….Gerivaldo e o “Começar de Novo” do CNJ….


Como se começa de novo, sem nunca ter começado antes?

Ministro Cesar Peluso e o juiz Gerivaldo Neiva. O programa e a crítica

O artigo que segue é de autoria do juiz e blogueiro Gerivaldo Neiva e foi publicado originalmente no Blog do autor. Vale muito a pena ler. É uma reflexão serena, mas incisiva, e nada ingênua, sobre o programa “Começar de Novo” do CNJ, que busca reinserção profissional para presos e egressos do sistema penitenciário.

Como recomeçar o que não começou? -pergunta o autor, “promover a reinserção social de quem sempre viveu excluído da cidadania” -lembrando que 75,35% da população carcerária brasileira, incluindo os analfabetos, cursou até o ensino fundamental completo, ou seja, “desenham o nome” e não conseguem ler duas linhas.

Se então o grande entrave para a colocação no mercado de trabalho é a falta de escolaridade, indaga, “será que os presos estão tendo a oportunidade de estudar enquanto estão segregados?”

É preciso repensar o sistema punitivo, que tutela em grande parte o patrimônio e segrega, basicamente, a miséria, conclui.

Se começa de novo, sem nunca ter começado antes?, Gerivaldo Neiva*

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) estão realizando, ontem e hoje (05 e 06/09), O Encontro Nacional do Programa Começar de Novo, em São Paulo. O objetivo do encontro, segundo publicado no site do CNJ, seria “mostrar ao empresariado de todo o País as vantagens da oferta de cursos de capacitação e de emprego para detentos e ex-detentos – uma vez que, além da promoção da cidadania e da prevenção da reincidência criminal, são vários os benefícios desse tipo de contratação”.

Oficialmente, o Programa Começar de Novo “visa à sensibilização de órgãos públicos e da sociedade civil para que forneçam postos de trabalho e cursos de capacitação profissional para presos e egressos do sistema carcerário. O objetivo do programa é promover a cidadania e consequentemente reduzir a reincidência de crimes”.
A tônica dos discursos, como não poderia deixar de ser, pelo que se vê publicado no site do CNJ, é a “ressocialização”. Todos falam nisso como a salvação da lavoura para o problema dos egressos do sistema penitenciário brasileiro.

Em palestra proferida ontem, por exemplo, o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), José Pastore, defendeu a reinserção social de ex-presos no mercado de trabalho como estratégia para combater a criminalidade no país, afirmando estar convencido de que o trabalho para ex-detentos ajuda a reduzir a reincidência no crime. “A reinserção via mercado de trabalho é absolutamente estratégica para se reduzir a reincidência”, disse. Leia mais

Também ontem, o Ministro Peluso, presidente do CNJ, defendeu a “reinserção social” e a “conscientização dos detentos sobre a possibilidade de começar uma vida nova”.

Além disso, observou o Ministro Peluso que “o Brasil tem uma das maiores taxas de reincidência criminal do mundo, da ordem de 70%.” Como solução para este problema, defendeu o presidente do CNJ: “O Estado e a sociedade organizada devem criar e fomentar políticas públicas que permitam meios para esse recomeço e, paralelamente, propiciem a conscientização daquele que errou, de modo que passe ele a entender qual sua função, seus deveres e direitos diante da coletividade na qual passará, novamente, a conviver.”

Evidente que o objetivo do “Começar de Novo” é da maior importância e seus idealizadores, sem dúvida alguma, quando da sua elaboração, foram movidos por propósitos mais bem intencionados possíveis. Da mesma forma, não tenho a menor dúvida que o Ministro Peluso está movido pela melhor das intenções ao defender a conscientização dos presos para começarem uma vida nova.

