Apresentação do livro editado pela Associação Juízes para a Democracia e Ed. LTr
Foi-se o tempo em que direitos humanos eram inequívocos sinais de evolução.
O racionalismo iluminista abrindo espaços para a consolidação de direitos individuais no sepultar do ancién regime; a incorporação de direitos econômicos e sociais no pós-guerra e a constitucionalização da dignidade humana apta a distinguir Estados democráticos daqueles meramente legais (onde toda sorte de atrocidades convivia pacificamente com as leis); o futuro moldado com base na construção de um edifício harmônico no sistema internacional de proteção.
Nos dias atuais, cada vez menos presentes ou suscitados, direitos humanos atuam como um conceito de resistência.
Não chegamos a era dos direitos, na expressão de Bobbio, mas vivemos cotidianamente a luta para evitar a sua supressão.
A rigidez dos princípios fundamentais dá lugar à fluidez conceitual; melhor, à flexibilização, eufemismo que vem instrumentalizando a pauperização paulatina e intermitente de uma extensa rede de garantias.
Moderno, então, é ser flexível, relativo, pragmático. Afinal, direitos não são rentáveis, não são práticos. Tumultuam, oneram e emperram o desenvolvimento. Mas quê desenvolvimento é esse que se faz sem direitos humanos?
Se de um lado o Estado diminui, de forma a agasalhar cada vez menos direitos, agiganta-se de outro para retomar formas rigorosas de controle e punição que se imaginavam sepultadas com a ascensão do liberalismo jurídico. Este Estado marcadamente desintervencionista (ou privatizante) se propõe a ser mínimo no social, garantindo fluidez ao mercado e aos mercadores, ao mesmo tempo em que se impõe como máximo no direito penal, evitando aparas e asperezas ao modelo de produção e distribuição dos bens.
Resistência, portanto, é um dos sentidos deste trabalho, porquanto também é um dos sentidos da existência de nossa associação.
Talvez ainda estivéssemos com olhos postos no futuro quando, no início do processo de redemocratização no Brasil, vários de nós tenham se lançado a escrever artigos, a questionar por dentro os vícios da estrutura judiciária, a tensionar os limites da até então minguada liberdade de expressão dos juízes. A impor, enfim, a figura do juiz-cidadão como condição necessária para a democratização da instituição. Algumas propostas, no entanto, chegam hoje a parecer nostálgicas, tanto que os sinais do futuro dos direitos se viram invertidos na sociedade pós-moderna.
Para nós, que iniciamos a jornada em 1991 com um grupo de 37 magistrados paulistas, a atual configuração nacional da Associação Juízes para a Democracia, com nervuras em todas as Justiças e regiões, não deixa de ser um retrato promissor. Mais ainda quando vivenciamos nesta quadra, e esta edição é significativa também por isso, uma histórica retomada ao ambiente trabalhista.
A luta pela extinção dos classistas, a pregação antinepotismo gestada nas entranhas da Justiça do Trabalho, a defesa do direito de greve e sua extensão aos servidores públicos. São temas que estiveram presentes no percurso da AJD por intermédio de artigos, notas e proposições. Retomamos ora este curso, estabelecendo diálogo com as novas questões que se apresentaram: a ampliação da competência da Justiça do Trabalho para as relações de emprego; a denúncia da precarização dos direitos trabalhistas; as críticas à terceirização embutida no novo cooperativismo; a solidariedade e a indignação com o abandono de trabalhadores à própria sorte, nas recuperações judiciais, pensadas sob o enfoque das instituições financeiras.
Nada mais trabalhista, contudo, do que a firme oposição da AJD às variadas propostas de revisão da Carta Magna por meio da alteração do quórum de emendas. Golpe constitucional, advertimos, eis que se dirigia a uma cláusula pétrea implícita. A integridade da Constituição cidadã deve ser preservada também porque reside nos direitos sociais o âmago desse ímpeto revisionista: alterar é, sobretudo, suprimir.
A premissa da resistência é a compreensão que guiou os trabalhos desta edição: os direitos sociais são direitos humanos.
Entre nossos objetivos estatutários destaca-se a promoção da conscientização crescente da função judicante como proteção efetiva dos direitos do homem, frase-substantiva que tem como predicado justamente a realização substancial, não apenas formal, dos valores, direitos e liberdades do Estado Democrático de Direito.
Independência, garantismo e direitos sociais, portanto, são valores indissociáveis.
Para cumprir este mister o juiz ativista precisará redesenhar o ordenamento a partir dos seus princípios. Como lembra Fábio Konder Comparato, estes encimam a pirâmide normativa, ainda que sua precária utilização no cotidiano forense, louvados como meras normas programáticas, ainda não lhes faça jus.
Os princípios são costumeiramente esquecidos, porque desprezados nos cursos de dogmática. São pouco aplicados, porque de alcance mais complexo e menos meridiano do que a leitura da regra legal. Estão enfraquecidos, também porque o atavismo da hermenêutica positivista sugere uma atitude sempre integradora das normas, dentro da qual as mudanças acabam engolidas pelas interpretações tradicionais.
Esperamos, de alguma forma, poder contribuir para uma interpretação a partir dos princípios, pois o Direito é maior do que o conjunto de suas leis. Nessa interpretação a interdisciplinariedade desempenha papel fundamental. A clausura habitual do aplicador do direito não pode levá-lo a bom termo. Nenhum ramo do conhecimento científico se permite a “pureza absoluta” com que se pretendeu tratar o direito. Como dizia Rousseau, a criança que conhece apenas a seus pais não os conhece verdadeiramente.
Ao completar dezesseis anos, continuamos ainda firmes nos propósitos originais da associação: o compromisso estatutariamente não corporativista; a defesa intransigente da independência do juiz e a democratização da Magistratura; a consideração da Justiça como serviço público; a defesa dos direitos dos menores, dos pobres e das minorias, na perspectiva de emancipação social dos desfavorecidos.
A promoção e a defesa dos princípios da democracia pluralista instiga a difusão da cultura jurídica democrática, o que pretendemos com essa obra. Crítica, interdisciplinar, provocadora. Comprometida, em última análise, com a iluminação ética do Poder Judiciário e com o aprimoramento valorativo da prestação jurisdicional. Que ela proporcione a seus leitores o mesmo prazer que balizou nossa caminhada.
Agradecemos àqueles que colaboraram para que esta empreitada se fizesse exitosa, em especial aos autores que generosamente emprestaram seus nomes, seus conhecimentos e seus compromissos a uma causa que engrandece a todos.
Marcelo Semer, presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia, 2007.
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