Regra de um estado democrático deve ser a de averiguar para prender, não prender para averiguar
Enquanto a Comissão Nacional da Verdade ainda se debruça sobre casos de desaparecimentos da época da ditadura, o país foi tomado por uma pergunta incômoda demais para tempos de democracia: cadê o Amarildo?
Amarildo de Souza, pedreiro morador da Rocinha, foi visto pela última vez ao ser levado por policiais de uma unidade dita pacificadora. Teria sido confundido com um traficante e supostamente liberado.
Nunca mais foi visto, porém, depois da ação policial.
As câmaras existentes no local onde foi detido não estavam funcionando e inexplicavelmente o GPS da viatura ficou desligado.
A pergunta sobre Amarildo ainda não foi respondida, quase um mês depois de seu desaparecimento, mas outras questões indicam que o panorama da repressão, ao cabo de três décadas de redemocratização, segue produzindo novos esqueletos em armários.
Aliás, a ausência de julgamento das violências praticadas durante a ditadura, tem sido reconhecida por especialistas em direitos humanos, como um dos principais fatores de permanência dos abusos policiais.
No caso de Amarildo, ao que se indica, a ação se inicia com a tradicional prisão para averiguação, canhestra medida policial que carece de legalidade, independente do abordado ter ou não antecedentes.
A regra de um estado democrático deve ser a de averiguar para prender, jamais prender para averiguar.
A Constituição da República é expressa no sentido de que prisões só são efetuadas em flagrante delito ou com ordem judicial.
Mesmo a prisão temporária, exceção da custódia durante a investigação, também exige manifestação do promotor e decretação pelo juiz.
O caso de Amarildo não está esclarecido. Mas caracterizado o abuso, no entanto, estaria longe de ser isolado no panorama brasileiro.
Tanto como desaparecimentos mal explicados ou prisões pouco ou nada justificadas, continuamos sem aplacar a chaga da tortura, cujos reclamos de prática insistente em camburões, delegacias ou penitenciárias, permanecem íntegros no sistema penal.
A repressão acima dos patamares legais, a seletividade contundente nas abordagens, das quais jovens negros da periferia são objetos preferenciais, e o tratamento indigno a presos e processados fazem parte de um sistema criminal que ainda é abusivo e feroz.
Mas é preciso reconhecer que a responsabilidade não se limita aos escaninhos da polícia –a começar pelo Ministério Público, responsável por seu controle externo há um quarto de século.
Parte das violências, inclusive, se transformam em provas admitidas judicialmente.
Declarações de policiais são recebidas quase sempre como atestados de fé pública e, muitas vezes, mesmo quando incompletas ou contraditórias, tidas como suficientes para dar suporte a condenações criminais.
Reclamações de torturas são desprezadas, justamente porque partem de narrativas de réus.
Autos de resistências ainda sustentam arquivamentos de inquéritos de homicídios policiais.
Presos em situações desumanas nos presídios e familiares submetidos a condições vexatórias para visitá-los, fecham o círculo de abusos consentidos pelo sistema judicial.
Enquetes de jornais e comentários de internet muitas vezes nos levam a crer que a sociedade como um todo estimula a violência policial e aposta numa carta branca aos agentes da repressão.
Mas é uma verdade apenas parcial, apesar do forte estímulo ao sensacionalismo a que se rende a grande imprensa, na consagração de um estado policial.
A sensibilidade com o caso do pedreiro é uma mostra em sentido contrário, como os três julgamentos condenatórios, pelo júri popular, no impactante caso Carandiru. Como também já tinha sido a forte reação às cenas explícitas de violência policial na Favela Naval em 1997, que culminou com a aprovação da Lei da Tortura.
Por óbvio, ainda é pouco.
É preciso urgentemente inverter a lógica criminal da repressão numa cultura que reconheça, sobretudo, que os limites da dignidade humana são instransponíveis, mesmo, e principalmente, para os agentes do Estado.
Nem a lei nem a ordem podem servir de pretexto para sufocar liberdades que a humanidade custou a conquistar.
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