É ingênua a pretensão de modernizar o Judiciário sem ao mesmo tempo democratizá-lo.
Ativismo tem sido a marca mais frequentemente associada à recente jurisprudência do STF. Superando a tradicional passividade, nossa Corte Suprema tem se notabilizado por preencher lacunas da legislação e inovar quase sem limites. Expungiu o nepotismo por interpretação de princípios constitucionais, repristinou por via judicial a fidelidade partidária e fulminou a legislação de imprensa, supostamente em defesa da liberdade de expressão.
Voltando-se para dentro do Judiciário, porém, conferiu à Lei Orgânica da Magistratura uma interpretação literal e anacrônica, compatível ao próprio entulho autoritário que ela é. Prestigiou a antiguidade como critério absoluto aos cargos de direção, mesmo depois da reforma do Judiciário que amenizou o poder da gerontocracia, criando o acesso aos órgãos especiais por eleição. Fazendo coro aos riscos do ingresso da política nos tribunais, como se lá não estivesse, o STF assentou que apenas são elegíveis para os cargos de direção os desembargadores mais antigos na exata proporção dos cargos em disputa, praticamente eliminando a eleição. O resultado mais visível deu-se em São Paulo: o término da primeira gestão sob o “novo” entendimento foi marcado pela criação, no apagar das luzes, de uma norma que previu contratação de segurança para ex-presidentes e vices.
A Reforma do Judiciário extinguiu tribunais, conferiu autonomia à defensoria pública, constitucionalizou a incorporação de direitos humanos internacionais, garantiu como direito fundamental a duração razoável do processo. Mas é inegável que seu veio mais significativo foi a centralização e verticalização do Judiciário, concentrando maiores poderes jurisdicionais e administrativos nos tribunais superiores, notadamente o STF.
No âmbito jurisdicional, o STF é hoje, não apenas o tribunal da última palavra, mas também o da primeira, situação que lhe foi garantida com a prerrogativa de editar súmulas vinculantes. Com a combinação dos institutos da ADPF (Argüição de Descumprimento de preceito Federal), que funciona como uma espécie de avocatória da interpretação (determinando a todos os juízes como devem interpretar determinado artigo) e do instituto da repercussão geral (escolha de temas de relevância para o julgamento no Tribunal), e utilização da Súmula Vinculante para esvaziar o controle difuso de constitucionalidade. Tudo isso somado a um ativismo quase que desenfreado (na discussão sobre células-tronco, por exemplo, o tribunal esteve a um passo de afirmar que a constitucionalidade de seu emprego na pesquisa dependia da autorização de um órgão nem sequer mencionado na constituição; na demarcação da Raposa Serra do Sol, estipulou restrições e condições que o legislador constituinte não fez), tornou o STF um tribunal quase sem paralelo. A Súmula Vinculante que lhe permite criar normais legais com mais forças do que as geradas pelo legislador (que não podem ser descumpridas, nem sob o fundamento de inconstitucionalidade) foi comparada pelo jurista Canotilho como a possibilidade inédita de se criar constituição sem povo. Supostamente capaz de firmar por si só o garantismo constitucional, a conformação das competências do STF contraditoriamente reduz os espaços de independência do juiz. Como se ouve nas sintomáticas palavras do porta-voz deste novo super-poder judiciário, o presidente Gilmar Mendes, muito da saturação de hoje dos tribunais, se deveria ao independentismo dos juízes de outrora.
O Conselho Nacional de Justiça, a seu turno, conduzido também pelo presidente do STF coloca-se a postos para romper a arcaica administração dos tribunais, por intermédio de um sistema de otimização herdado da iniciativa privada: estatísticas, metas e resultados. Após hesitantes primeiros passos, o CNJ abriu mão de ser uma grande corregedoria, para tornar-se, essencialmente, um produtor de normas, editando resoluções que, substituindo-se às leis, pretendem disciplinar a administração dos tribunais e não raro a própria atividade jurisdicional. Louvável o empenho e o esforço em superar a nobiliárquica administração de nossas cortes, responsável em grande escala, pela criação de castas e imunidades. Verbas de modernização empregadas para renovação de veículos de representação e privilégios a desembargadores foram marcas da administração forense no correr das décadas. Por isso mesmo, conhecedor deste passado quase imperial, é que o CNJ não deveria cair no equívoco de querer modernizar o poder sem antes democratizá-lo. A eleição dos órgãos especiais foi disciplinada de modo a manter os então ocupantes em seus lugares e retardar a renovação; de outro lado, preocupou-se o órgão de controle em exercer uma tutela típica de inspetor de escola, proibindo juízes de tomar parte de direção de entidades beneficentes e estabelecendo código de ética recheado de imposições morais, mantendo assim inabaladas as estruturas hierárquicas de poder.
É preciso compreender os riscos da excessiva concentração de poder, seja pela redução da independência judicial, seja pela usurpação do papel do legislador contido nas Súmulas –não esquecendo que o STF é um tribunal escolhido todo ele pelo presidente da República, com protocolar participação do Senado. A mesma cautela vale para o CNJ, eis que não será possível modernizar o Judiciário sem abri-lo à democracia interna e ao controle da sociedade.
(leia também: Democracia e Modernização nos Tribunais)
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