….desmilitarizar as polícias….

Guerra contra as drogas é o motor da militarização da polícia

O artigo que segue foi publicado originalmente no jornal Juízes para a Democracia (versão on line disponível no site da AJD) pela juíza aposentada Maria Lúcia Karam, uma das mais lúcidas militantes contra o expansionismo penal e a criminalização dos entorpecentes.

No artigo, Karam critica veementemente a militarização da atividade policial, por intermédio das PMs, e mais ainda o efetivo emprego das Forças Armadas na segurança pública. Repudiando este paradigma bélico, pois policial deve ser agente da paz, aponta para uma importante correlação entre a militarização e a repressão ao tráfico de entorpecentes que a contamina:

“A ‘guerra às drogas’, motor da militarização das atividades policiais, não
se dirige efetivamente contra as drogas. Como qualquer guerra, não é uma guerra contra coisas. Como qualquer guerra, é uma guerra contra pessoas… Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, não-brancos, marginalizados, desprovidos de poder”.

A necessária e urgente desmilitarização das atividades policiais, Maria Lúcia Karam*

O policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, funções atribuídas às polícias militares estaduais na regra do § 5º do artigo 144 da Constituição Federal brasileira, são atividades típicas de polícia, que não se coadunam com a organização militarizada imposta pela distorcida previsão (no § 6º do mesmo artigo) de tais polícias como forças auxiliares e reserva do Exército.

A estruturação das polícias estaduais em organizações diferenciadas ainda cria
desuniões e competições, acabando por afetar negativamente a própria efetivação da segurança pública. Emenda constitucional que promova a reestruturação das polícias militares e sua unificação com as polícias civis decerto se faz necessária e urgente.

A desmilitarização das atividades policiais não pode se limitar, porém, a essa indispensável reestruturação e unificação das polícias estaduais. A necessária e urgente desmilitarização requer uma nova concepção das ideias de segurança e atuação policial, que, afastando o paradigma bélico, resgate a ideia do policial como agente da paz, cujas tarefas primordiais sejam a de proteger e prestar serviços aos cidadãos.

A prevalência dessa nova concepção não depende apenas de transformações internas nas polícias e na formação dos policiais. Há de ser, antes de tudo, adotada pela própria sociedade e exigida dos governantes.

No entanto, mais grave do que a existência de uma polícia militarizada no Brasil é a atuação das próprias Forças Armadas que, em claro desvio das funções que a Constituição Federal A necessária e urgente desmilitarização das atividades policiais lhes atribui, vêm sendo utilizadas em atividades policiais. O cenário do tão incensado novo modelo de policiamento iniciado no Rio de Janeiro – as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) – inclui tanques de guerra e militares com fuzis e metralhadoras, seja na ocupação inicial, como na Rocinha e no Vidigal, seja, como no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro, em que essa presença vai se tornando permanente, o Exército estando ali estacionado desde novembro de 2010.

Sob o pretexto de “libertar” as favelas dos “traficantes” de drogas, esse novo modelo de policiamento consiste na ocupação militarizada dessas comunidades pobres, como se fossem territórios “inimigos” conquistados ou a serem conquistados. No momento inicial da ocupação, chega-se até mesmo a hastear a bandeira nacional, em claro símbolo de “conquista” do território “inimigo”. A ocupação fortalece o estigma e a ideia do gueto. A ocupação sujeita as pessoas que vivem nas favelas a uma permanente vigilância e monitoramento, com frequentes revistas pessoais até mesmo de crianças por agentes fortemente armados, com revistas domiciliares sem mandado (ou
com algum vazio e igualmente ilegítimo mandado genérico).

A ocupação funciona como uma espécie de “educação” para a submissão. Sabendo-se e sentindo-se permanentemente vigiado, o indivíduo acaba por se adestrar para a obediência e a submissão à ordem vigente. O indivíduo permanentemente vigiado acaba por reprimir suas opiniões, por mudar seus hábitos, por ter medo de ser diferente, de questionar, acaba por se conformar aos padrões dominantes, acaba por aderir à submissão. Aliás, nos “guetos” denominados favelas, sob ocupação, qualquer manifestação de inconformismo de moradores, quaisquer denúncias de abusos acabam por ser esqualificados, sob a fácil alegação de que os autores dos questionamentos estariam ligados aos “traficantes”.

