….defensoria como efetivação do acesso à justiça….

A Defensoria Pública tem o DNA da inclusão no sangue e é a principal porta de acesso da população carente ao Judiciário

O texto que segue foi a base para a palestra “Defensoria Pública como instrumento de efetivação do acesso à justiça”, proferida no Seminário de Implantação da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Maranhão, no dia 13/12/11, em São Luís.

Na ocasião, além da implantação da Escola e posse de seu primeiro diretor, Cristiano Matos de Santana, foram realizados também painéis com a exposição de Fábio Souza de Carvalho, Marlon Jacinto Reis e Ozanira Silva e Silva.

Defensoria Pública como instrumento de efetivação do acesso à justiça

É uma enorme satisfação estar presente em São Luís para discutir o papel da Defensoria e o acesso à justiça, dois temas que me são muito caros.

Agradeço enormemente o gentil convite e espero poder retribui-los com o mesmo prazer que é para mim conversar com vocês.

Tenho o costume de dizer que é entre os defensores que encontro o meu mais carinhoso habitat no meio jurídico. Digo isso não apenas por que tenho muitos amigos defensores públicos e com eles convivo com frequência. Mas, sobretudo, porque a Defensoria representa um papel primordial na minha concepção de justiça.

A ideia de uma balança que equipara grandes e pequenos, no meio de uma floresta de tamanhas desigualdades, a noção de dar a cada um o que é seu, nessa terra de tantos despossuídos, e de despossuídos de tanto, o papel do juiz de garantidor da dignidade humana, onde ela tende a ser tão rara e tão esquecida.

Nada disso se aperfeiçoa sem o concurso da defensoria pública.

A Defensoria é mais do que uma instituição indispensável à justiça. É protagonista dela, não apenas coadjuvante.

Tenho boas lembranças também da cidade de São Luis. Aqui realizamos, em 2005, quando estive na presidência da Associação Juízes para a Democracia, nossa primeira reunião de diretoria fora da sede, em São Paulo. Nascidos de um grupo de 37 juízes paulistas, experimentávamos, então, os primeiros frutos de uma política que fez nossa Associação exercer gradativamente sua vocação nacional. Pude conhecer aqui juízes valorosos, dignos mas também indignados, como convêm aos juízes para a democracia.

Neste 2011, completamos nossos primeiros vinte anos. E continuamos firmes e fortes, no mesmo propósito de construir uma sociedade mais livre, justa e solidária, com o Judiciário que se assuma como instrumento de uma democracia além das formas e das formalidades.

E neste desenho de Justiça, que mira na proteção e emancipação dos menos favorecidos, a presença da uma defensoria pública forte, atuante e autônoma, é nada menos do que essencial.

Não é por outro motivo que a AJD tem continuamente se engajado nos Movimentos para a Criação da Defensoria Pública. Participou em São Paulo durante vários anos e participa atualmente em Santa Catarina. Somos solidários e mais do que isso ativistas para o fortalecimento de todas as Defensorias já criadas, convictos de que ainda estão em condições aquém das necessidades que as aguardam. Não é surpresa, todavia, porque as políticas sociais são sempre postergadas. E não nos enganemos, nada que diz respeito ao povo é conquistado sem dor, sofrimento e pressão.

Acessar a Justiça é um Direito Humano. E a Defensoria é a principal porta de acesso da população carente ao Judiciário.

Falemos um pouco do Judiciário, primeiro.

O retrato mais comum do Judiciário hoje é o gargalo. Se pudéssemos representar o Judiciário em uma imagem, quantos de nós não pensaria na fotografia de um engarrafamento de veículos ?

Poder Judiciário incapaz de resolver em tempo razoável o expressivo volume de suas demandas. A modernização do ditado já nos leva a dizer: a justiça que tarda, falha.

Penso, no entanto, que é preciso estender um pouco a visão.

Se é verdade que o Judiciário está entupido de processos, de outro lado ainda está carente de demandas.

Há uma nítida mistura entre nós de excesso e escassez, principalmente porque persistem enormes estratos da população que ainda são invisíveis para o Estado, que dirá para o Judiciário. Invisíveis, óbvio, excetuando-se o sistema criminal, onde são clientes preferenciais.

Penso que a distribuição dos custos da justiça também é desproporcional. Os atrasos e as dificuldades, as alegrias e principalmente os sofrimentos do sistema, não são sentidos ou suportados da mesma forma por todos os seus usuários.

