….a cruz na sala da justiça….

Estado laico é conquista de todos, porque fundado na lógica da tolerância e no respeito às crenças de todos. Nesse sentido é o Estado neutro, inclusive quanto aos símbolos que utiliza.

Em maio de 2007, o Conselho Nacional de Justiça rejeitou pedidos de providências para que fossem retirados símbolos religiosos das salas de audiência em respeito ao princípio da laicidade do Estado. Todos os Conselheiros da época, à exceção do relator, advogado Paulo Lôbo, negaram os requerimentos. A justificativa foi de que “os objetos seriam símbolos da cultura brasileira e que não interferiam na imparcialidade e universalidade do Poder Judiciário”.

Paulo Lobo foi a voz solitária em defesa do Estado laico no órgão de controle do Judiciário e seu voto, primoroso, vale ser recuperado.

É contundente e cada vez mais atual: “Em tempos de ressurgimentos de fundamentalismos religiosos de todos os matizes, mais forte se torna a necessidade de reforçar a neutralidade e laicidade dos espaços estatais”.

Lobo explica que “a permanência de símbolo religioso em órgão público é reminiscência da cultura de indistinção entre vida política e vida privada que tanto mal causou e tem causado à sociedade brasileira” e que o argumento de tradição cultural não pode prevalecer, porque muitos hábitos culturais tradicionais, antes tolerados, hoje são repelidos, como o nepotismo.

Leia a seguir a íntegra do voto*

Na sessão deste Plenário do dia 29 de maio de 2007, após o relatório, encaminhei voto preliminar no sentido de ser aberta audiência pública, que permitisse a todos os interessados o envio de estudos sobre a matéria, dada sua relevância. Todavia, não contei com a aprovação de meus eminentes pares, que preferiram adiantar seus votos de mérito no sentido de rejeitar os pedidos. Profiro, agora, meu voto, após muito refletir.

Durante quase quatrocentos anos, desde o início da colonização portuguesa até o advento da República, o Estado e a Igreja católica integravam a ordem política brasileira. A Constituição imperial de 1824, apesar de sua inspiração iluminista e liberal, estabeleceu em seu art. 5º: “A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”. Assim, à Igreja católica se assegurou o domínio do espaço político e às demais o espaço privado.

A interferência da religião na vida privada foi marcante na formação do homem brasileiro, repercutindo na dificuldade até hoje sentida da definição do que é privado e do que é público, da confusão entre “o jardim e a praça”, do sentimento generalizado de que a coisa pública e as funções públicas seriam extensão do espaço familiar ou patrimônio expandido de grupos familiares. Esse traço resistente da nossa cultura, que tem origem no desenvolvimento da sociedade portuguesa, transplantado para o Brasil colonial, foi bem demonstrado pelos estudiosos de nossa paidéia(1). Para Nestor Duarte, o “privatismo característico da sociedade portuguesa” encontrou, no meio colonial brasileiro, condições excepcionais para o fortalecimento da organização familiar, “que se constitui a única ordem perfeita e íntegra que essa sociedade conheceu”. A casa grande era uma “organização social extra-estatal, que ignora o Estado, que dele prescinde e contra ele lutará”. A Igreja era a única ordem que conseguia preencher o vazio entre a família e o Estado no território da Colônia (2).

A Igreja regulava a vida privada das pessoas desde o nascimento à morte, conferindo a seus atos caráter oficial. Os atos e registros de nascimento, casamento e óbito eram da competência do sacerdote. Os cemitérios estavam sob controle da Igreja.

Apenas com o advento da República, em 15 de novembro de 1889, o ideário da modernidade de separação do Estado e da Igreja se consumou (Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890). A Constituição de 1891 estabelecerá que (art. 72, § 7º) “nenhum culto ou Igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados”. A partir daí, a religião saiu juridicamente da vida política, destinando-se à vida privada.

O Estado laico é conquista de todos, porque fundado na lógica da tolerância e no respeito às crenças de todos. Nesse sentido é o Estado neutro, inclusive quanto aos símbolos que utiliza.

A Constituição de 1988 determina (art. 13, § 1º) que “são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais”. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem ter símbolos próprios. Portanto, somente esses símbolos podem ser ostentados em órgãos ou bens públicos e nos documentos oficiais. Neles, qualquer cidadão, nacional ou estrangeiro, se identificará como igual, sem afronta às suas crenças pessoais.

