Cada palavra no seu lugar, como se elas nunca tivessem estado em qualquer outro antes
Chico ou Caetano?
Eu era Chico. Sem dúvida. Cada palavra no seu lugar, como se elas nunca tivessem estado em qualquer outro antes. Como se tivessem nascido juntas, e só nós ainda não conseguíssemos vê-las assim desde o início. Era simétrico, era pensado, era perfeito. Além de dizer tudo ou quase tudo que eu queria dizer. A Ana Paula, ela também. Ela era Chico cem por cento. Ana louvava o tom poético, a sensibilidade, a emoção descrita com sutileza e, principalmente, a graciosidade e a força de suas mulheres. Ela gostava de ser reconhecida nas músicas do Chico. Ou pelo menos de pensar que era assim.
Mas o João, não. Ele era Caetano. E não se falava mais nisso. João era energia, era etéreo. Era pura sensação. Cheio daquelas coisas que na época a gente não sabia descrever muito bem. Ainda não era esotérico, mas gostava de flanar, de viajar, de curtir. Nada de sentimentos organizados, bem construídos. Ele adorava ambiguidades, expressões inusitadas que não diziam nada, mas explicavam tudo. Outras palavras.
Naquela noite, no entanto, nós todos estávamos ouvindo Milton Nascimento. E isso era quase uma obrigação.
Não, não que fosse um castigo, ou que propriamente não gostássemos dele. Nada menos verdadeiro. Para mim, sua voz grave era insubstituível em Cálice. João tinha uma fé cega e uma faca amolada com a qual, costumava dizer, abria suas picadas na vida. Ana era Maria. Maria, Maria. Sim era ela. Eu não podia imaginar outra pessoa que pudesse caber melhor naquela descrição. E afinal de contas, nós três gostávamos de imaginar que cada um guardava o outro do lado esquerdo do peito. E aquela era a hora certa para ouvi-lo.
Tudo bem, anos antes eu também me emocionei no show do Queen. Freddy Mercury recitava love of my live enquanto nós acendíamos e apagávamos os isqueiros e o Morumbi parecia levitar. E dançaria ainda muito The Police, antes que o Sting fosse embora. Nas rodinhas de violão, stairsway to heaven entorpecia a todos, com ou sem fogueirinhas de papel. E estávamos aprendendo a amadurecer junto com o adolescente rock nacional, em companhia do qual iríamos passar as melhores noites da nossa vida. Portanto, não era só mpb que nós ouvíamos. Mas era na mpb que nos ouvíamos. Que nos reconhecíamos. Ela conhecia a gente como a gente era, e tudo o que era importante para nós estava lá em alguma música. Certas canções que ouço, cabem tão dentro de mim.
Eram quase onze e naquele apinhado ginásio do Ibirapuera, centenas de leques bailavam ao vento, como uma chuva de papel picado que teimava em não chegar ao chão. E nós, nós estávamos lá. Éramos os tais corações de estudantes, cantando de mãos dadas na apoteose do show do Milton, que coincidia ser a véspera da passeata das Diretas. O universo conspirava em direção às lágrimas. Afinal, aquele era o nosso momento. Uma amizade que ficava mais forte porque nos fazia sentir e sofrer juntos. Estávamos próximos de ganhar o mundo e como se isso não bastasse, conquistá-lo de mãos dadas.
Mas, que eu me lembre, nem a Ana nem o João choraram. E para ser sincero, eu mesmo não tenho muita certeza se cheguei a derramar alguma lágrima –nunca fui muito de choramingar, se nem pela tristeza menos ainda pela alegria. Mas a Regina chorou. Isso eu lembro bem, porque eu olhei nos olhos verdes dela, quando a gente se encarou daquele jeito meio cúmplice como se estivesse se abraçando. Ela estava feliz como todos nós e não ficou com vergonha de mostrar seus olhos deliciosamente úmidos. Naquele momento eu tive vontade de chorar e mais vontade ainda de que ela me visse chorando. Durante o show, sem querer querendo, me enfiei no meio das duas, e dei as mãos para a Ana e a interessante amiga que ela trouxera. E quanto mais Regina se emocionava mais eu sentia a mão dela junto à minha. Foi uma sensação recíproca de bem-estar que fez com que a gente não se desgrudasse, mesmo depois que eu me despedi do João e a Ana nos aguardava para ir embora com a sua amiga.
Aquele momento foi gostoso por si só. Ela balançava a cabeça um pouco para cá, outro tanto para lá, enquanto me sorria, e eu, envergonhado por estar envergonhado na frente da Ana, não disse muito mais do que “a gente se encontra amanhã”. Talvez por isso não tenhamos marcado um local certo ou uma hora precisa, mas eu só me arrependeria disto nos dias que viriam depois. Tudo o que eu queria era que já fosse o dia seguinte para estar segurando na mão dela de novo, enquanto a gente gritava palavras de ordem contra a ordem. E olhar no seu olho para me encontrar lá dentro, como eu achei, todo orgulhoso, que seria possível.
Foi cada um para o seu lado. Eu ia voltar a pé para a casa porque estava me sentindo mais leve, como se eu tivesse o mundo inteiro à minha espera quando acordasse. Eu ainda virei para ver as duas andando para o ponto de ônibus. E por alguns instantes olhei a Regina se ir, de costas, passo apressado, como se também estivesse torcendo para que o dia começasse daqui a pouco só para me ver de novo. Mas foi aquela imagem do vulto que se ia, cabelos delicadamente loiros na altura do ombro, braços claros soltos, saltitantes dentro da camiseta branca que tanto imantara minha atenção durante o Milton, que ficou na memória. Porque não existiu nenhuma outra para colocar em seu lugar. No dia seguinte, vi passar o mundo inteiro à minha frente, mas não vi a Regina. Nunca mais.
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