Duas pesquisas recentes divulgadas pelo CNJ indicam de forma visível essa desproporção:

45% dos presos são provisórios –com processos que ainda não terminaram;

Entre os 100 maiores litigantes nos tribunais superiores, além dos órgãos públicos, só se encontram bancos.

Em um tétrico e simplificado resumo: os pobres continuam superlotando cadeias, enquanto ricos entopem tribunais.

Tudo isso para dizer que não existe no Judiciário apenas um único problema: a lentidão.

Durante muito tempo, nos concentramos na economia como se existisse apenas a inflação. Mas quando a inflação ficou sob controle, nem por isso se pôde dizer que a desigualdade social (que é de fato nosso problema mais agudo) havia sumido com a estabilidade.

Além de não ter instrumentos para julgar em tempo razoável as demandas que nele ingressam, o Judiciário de certa forma reproduz a desigualdade que lhe incumbia reduzir.

Durante muito tempo, o Judiciário se colocou ao largo de sua ineficiência, responsabilizando o Executivo, pela falta de recursos financeiros e o Legislativo, pelo excesso de recursos processuais.

Com a reforma, o Judiciário começa a se convencer de que também é parte do problema, o que é extremamente positivo e que se deve em grande medida à própria criação do CNJ, quebrando uma visão cartorial e quase coronelista dos Tribunais.

Instaurou-se, assim, a ideia de que Justiça padece de problemas de gestão. Isso pelo menos nos fez olhar um pouco mais para nós mesmos e afrontar nosso histórico tradicional de arrogância. Não fosse por nada, só por isso valeu a pena.

Mas a visão gerencial da justiça não a esgota.

É preciso ter em conta que postulados de eficiência, organização e método não são suficientes para a solução de todos os problemas e em seu nome, alguns efeitos colaterais também são produzidos.

Indicadores, metas, objetivos e resultados são importantes instrumentos para a política da eficiência (obtenção do resultado a menor custo).

Mas sempre é bom ter em conta que Judiciário também deve ter uma dimensão ética (ou seja, o resultado não pode ser alcançado a qualquer custo).

Não é porque gastamos recursos para trazer presos ao Fórum, que vamos negar a eles o direito de estar presentes fisicamente à audiência, ao lado de seu defensor e diante de seu juiz.

Judiciário deve ter também uma função emancipatória (ou seja, também não é qualquer resultado que nos interessa).

Não é porque os tribunais estão abarrotados, que devemos limitar abrangência dos Habeas Corpus –o novo discurso da moda dos tribunais superiores. Justiça deve ser a garantidora de fruição dos direitos constitucionais. Estamos aí para abrir portas e não fechar caminhos.

Temos de ter o cuidado, mesmo quando pensamos em agilidade, eficiência e gestão de não jogar o bebê, junto com a água do banho.

E, concluindo esse breve diagnóstico, diria ainda que não devemos ter a ingenuidade de considerar que é possível modernizar o Judiciário, sem ao mesmo tempo democratizá-lo.

O Judiciário ainda é um poder extremamente oligarquizado, que se divide em castas e que dá pouquíssimo valor ao conjunto de seus membros. Se o tratamento é desigual internamente, como esperar que nos livremos do elitismo de que tanto nos acusam?

Na democracia, não deve haver áreas de sombra, lugares em que seus postulados estejam interditados.

Mas democratizar o Judiciário também significa construir pontes para seu acesso –afinal, Judiciário é um serviço público de primeira necessidade e não pode simplesmente obstruir suas entradas.

Comecemos do princípio.

Nenhuma política de acesso à Justiça é mais importante do que uma educação pública de qualidade –quem não conhece, não exige, não se defende, não pressiona.

É fato que a distribuição de renda no Brasil é extremamente desigual; e a distribuição de educação é ainda mais profunda, o que termina por condenar grandes parcelas da população a subempregos e subsalários. Temos feito avanços, hoje contestados por suas virtudes, não por seus vícios. Mas não podemos deixar de reconhecer que ainda são passos tímidos.

Mesmo no que respeita à Justiça, a compreensão dos direitos é extremamente fragilizada: pouco se sabe, muito se teme.

Há um nítido desconforto e insegurança de parcelas expressivas da população quanto a sua própria posição de credor de políticas. Muitos são levados a crer que direitos fundamentais, inscritos e encravados na Constituição, são ainda meras concessões a que devemos agradecer a quem nos oferece. Situação que favorece quem ser retribuído na eleição.