A permanência de símbolo religioso em órgão público é reminiscência da cultura de indistinção entre vida política e vida privada que tanto mal causou e tem causado à sociedade brasileira. O argumento de tradição cultural não pode prevalecer, porque muitos hábitos culturais tradicionais, antes tolerados, hoje são repelidos pela consciência moral de nosso povo e não mais encontram abrigo na Constituição, como o nepotismo. Também é deplorável tradição de nossos administradores públicos substituir os símbolos públicos e oficiais por símbolos privados ou logomarcas, alguns advindos de suas campanhas eleitorais, desde prefeitos até Presidente da República.

Tem razão a Corte Constitucional alemã, em decisão de 1995 sobre a inconstitucionalidade da presença de crucifixos em salas de aulas de ensino público fundamental, quando afirmou:

“A cruz representa, como desde sempre, um símbolo religioso específico do Cristianismo. Ela é exatamente seu símbolo por excelência… Para os fiéis cristãos, a cruz é, por isso, de modos diversos, objeto de reverência e de devoção. A decoração de uma construção ou de uma sala com uma cruz é entendida até hoje como alta confissão do proprietário para com a fé cristã. Para os não cristãos ou ateus, a cruz se torna, justamente em razão do seu significado, que o Cristianismo lhe deu e que teve durante a História, a expressão simbólica de determinadas convicções religiosas e o símbolo de sua propagação missionária. Seria uma profanação da cruz, contrária ao auto-entendimento do Cristianismo e das igrejas cristãs, se se quisesse nela enxergar, como as decisões impugnadas, somente uma expressão da tradição ocidental ou como símbolo de culto sem específica referência religiosa.”(3).

Em tempos de ressurgimentos de fundamentalismos religiosos de todos os matizes, mais forte se torna a necessidade de reforçar a neutralidade e laicidade dos espaços estatais, além do irrestrito respeito às convicções religiosas majoritárias ou minoritárias, para o que não contribui a permanência de símbolos religiosos nas salas de julgamento dos tribunais e demais órgãos judiciários. O uso exclusivo dos símbolos oficiais contempla melhor a garantia da liberdade religiosa. Concordo, todavia, com Daniel Sarmento, que gentilmente fez-me chegar às mãos precioso estudo a respeito, que “parece a princípio ser mais aceitável a presença de um símbolo religioso no gabinete de um juiz, ao lado de outros objetos de cunho pessoal, do que, por exemplo, numa sala de audiência”.

Voto, pois, pelo deferimento dos pedidos para determinar que os símbolos religiosos sejam retirados das salas de sessões e audiências dos órgãos judiciários.

PAULO LÔBO
Conselheiro Relator

*PPs 1344, 1345,1346, 1362
Requerente: Daniel Sottomaior
Assunto: Símbolos religiosos nos tribunais

(1)Paidéia é o termo utilizado pelos gregos antigos, para significar o conjunto de elementos e condições determinantes da formação integral do homem, que não se confunde com formação formal ou escolar. A respeito, JEAGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1989. Esclarece o autor que nenhuma das expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação coincide com o que os gregos entendiam por paidéia, pois cada uma delas se limita a exprimir um aspecto desta, e para abranger o campo total do conceito grego seria necessário empregá-las todas de uma vez.

(2) DUARTE, Nestor. A ordem privada e a organização política nacional. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 64-89.

(3) BVerfGE 91, 1 (1995).

Leia também por aqui: Ação no STF questiona ensino religioso em escola pública

2 Comentários sobre ….a cruz na sala da justiça….

  1. Anônimo 8 de agosto de 2011 - 13:29 #

    Esse assunto é delicado porque aparentemente muitas pessoas não percebem o quanto os símbolos carregam um passado e uma história por trás de si. Pelo fato de o Brasil ser um país de grande tradição católica, parece que muitos tem uma certa dificuldade em perceber que outros não o são e que o Estado não deve estar vinculado à ideia de uma ou outra religião.
    A justiça dos homens não é divina. O Estado e os juízes também não. O crucifixo é um símbolo que deve estar nas igrejas e outros lugares em que os católicos vão orar e não em um lugar em que homens vão ser julgados por outros homens, num exercício de poder que deve ser – a rigor – o mais justo, honesto e imparcial possível.

    Helena

  2. Ivan de Sampaio 7 de setembro de 2011 - 23:57 #

    Gostei da postagem. Até a mencionei no texto que escrevi hoje, sobre o tem mais amplo do Estado laico. Segue o link: http://desmontadordeverdades.blogspot.com/2011/09/o-estado-e-o-rebanho.html
    Acho mesmo que é parte da luta por uma conquista a luta pela transformação dos símbolos. Temos que sempre olhar com mais atenção a relação entre a realidade material os símbolos por ela produzida.

    Abraço!

    Ivan de Sampaio
    Blog: http://desmontadordeverdades.blogspot.com/
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