Crimes patrimoniais se tornam mais violentos; repressão ao tráfico não produz resultados. Uso de drogas ainda é caso de polícia
Recentemente, algumas estatísticas criminais referentes ao Estado de São Paulo foram noticiadas com exagerado ufanismo.
Segundo os dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública de SP, o crime está em franco declínio no Estado. O baixo índice de homicídios, inclusive, estaria nos tirando da epidemia…
Passada a euforia, alguns dados de outra estatística que podem jogar um pouco de luz no estranhamento que a população sente, em face de uma realidade que parece não estar chegando à sua porta.
Os dados são do Ministério Público paulista e se referem ao número de denúncias (acusações) ajuizadas nos últimos anos, de 2004 até 2009 (Leia aqui reportagem e dados na revista Consultor Jurídico).
Alertemos que os números são distintos da Secretaria de Segurança, porque se tratam de pesquisas diversas. Ações penais se referem aos crimes em cujos inquéritos foram apuradas autorias e os autores podem ser processados (portanto, apenas os crimes elucidados praticados por maiores de 18 anos).
Quem conhece a realidade forense, sabe que mais de 80% das denúncias ajuizadas se referem a prisões em flagrante -quase todo o nosso trabalho é proveniente da Polícia Militar.
Assim, o número de ações penais espelha de forma muito próxima o número de prisões em flagrante e, por consequência, em certa medida, também o número de crimes praticados.
Não devemos esquecer que o número de crimes não solucionados ou nem comunicados à polícia (cifra negra) é ainda maior e não entra nessa estatística.
Pelos números apresentados pelo MP-SP, uma sintomática alteração entre os crimes patrimoniais: nos últimos anos vem diminuindo crescentemente a prática de furtos e aumentando a de roubos, tornando a criminalidade mais violenta –inclusive pela ainda abundante oferta de armas de fogo no mercado paralelo.
A festejada diminuição dos crimes de homicídios, de fato, é reproduzida na análise dos últimos seis anos abrangidos pelas estatísticas do MP.
As denúncias diminuíram de 5010 (em 2004) para 3709 (em 2009).
Mas no mesmo período, o número de denúncias por roubo saltou de 17.963 (em 2004) para 21.644 (em 2009).
Para lembrar, nem todas as mortes violentas estão embutidas nos Homicídios: quando uma morte é decorrente de roubo, trata-se de latrocínio (roubo seguido de morte), incluído na categoria Roubo e não Homicídio. A diminuição dos homicídios, portanto, não representa necessariamente diminuição das mortes.
A redução dos homicídios está mais longe de significar uma redução de crimes. E não é certo que possa ser atribuída a alguma relevante política pública estadual –parte considerável de homicídios são decorrentes de brigas banais, que reduzem sua letalidade desde a campanha do desarmamento.
Mas o aumento das denúncias por roubo não é nada desprezível: cerca de 20% em 5 anos, sem contar o ano de 2010. Mais do que o dobro da redução dos crimes de furto. E são os roubos que mais atingem diretamente nossa sensação de segurança.
A redução drástica de denúncias ligadas à posse e porte de arma (43% no intervalo de cinco anos) deriva das campanhas do desarmamento, por duas razões diretas: a diminuição do porte ilegal e a extinção dos processos de posse ilegal (cada vez que o governo prorroga prazo para devolução de armas, exclui a possibilidade do crime de posse ilegal, já que donos de arma podem entregá-las).
É importante observar também que o porte ilegal de armas é absorvido quando empregado em um roubo, por exemplo, e não engrossa tais estatísticas.
De outro lado, o tráfico de entorpecentes continua em crescimento e as denúncias por uso de entorpecentes representam nada menos que o dobro dos processos por homicídios.
A legislação mais rigorosa quanto ao tráfico não diminui a prática do crime, como, aliás, já se sabia desde a edição da Lei dos Crimes Hediondos .
Por fim, o tratamento de uma questão de saúde pública (uso de entorpecentes) no âmbito da segurança pública tampouco tem apresentado algum resultado satisfatório – o número de acusações por uso de drogas, como se percebe, mantém-se estável.
A pesquisa apresenta muitos outros dados que permitem que especialistas neles se debrucem: percentual de condenações, sanções aplicadas na área da infância de juventude; inquéritos e ações civis públicas. Pelo que se vê, por exemplo, há muito mais condenação nas ações penais movidas pelo MP do que nas ações civis públicas, o que pode abrir um interessante campo de pesquisa sobre a própria atuação do Judiciário.
Os olhos nem sempre prestam atenção aos mesmos números. Muitas conclusões podem ser tiradas de uma mesma estatística e certamente serão.
As minhas são as seguintes:
a) a comemoração quanto à “redução da criminalidade” no Estado é apressada e exagerada;
b) a continuidade do processo de desarmamento é necessária;
c) não se pode mais esperar para a abertura do debate sobre descriminalização. A repressão claramente não está funcionando na seara dos entorpecentes.
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