O Direito penal é o único produto que quanto mais falha mais ganha prestígio
A morte do cinegrafista da Rede Bandeirantes no meio de uma manifestação é simplesmente deplorável.
Uma vida humana que se foi por um ato absolutamente sem sentido.
A injustiça da situação clama por qualquer ângulo que se observe. Santiago Andrade não estava em confronto, mas em trabalho. A ação que culminou com sua morte não diz nada aos protestos. Não repudia, não brada, não contesta. É só violência.
Mas daí a ser o estopim ou o pretexto para recrudescer a lei penal, não serve nem mesmo de homenagem a ele. É apenas subir no caixão para se aproveitar de um momento.
Já faz tempo, aliás, que se desenha um recrudescimento nas leis penais, baseado na eterna falsa premissa de que a lei mais rigorosa vai, enfim, por um ‘basta à violência’.
No caso da morte do cinegrafista, mas não só dela, o argumento é pueril.
Não é por falta de lei que quem praticou o fato ficará impune. Muitas vezes, o que falta é a investigação que identifique a autoria. No caso, ao que se indica, talvez nem isso mais.
Há vários tipos penais que podem servir ao caso, uma vez elucidadas as circunstâncias: não faltam leis que permitam a acusação, o julgamento e a aplicação das correspondentes punições.
Criar um tipo de terrorismo, tal como se propõe, draconiano e genérico, não vai impedir que outros crimes sejam praticados.
Mas pode servir para que uma série de atos políticos sejam suprimidos em nome do medo ou da tutela exacerbada, com tipos vagos e punições desproporcionais. Uma típica lei de exceção, enfim, como expliquei aqui.
O ânimo de endurecer a lei penal é antigo e incansável.
Sempre volta, em especial após crimes de grande repercussão. Mídia e parlamento costumam se dar as mãos nessas ocasiões.
Parte do raciocínio que a impunidade grassa no país –quando o Brasil caminha para atingir a liderança mundial de condenados.
Estamos dobrando nossas populações carcerárias em um tempo cada vez menor, mas o volume de prisões é inversamente proporcional aos recursos que investimos nelas.
O resultado tem sido o oposto do desejado: quanto mais prendemos, mais crimes ocorrem do lado de fora.
É bom lembrar que o PCC nasceu detrás das grades, após a Lei dos Crimes Hediondos e o recrudescimento dos maus tratos carcerários, resultado direto desse discurso apocalíptico e vingativo que faz sucesso hoje.
Os episódios lamentáveis de Pedrinhas falam por si só.
O Direito penal talvez seja o único produto que quanto mais falha mais ganha prestígio.
Quanto piores são os resultados do agravamento das leis (como no caso dos Crimes Hediondos), aumentam as propostas para agravá-las mais ainda.
A demagogia legislativa é um mal que acomete a muitos países –a forte penetração da questão na mídia influencia largamente candidatos e eleitores.
Criar uma lei penal ou aumentar as penas de um crime acaba sendo uma espécie de satisfação ao eleitor. Pouco importam as consequências, porque a política criminal oportunista só pensa no curtíssimo prazo. Mas a propaganda enganosa sempre cobra o seu preço.
A democracia dá um passo atrás cada vez que uma manifestação é coberta por violência –não importa de que lado venha. Um abuso jamais justifica outro, um retrocesso não apaga o anterior.
Mas esse passo se institucionaliza quando a pretexto de coibir a violência ou ingenuamente tentar evitá-la, nós endurecemos o sistema penal e comprimimos fortemente as liberdades.
Quando os crimes acontecem, e eles acontecem em todas as sociedades, todos os dias (com maior ou menor divulgação, maior ou menor espetáculo), a função do Estado, por seus órgãos, é apurar, julgar e punir.
Supor que uma nova lei, mais dura, mais rigorosa, mais implacável, vai impedir que os crimes ocorram, é abusar do medo industriado e da boa-fé dos cidadãos.
Mas de grão em grão, de passo em passo, esse consórcio entre autoritários de várias ideologias, que tem na violência uma língua em comum, vai esvaziando o espaço democrático e nos transformando em um Estado policial.
O pacto pela repressão é um pacto sem volta. Traga a liberdade e exige sempre mais.
Nunca haverá lei, crimes e penas suficientes para aplacar a ira, a vingança e a sede de poder que a repressão impõe.
Nem para calar os irresponsáveis que as alimentam do alto de seus confortáveis e lucrativos palanques.
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