admite que se transija sobre as garantias processuais constitucionalmente estabelecidas. A prática em questão também não faz menção à presença de defensor durante a audiência, o que macula o ato e torna irrelevante a concordância do adolescente e de seus representantes.(3)

Salienta-se que, além do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Convenção sobre os Direitos da Criança garante a liberdade religiosa e, a todo adolescente acusado de ter infringido uma lei, a assistência jurídica e o julgamento por órgão judicial competente, independente e imparcial, em audiência justa conforme a lei.

Evidente, portanto, que a prática mencionada não é compatível com o sistema constitucional e internacional adotado pelo Brasil. Nunca é demais lembrar que, no Estado Democrático de Direito, o Judiciário tem papel destacado, como grande garantidor da democracia, da pluralidade e dos direitos fundamentais, de modo que o compromisso com a dignidade da pessoa humana e demais valores constitucionais deve permear toda atividade jurisdicional.

(1) Apud SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 15.
(2) Recente decisão da Corte Européia de Direitos Humanos, no caso Lautsi v. Itália, considerou que a presença de crucifixos nas salas das escolas viola o direito à liberdade religiosa.
(3) Goiás ainda não possui Defensoria Pública estruturada, o que, certamente, prejudica o adequado desempenho da assistência jurídica gratuita

4 Comentários sobre ….a Bíblia na sala de audiências…

  1. Anônimo 18 de novembro de 2010 - 13:23 #

    Para começar, acho que mais uma vez usaram o "santo nome" do Lacan em vão…O estádio do espelho não tem nada a ver com essa prática de "redenção" de adolescentes aparentemente realizada em Goiás. Nela, esse conceito de Lacan foi confundido com "olhar-se no espelho"…(sic) Toda essa encenação mais se parece com um tribunal da Inquisição.
    Torço pelo dia em que o Estado não seja mais contaminado por resquícios de princípios pretensamente religiosos que – antes de se preocuparem com o que é ético e humano – são, na verdade, uma forma de controle das relações de poder e de predominância de uma religião sobre outra.

    Ercilene

    PS: Marcelo, parabéns por seu blog.

  2. Anônimo 18 de novembro de 2010 - 16:29 #

    é como o efeito que um dramaturgo sente para chorar em cena. A diferença é que o ator principal não cria referência dramaturgica, pelo fato de ser a vida real. O impacto deve ser bastante forte.

    Clodoaldo

  3. Anônimo 20 de novembro de 2010 - 00:03 #

    Bem, talvez eu esteja enganado, mas trata-se de um "psicodrama". O ritual é usado também em muitas religiões e em corporações como "rosa-cruz" e "maçonaria". "Dar a luz", cantos gregorianos, sei lá… desculpe, mas acho que essa história de que recupera 60% é conversa fiada. Não há estatistica segura num samba-do-criolo-doido da espécie, executado num estado que nem tem defensoria estruturada. É aquilo que todo mundo tá careca de ver… enquanto estiver preso ele vê a "luz", "recebe Jesus", coisa e tal… Na rua o buraco é mais em baixo. Um abraço e parabéns pelos excelentes textos. (Sidney – "ainda não sei o que é URL")

  4. Marcelo Semer 20 de novembro de 2010 - 00:41 #

    Sidney. Grato pela presença e pelos comentários. URL é endereço de um site ou blog, caso tenha. Mas não é necessário.