No cotidiano, ainda existe um enorme desconhecimento de situações que acabam por ensejar, muitas vezes, prática de ilícitos ou vitimizações pela população mais carente.

Lembro de questões que vejo no dia a dia na Justiça Criminal. A aquisição por parte das pessoas de menor instrução de bens sem qualquer documentação ou segurança.

Algumas vezes são processadas por receptação, porque delegados, promotores e juízes avaliam que elas não tomaram medidas de cautela que um comprador normal (normal, no nosso padrão de normalidade, ou seja com instrução) teria tomado; em outras, são vítimas frequentes de estelionatários, como acontece em loteamentos irregulares.

Há, sem dúvida, ainda um enorme estranhamento diante da própria Justiça, seja pela desconfiança, seja pelo medo.

E não se pode dizer exatamente que o Judiciário de alguma forma auxilie a quebrar essa barreira.

O poder ainda é construído de forma imperial, nossos edifícios são Palácios, nossos tribunais são Cortes, e nossas vestes e linguagens rebuscadas intimidam e em muitos casos afastam a população da justiça.

Não é desconhecido, por exemplo, o caso de um juiz trabalhista que não permitiu que um operário acompanhasse audiência de seu processo calçando chinelos de dedo –que considerou um desrespeito. Depois da enorme repercussão negativa do caso, arrependido, o próprio magistrado comprou um par de sapatos ao reclamante.

Mas não compreendeu que não são as partes que devem se vestir de gala para ir ao Fórum, mas os juízes que devem se despir de seus mantos para alcançar o povo –ele é nosso patrão, por mais estranho que isso possa parecer a quem se acostumou a se conceber apenas como autoridade. É para ele que trabalhamos e a consecução de seus direitos é que justifica nossos salários.

Eu diria, mais, que há desconhecimentos de parte a parte e que os juízes, em grande medida também não conhecem a realidade de nossos habitantes mais humildes.
Lembro de um caso muito paradigmático para mim, que era de um furto de energia. A Defensora Pública, conversando com o réu antes da audiência, ingressa na sala para dizer que ele ia confessar, que as duas testemunhas arroladas pela própria acusação também iam confessar. Todos no bairro, há anos, se utilizam de ligações clandestinas, porque o estado não liga a energia no bairro diante da irregularidade dos imóveis –que são, todavia, objeto de tributos. Toda a instrução se direcionou a este fato, confirmado pelos próprios policiais: como julgar o furto de energia em um bairro no qual o Estado se recusa a fornecê-la? Quem consegue nos dias de hoje viver sem energia?

Evocando aqui Roberto Lyra Filho, pode-se dizer que nosso direito ainda é predominantemente encontrado nos livros, não achado nas ruas.

Não bastasse o desconhecimento de muitas realidades, a formação do operador do direito é uma formação calcada no positivismo jurídico.

Nas teorias puras que aprendemos nas escolas de direito, só a lei “positiva” conta. Todo o seu entorno, nos ensinam, está fora do direito. Mas como interpretar a lei, com autonomia, daquilo que forma o próprio direito, seus conflitos, suas tensões? O direito existe para a vida e não a vida para o direito.

Neste positivismo a que nos rendemos, o legalismo expulsa a justiça, a forma fulmina o conteúdo, as regras alienam os princípios.

Costumo lembrar o caso do direito ao silêncio, garantido em 1988. Durante muitos anos, juízes continuaram advertindo os réus que o silêncio era um direito, mas podia ser interpretado a seu desfavor, como estava consignado no Código de Processo Penal até poucos anos atrás. E muitos réus foram condenados a custo de um suposto “silêncio na lavratura da prisão em flagrante”, sob o falso e ilegítimo fundamento de que um inocente jamais se cala.

Só quando a lei infraconstitucional mudou, isso de certa forma se atenuou. A mudança da lei teve um efeito mais decisivo do que a mudança da Constituição.

Nas escolas da magistratura, organizam-se visitas a academias de polícia, bolsa de valores e até laboratório de análises clínicas. Mas que contato temos com as comunidades carentes? Como reconhecer o seu “padrão de normalidade” que vai guiar nossos juízos?

Na hora de criar soluções, por óbvio, não saem das nossas fronteiras e acabam por atender basicamente a demandas amplificadas pelas revistas semanais, como os juizados nos aeroportos, quando o problema do transporte público terrestre é muito mais grave, há muito mais tempo e envolve um número muito maior de usuários.

