….cinismo: uso reacionário dos direitos fundamentais….

Cinismo: uso dos princípios constitucionais com o propósito de esvaziá-los…

Cinismo. É o uso reacionário dos direitos fundamentais, a melhor forma de esvaziar garantias a pretexto de defendê-las.

A propósito do debate das cotas raciais, em que o reacionarismo se arroga dono e senhor do princípio da isonomia, a ponto de querer esvaziar sua eficácia, me lembrei de outras perversões doutrinárias que beiraram esse cinismo.

Quando, por exemplo, se debateu a “execução provisória”.

A ideia era simples e básica. Presos provisórios não podiam progredir de regime, enquanto esperavam o julgamento final de seus processos. Quando o recurso era julgado, muitas penas já tinham sido cumpridas no regime fechado mesmo, e a progressão se transformava em um direito que jamais seria utilizado. Não porque a lei negava, mas porque a vida impedia.

Execução provisória, então, significou conceder direito de progressão a quem ainda está em julgamento, com fundamento no fato de que sua prisão provisória já representava, na prática, um início de execução. Se assim não fosse, o réu teria que fazer uma escolha de Sofia: recorrer em busca de sua absolvição ou não recorrer em busca de sua liberdade. Uma escolha difícil, convenhamos.

Mas o pensamento cínico conservador lá estava presente para dizer não à execução provisória com o mais “justo” dos fundamentos: diante do princípio da presunção de inocência, nenhuma pena pode ser executada antes do trânsito em julgado da decisão condenatória.

Sim, a posição contrária era “constitucional”, e podia se resumir no seguinte: eu vou usar o princípio da presunção de inocência, que é essencialmente a favor do réu, para impedir que o próprio réu possa gozar de benefícios prisionais.

Ou seja, é por você, para preservar o seu direito, que eu te proíbo de usá-lo.
Cinismo, puro cinismo.

A deturpação do princípio da proporcionalidade, no avesso do avesso do avesso, é outra demonstração deste cinismo.

Construído como a proibição do excesso, para evitar aplicação de sanções superiores ao necessário, a proporcionalidade acabou se transformando em álibi nada menos do que do esforço de sepultar os direitos fundamentais.

Seu ápice se deu na discussão sobre provas ilícitas: se o crime a ser apurado fosse muito, mas muito grave, então a ilicitude na colheita da prova estaria desculpada.

A questão, em resumo, podia ser assim situada: o interesse público supera o interesse individual. A vontade geral prevalece sobre a vontade particular. Democracia pura…

Ora, se não houver uma esfera de proteção (a couraça dos direitos fundamentais) em que o interesse do indivíduo fica preservado do avanço incontrolável do “interesse público”, o indivíduo simplesmente não existirá.

O resultado disso não é apenas conservadorismo. É puro fascismo.

A execução provisória vingou, mesmo com a má vontade de muitos, e se transformou em Súmula do STF.

O mesmo tribunal concluiu que a inadmissibilidade de provas ilícitas não podia ser proporcionalizada.

E, enfim, aceitou corretamente agora que a ação afirmativa valoriza, e não viola, o princípio da isonomia.

Mas continuemos sempre alertas.

Em algum lugar próximo a nós, alguém estará defendendo o uso dos princípios constitucionais justamente para esvaziá-los e levantando a bandeira do estado democrático de direito, com a expectativa de fazê-lo letra morta.

Cinismo. Puro cinismo.

2 Comentários sobre ….cinismo: uso reacionário dos direitos fundamentais….

  1. Anônimo 27 de abril de 2012 - 17:29 #

    O tema do (ab)uso dos princípios constitucionais dentro do Poder Judiciário tem proporções imensas. Muito bem pontuado pelo autor. Não é raro nos depararmos na prática forense com negações de direitos sendo "fundamentadas" por princípios constitucionais como o da proporcionalidade. Uma verdadeira perversão argumentativa que acaba por desvirtuar, esvaziar os conteúdos desses que são consquistas civilizatórias, resultado da luta dos brasileiros pela democratização do Estado que, aliás (não esqueçamos) está ainda em curso. Ou seja, a democracia não é um processo acabado, tendo seu ápice na promulgação da constituição, mas sim uma batalha interna de modificação de instituições, práticas, cultas pseudo-democráticas, ou verdadeiramente autoritárias.

  2. Anônimo 28 de abril de 2012 - 13:52 #

    Temos uma democracia, sim, frca, mas temos.
    Só que ela é controlada pelo capital não pelos princípios.
    E temos também uma anarquia. Um pode tudo que não é tolhido sob o argumento de proteção dos "direitos individuais".
    O Direito é uma ciência semelhante a uma moeda. Não dá para falar em Direito sem falar em obrigações. Pena que os defensores do "direito" nunca se dá ao trabalho de elencar as obrigações correspondentes.