A proibição das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas é o
motor principal da militarização das atividades policiais. O paradigma bélico,
explicitamente retratado na expressão “guerra às drogas”, faz do “criminoso”
o “inimigo”. Em uma guerra, quem deve “combater” o “inimigo”, deve eliminá-
-lo. Os policiais brasileiros são, assim, formal ou informalmente autorizados e
mesmo estimulados, por governantes e por grande parte da sociedade, a praticar a violência, a tortura, o extermínio. Basta pensar que o “cinematográfico” Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro tem como símbolo uma caveira.

A “guerra às drogas”, motor da militarização das atividades policiais, não
se dirige efetivamente contra as drogas. Como qualquer guerra, não é uma guerra contra coisas. Como qualquer guerra, é uma guerra contra pessoas – os produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas substâncias tornadas ilícitas. Mas, é ainda mais propriamente uma guerra contra os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e consumidores. Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, não-brancos, marginalizados, desprovidos de poder, como os vendedores de drogas do varejo das favelas, demonizados como “traficantes”, ou aqueles que a eles se assemelham, pela cor da pele, pelo local de moradia, pelas mesmas
condições de pobreza e marginalização.

Os homicídios, travestidos em “autos de resistência”, praticados por policiais em operações nas favelas no Rio de Janeiro – em média, 20% do total de homicídios no estado – não deixam dúvida sobre quem são os “inimigos” nessa guerra.

Passo primordial e urgente para uma efetiva desmilitarização da atividade
policial, para afastar o paradigma bélico da atuação do sistema penal, é, pois, a
necessária e urgente mobilização para pôr fim à “guerra às drogas” e substituir
a proibição por um sistema de legalização e conseqüente regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.

*Maria Lucia Karam, membro da AJD, é Juíza de direito aposentada no RJ, membro da direção da Law Enforcement Against Prohibition
(LEAP) [www.leap.cc e www.leapbrasil.com.br]

Leia também: Greve recoloca questão da desmilitarização da polícia

4 Comentários sobre ….desmilitarizar as polícias….

  1. Roberto Luiz Corcioli Filho 26 de março de 2012 - 03:15 #

    Caro Marcelo, muito feliz a indicação do texto. E para quem tiver interesse em aprofundar-se sobre as questões tratadas, com texto da própria autora, há o excelente "A esquerda punitiva": http://pt.scribd.com/mobile/documents/74572563/download?secret_password=qalb2attxbwrmrpv7jp.
    Abraços,

  2. Apelido disponível: Sala Fério 9 de abril de 2012 - 19:41 #

    É fácil falar que tem que desmilitarizar as polícias, que a guerra é contra os pobres … mas como combater traficantes instalados em comunidades pobres, com apoio de moradores? Como combater gente armada até os dentes com granadas, AR-15, UZI e outras armas pesadas? Como combater o tráfico instalado na área pobre, que se nutre tanto dos pobres como da burguesia que pode pagar caro – e paga – pela droga?

  3. Anônimo 10 de abril de 2012 - 21:53 #

    A Drª Karam poderia nos dizer como funcionam as polícias do mundo todo. De preferência as mais eficientes…

    Obs.: Todos nós também sonhamos com um Mundo maravilhoso e sem violência.

  4. Anônimo 9 de abril de 2013 - 06:50 #

    Bom, concordo que não está certo o exercito atuar junto com a policia militar nas ruas e a forma como estão sendo feitas as ocupações e que tudo isso pode levar o PM a cometer abusos dentro da comunidade pacificada, pois realmente, uma pessoa vigiada tem medo de se expressar… tudo bem, concordo, mas qual é a solução?? Os traficantes nos morros estão armados dos fuzis mais potentes do mundo, eles simplesmente transformara as favelas em uma terra sem lei, eles é quem ditam as ordens, são eles quem decidem quem entra, quem sai… a situação é quase de uma guerra mesmo. como combater homens armados até os dentes nos altos dos morros que atiram qdo veem viaturas passando lá em baixo, ou abatem helicópteros que sobrevoam o território deles…como? como combater??? não dá pra ser de forma pacífica, não dá pra conversar… do mesmo jeito que a população não se expressa com a presença de pms e exercito, ela também está refém das ordens dos traficantes. Se, em uma favela, houver um abuso de autoridade, o cidadão ainda tem como ligar em uma corregedoria e denunciar, mas e se o traficante faz algum mal a esse cidadão, nem a polícia, nem o Estado, nem a lei poderá ajudá-lo.