O acesso à justiça é, sobretudo, acesso a uma ordem jurídica justa.

Falar em acesso à justiça, portanto, pressupõe igualdade, mas é preciso convir que o universo legal conspira todo ele pela desigualdade.

As regras são distintas para grandes e pequenos e os exemplos são fartos.
Para a cobrança bancária, a legislação chegou a criar até o mecanismo de prisão (hoje sepultado pelo STF), na chamada alienação fiduciária. Agora, para ações contra os bancos, já é uma enorme dificuldade considerar incluídas no direito do consumidor.

A tutela penal, então, é predominante da propriedade privada –não é a toa que a população presa é a mais destituída de patrimônio. Seletividade se inicia na vigilância –para onde direcionar as luzes da polícia, estaremos direcionando os réus em juízo.

O direito à propriedade se sobrepõe à moradia; frustrar direito à moradia não é punível, frustrar direito à propriedade é crime.

O sistema de justiça como um todo acaba, com esses parâmetros invertidos, por reproduzir desigualdades.

E infelizmente, a desigualdade legal normalmente se opera em favor do forte.

É o que vemos na preservação da “síndrome dos desiguais”: foro privilegiado para autoridades, a prisão especial aos diplomados, a imunidade parlamentar a políticos.

E não se pode negar que o próprio garantismo dos tribunais superiores ainda não está ao alcance de todos.

Importante é compreender essa realidade, entender que a lei não é neutra, e compreender o papel do juiz, que também não pode ser neutro. O juiz neutro dissemina a violência do poder, ao invés de cumprir a sua função constitucional de ser o garantidor dos direitos.

É essa tensão que dimensiona a extrema relevância do papel da Defensoria Pública.

A Defensoria é, por excelência, a principal porta de acesso à justiça para a população carente –provavelmente a única.

A “assistência jurídica” prevista na Constituição hoje, como vocês bem sabem, é maior do que a antiga noção de “assistência judiciária”.

Inclui orientação prévia, bem ainda educação jurídica, de cidadania, destinada a propagar o conhecimento dos direitos. Defensores não são e não podem ser mero instrumentos ad-hoc, para formalizar audiências.

O papel dos defensores tem um importante cunho emancipatório: conhecer as necessidades e organizar a sociedade para reclamá-las.

A Defensoria é capaz de atacar os dois pontos do problema de acesso à justiça: educação e desigualdade.

Política pública de assistência jurídica passa necessariamente pela criação, instalação e estruturação da Defensoria Pública como um “Sistema único de Assistência Jurídica” –não um remendo de improvisações ou terceirizações que sustentem meros interesses corporativos e outros interesses inconfessáveis.

A Defensoria Pública foi instituída pela Constituição Federal de 1988 e é incompreensível que, em vários Estados, depois de duas décadas, tem tido tantas dificuldades de se instalar efetivamente.

Em São Paulo, por exemplo, demorou 18 anos para ser criada e mesmo assim, com um número de profissionais muito inferior ao necessário para o atendimento à população carente –são apenas 500 defensores para mais de quarenta milhões de habitantes.

Outros Estados ainda não a instalaram e Santa Catarina nem a criou.
Penso que é a hora de além de denunciar o descaso dos governos estaduais, instar também o governo federal para assumir o seu papel de formador de política públicas e trabalhar com uma ideia que lhe é muito familiar, o sistema de contrapartidas.

Se o Ministério da Justiça pode investir milhões de reais para a construção de presídios pelo país, porque não exigir, como condição, a criação ou fortalecimento das defensorias nos Estados que ajuda?

Se cerca de vinte mil presos foram soltos com mutirões carcerários realizados pelo CNJ, quanto se poderia economizar garantindo defensores a todos os presos, em todos os presídios? Se a linguagem do poder é do orçamento, ainda assim a Defensoria é superavitária.

Para tratar a Defensoria como verdadeira política pública é essencial fazer dela uma instituição forte, autônoma e independente –sem depender de afagos do governo, com quem pode ter de litigar judicialmente.

Se a Defensoria serve ao poder, quem defenderá os pobres da violência estatal? Quem vai garantir que os carentes não sejam simplesmente removidos de suas moradas ou das ruas para embelezar ou higienizar cidades?

É preciso dotar a defensoria de instrumentos que tornaram forte a instituição do Ministério Público.

Não penso aqui em criar prerrogativas para transformar, como autoridade, defensores em promotores – não falo de carteirinhas ou carteiradas, porte de armas ou períodos de descanso.

