….cracolândia expõe anacronismo da guerra às drogas….

 
A repressão exila o usuário, sufoca o tratamento e favorece quem mergulha nas sombras
 
 
 
 
 
 
Poucas vezes se pôde constatar com tamanha veemência o anacronismo da guerra às drogas, como o episódio recente da ação policial na Cracolândia.
 
É certo que em 2013 já mostramos um enorme descompasso com o moderno: enquanto Uruguai e alguns Estados norte-americanos encaram de frente a discussão sobre a legalização da maconha, o Brasil passou o ano debatendo como tornar ainda mais severa uma lei de entorpecentes que já vem aumentando – e muito- o encarceramento pelas drogas.
 
Mas o embate de policiais civis, segundo informa a imprensa até com balas de borracha, sobrepondo-se ao programa de reinserção de usuários do local, mostrou o quanto o paradigma da repressão sufoca o nascimento das demais alternativas.
 
Há alguns anos, o mesmo governo e a prefeitura anterior apertaram conjuntamente o gatilho da operação, sinceramente apelidada, de “dor e sofrimento”.
 
Centenas de pessoas foram presas, processadas, agredidas e desalojadas. 
 
O resultado do enfrentamento foi praticamente nenhum –nem diminuiu a venda do entorpecente, nem retirou das ruas os consumidores mais pobres.
 
A ênfase na internação compulsória que se seguiu também demonstrou-se inglória –só descortinou o fato de que não havia vagas suficientes para quem quisesse se internar.
 
E no exato momento em que se inicia uma tentativa de reerguer a autoestima de quem vinha sendo tratado como um zumbi, o aparato policial mostrou que seu vigor permanece sempre à espreita, para impedir que outras formas de enfrentamento à questão sobrevivam.
 
O dado mais inquietante da guerra às drogas no país nem é a sua absoluta ineficácia e o custo estratosférico investido na segurança, que tanta falta faz à saúde.
 
Tampouco se resume aos assustadores índices de violência policial –e uma infelizmente não tão rara simbiose com o próprio comércio que reprimem.
 
Mas a forma como essa guerra acaba servindo para a criminalização da pobreza –e assim aumentando uma desigualdade que era função constitucional do Estado (e de todos os seus poderes) reduzir.
 
Quem frequenta delegacias ou fóruns criminais, sabe muito bem onde se procura e onde se encontra droga. Quem são as pessoas flagradas portando entorpecente. 
 
A repressão ao tráfico é, sobretudo, uma repressão de periferia. 
 
Os abordados por atitudes suspeitas são em grande maioria jovens negros ou pardos. As invasões de domicílio não se dão em bairros nobres, mas em barracos ou cortiços.
 
É apenas uma ilusão supor que a droga não frequente com a mesma assiduidade as baladas mais reputadas, os shows com ingressos mais caros e as residências em que se realizam festas disputadas.
 
Como costuma dizer o juiz Luis Carlos Valois, os usuários do crack são pobres e visíveis –“mas os da cocaína são silenciosos e têm propriedades”. Não são alcançados facilmente pela lei, que também não se esforça para encontrá-los.
 
A desproporção da fiscalização faz parecer que o consumo de drogas é algo que só ocorre nas vilas e favelas e que o tráfico se resume a um comércio escondido nos morros.
 
Nada menos verdadeiro, como a queda do helicóptero do deputado, lotado de pó e abastecido com o combustível do dinheiro público, pôde exibir.
 
A repressão exila o usuário, sufoca o tratamento e favorece quem mergulha nas sombras. 
 
Distorce o policiamento, incrementa a violência e superlota cadeias que são portas de entrada para a barbárie.
 
Ninguém sabe exatamente o quanto de sucesso as novas abordagens sobre a droga vão conseguir. 
 
Mas os efeitos maléficos da opção preferencial pela repressão têm se mostrado tão altos, tão danosos e tão persistentes, que o futuro nos cobrará a omissão se não tentarmos produzir alternativas.
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