Penso em que se crie condições para a efetiva defesa dos mais necessitados, hoje em tratamento francamente desigual, por exemplo, nas lides penais.

Disse isso no Congresso Nacional dos Defensores Públicos: se me perguntarem como traduzir o garantismo em uma só medida, eu lhes diria: marcação homem a homem. Onde houver um juiz e um promotor, deve haver também um defensor público.

O crescimento do Ministério Público, em especial depois da Constituição de 1988, foi extremamente positivo para o Estado Democrático de Direito –a proteção do meio ambiente e da probidade administrativa que o digam. Não há porque imaginar que o crescimento da DP também não o seja.

Se é certo que o Ministério Público é o advogado da sociedade, a Defensoria Pública é a advogada de quem quer fazer parte da sociedade, de uma população ainda marginalizada, inclusive na Justiça.

A Defensoria Pública tem o DNA da inclusão no sangue e pode se revelar um instrumento eficaz na luta pela redução das desigualdades, que, não esqueçamos, não é apenas uma plataforma partidária, bandeira programática ou letra morta de pura poesia: a redução das desigualdades é um objetivo fundamental da República.

Outra questão essencial para o acesso à justiça é o fortalecimento das ações coletivas, hoje uma absoluta exceção no movimento forense.

Infelizmente o dogmatismo sempre apostou no julgamento de ações individuais, inclusive para evitar disputas de classe.

Isso é que Boaventura Santos denominava trivialização de conflitos. A legislação sempre foi tímida quanto à possibilidade de conflitos coletivos e a reposta dos tribunais, extremamente restritiva.

Toda sorte de obstáculos processuais foi criada para as causas coletivas. De modo que o STF é especialmente responsável pela imensidão de “pedidos idênticos” do qual hoje se queixa.

Lembro-me de uma demanda de estudantes de seis anos que estavam saindo das escolas municipais e impedidos de começar estudos nas estaduais. O MP ingressou com ação civil pública, que foi barrada pelo TJ. Ao final, foram dezenas de milhares de mandados de segurança que acabaram nem sendo julgados, porque, no meio do caminho, as crianças completaram sete anos.

E hoje, ao invés de fortalecer os institutos das ações coletivas, a reforma do judiciário preferiu concentrar a jurisdição para dar valor coletivo a decisões individuais.

E se as ações coletivas são essenciais para a promoção das políticas públicas, e são via de regra propostas contra o Estado (que é quem está no débito das ações sociais), mais uma razão para o fortalecimento da Defensoria, inclusive na indispensável legitimidade para as ações civis públicas.

Se o ativismo judiciário admite discutir políticas públicas em processos judiciais, a meu ver corretamente, é sinal ainda mais evidente de que o acesso à justiça também é acesso a políticas públicas.

E quem mais é carente de políticas públicas do que a população mais pobre?

A autonomia da DP é indispensável para, por exemplo, exigir criação de vagas em escolas públicas ou um transporte coletivo que garanta a dignidade, desnudando a falta de políticas sociais.

Em caso contrário, o que acontece é que, também pela via da Justiça, os pobres serão os que menos atingirão as políticas públicas –parte disso já ocorre na questão dos remédios, os que mais tem acesso a médicos particulares é justamente os que mais buscam remédios de alto custo na justiça.

Tudo o que devemos fugir é privilegiar quem menos precisa.

Juizados Especiais foram criados para simplificar e baratear a justiça. No início, eram feitas apenas sessões à noite, justamente para possibilitar que os trabalhadores tivessem acesso a ele, após o serviço.

Os Juizados acabaram despertando uma enorme demanda reprimida (daqueles que queriam entrar em juízo sem pagar advogados).

Mas é certo que hoje, predominantemente, tem-se um Juizado afeto a questões de classe média: aumento de planos de saúde, mensalidades escolares, assinatura telefônica, acidentes de veículo, TV a cabo, atrasos e cancelamentos de viagens aéreas etc.

As classes populares ainda não têm sido convidadas a participar desta experiência, ou talvez não se sintam à vontade na casa da Justiça, ou não tenham o conhecimento suficiente para transformar suas necessidades, que não são poucas, em demandas.

Espera-se profundamente que esse quadro também mude com o fortalecimento da Defensoria.

Se pudesse fazer algumas recomendações, diria para que vocês jamais se dispam de sua condição anfíbia, aptos a andar nos chãos de terra e ao mesmo tempo conviver com o discurso das togas.

Essa interlocução com os mais carentes nos ajuda a conhecer realidades que não dominamos; permite que vocês transformem as necessidades em pedidos, evitam que nós, juízes, nos acomodemos dentro de nossa redoma.

Que por intermédio das formas como vocês escutam as prioridades das camadas mais carentes (conferências, ouvidoria externa, abertura nos conselhos, encontros estaduais), vocês se mantenham permanentemente permeáveis pela sociedade, de modo que possam nos transformar, e não apenas se transformar naquilo que somos.

Nós precisamos diuturnamente de ataques a nossa sensibilidade. O defensor transforma o juiz ao longo do tempo. Como costumo dizer, citando Arnaldo Antunes: o seu olhar melhora o meu.

A vocês cabem escancarar as contradições e as injustiças, a cada dia, em cada processo, por cada réu ou autor, para nos manter atentos e vigilantes na construção da justiça.

E, sobretudo, tensionar as novas interpretações e forçar que os avanços de uns juízes sejam espalhados a outros –vocês, mais do que ninguém, tem essa capacidade de nos polinizar com boas novidades.

Tenho me batido pela questão do fortalecimento das instituições e penso que devemos extirpar desse processo os ciúmes e as vaidades.

A magistratura também reagiu ao crescimento do MP e somente depois fomos nos dar conta da importância de um parceiro institucional forte; acontece o mesmo hoje com o Ministério Público em relação à Defensoria. Os promotores hão de entender que mais do que concorrentes, vocês são parceiros na construção do Estado.

E o crescimento institucional da Defensoria também deve puxar o da advocacia pública, dada importância para todos, numa república, de uma advocacia de Estado, desvinculada dos caprichos do governante de plantão.

O fortalecimento das carreiras de Estado, fortalece, em suma, o próprio Estado. E só o Estado é capaz de reduzir tantas desigualdades e injustiças –já sabemos que o mercado não o é.

Juntos, devemos reagir ao ataque especulativo contra o Estado que o legado neoliberal persegue sem cessar, fazendo parecer que o Estado é um grande fardo: pesado como um elefante, custoso, ineficiente, que por isso deve ser reduzido, quando não definitivamente abandonado.

Mas a realidade nos mostra exatamente o contrário, que mais Estado é melhor do menos Estado, que a falta de Estado expõe os mais pobres à lei da selva, onde não têm a menor chance. E que a mão do mercado, diferentemente do que se apregoa, é extremamente visível e enormemente desigual.

Mas defender o Estado não é defender o estado de coisas.

É preciso se apropriar do Estado para inverter a perversa lógica dos privilégios, de modo a fazer com que sirva ao povo que mais dele necessite.

Não vejo ninguém melhor para realizar essa tarefa do que aqueles que por missão constitucional tem a busca da justiça aos mais humildes.

Que vocês se mantenham abertos a conhecer de fato as carências dos carentes, e por elas se guiarem para estabelecer suas prioridades, que consigam estrutura e tempo para participar da educação para a cidadania, esclarecendo e organizando as demandas, que perseverem traduzindo a linguagem do povo rompendo os formalismos que o distanciam da justiça, e que, sobretudo, continuem melhorando nosso olhar.

A democracia agradece.

2 Comentários sobre ….defensoria como efetivação do acesso à justiça….

  1. Charles Ferreira dos Santos 18 de dezembro de 2011 - 12:58 #

    É sempre bom lembrar que alguns Estados-membros ainda não constituíram sua Defensoria Pública!

  2. Ivana Lima Regis 18 de dezembro de 2011 - 20:46 #

    Belo texto, Marcelo!

    Em razão da gravidade e urgência da questão, aproveito para divulgar aqui a nota pública da Associação Paulista de Defensores Públicos (Apadep) e da Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep) contra o projetoi de lei complementar PLC 65/2011, que pretende transferir a gestão do Fundo de Assistência Judiciária (FAJ) da Defensoria Pública para a Secretaria de Justiça e Cidadania do Governo de São Paulo, colocando em risco a assistência jurídica gratuita no Estado:

    http://www.apadep.org.br/news/2011/2011/assistencia-juridica-gratuita-em-risco-no-estado-de-sp-apadep-e-anadep-emitem-nota-publica-urgente-1

    A lista das organizações da sociedade civil, juristas e intelectuais que assinaram a nota está em:

    http://www.apadep.org.br/news/2011/sociedade-civil-apoia-defensoria-contra-plc-65-2011/view

    Gde abraço.