De outro lado, sem querer retomar a discussão acerca da impossibilidade de “reinserir” o que nunca foi “inserido”, ou seja, promover a reinserção social de quem sempre viveu excluído das garantias constitucionais e condições mínimas de cidadania, bem como questionar o “romantismo” do Ministro Peluso em “conscientizar detentos sobre a possibilidade de começar uma vida nova”, penso que o Programa Começar de Novo, antes de pedir um emprego para os egressos do sistema, deveria considerar as seguintes informações sobre o nível de escolaridade da população carcerária brasileira.

Ora, segundo dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, 75,35% da população carcerária brasileira, incluindo os analfabetos, cursou até o ensino fundamental completo, ou seja, “desenham o nome” e não conseguem ler duas linhas. Ainda segundo o Infopen, 10,6% dos detentos tem o ensino médio incompleto e mais 7,32% tem o ensino médio completo, ou seja, considerando o ambiente de sua formação e a qualidade da educação que tiveram acesso, os participantes deste grupo – 17,92% (ensino médio completo e incompleto) devem assinar o nome em letra corrida, mas incapazes de ler um texto de dez linhas.

Sendo assim, somando-se aqueles (até o fundamental completo e que desenham o nome, mas não leem duas linhas) com estes (até o médio completo e assinam o nome, mas não leem dez linhas), o percentual chega ao número absurdo de 93,27% da população carcerária brasileira.

Pois bem, se um dos empresários da Fiesp se sensibilizar com o Começar de Novo e oferecer vagas para detentos com o ensino médio completo, os candidatos seriam apenas 7,32%. De outro lado, segundo os dados do Infopen, caso as vagas sejam destinadas a detentos com o ensino superior incompleto, os candidatos seriam apenas 0,7%; se for para os detentos com o ensino superior completo, os candidatos seriam apenas 0,41% e se for para os que tem acima do curso superior, os candidatos seriam 0,016%.

O problema é que o mercado, mesmo para a construção civil mais pesada, anda a reclamar da qualidade da mão-de-obra nacional. Sendo assim, o que o mercado e a sociedade tem a oferecer para 93,27% da população carcerária deste país, que mal sabem assinar o nome, além da reincidência? Aliás, não é mera coincidência que o percentual de reincidência (70% segundo o Ministro Peluso) seja parecido com o percentual de detentos que apenas “desenham o nome” (75,35%, segundo o Infopen).

Ora, se então o grande entrave para a colocação no mercado de trabalho é a falta de escolaridade, será que os presos estão tendo a oportunidade de estudar enquanto estão segregados? Nem tanto. Segundo o Infopen, apenas 8,97% dos presos estão estudando. Dos estudantes, 23,94% ainda estão na alfabetização, 55,05% estão no ensino fundamental e apenas 16,15% estão cursando o ensino médio. Mais uma vez, um número desanimador: apenas 8,97% dos presos estudam e 78,99% desses estudantes estão ainda na fase (até o ensino fundamental) de aprender assinar o nome e ler duas linhas.

Para terminar, queria muito pensar como o ilustre Juiz Luciano Losekan, auxiliar do CNJ e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ), ao defender o engajamento da sociedade no Começar de Novo por entendê-lo como uma “luz no fim do túnel para os detentos, diante de um sistema carcerário falido, que não passa de depósito de seres humanos”.

Como não sou assim tão otimista, volto aos dados do Infopen e verifico que 50,42% dos presos desse país cometeram crime contra o patrimônio (furtaram ou roubaram) e que 23,47% praticaram crime de tráfico, ou seja, que 73,89% dos presos desse país estão presos porque furtaram, roubaram ou traficaram e não tem qualquer formação profissional, pois nada ou quase nada estudaram no ensino regular.

Em vista disso, agora terminando definitivamente, penso que precisamos todos – desde o ensino jurídico ao CNJ e passando por todos os chamados “operadores do direito” – repensar o sistema punitivo e carcerário brasileiro, embasando qualquer teoria ou programa na realidade das periferias das grandes cidades desse país, na miséria, na pobreza, em séculos de exclusão… Enfim, mais perto da vida real do que dos gabinetes.

* Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito (BA), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Um comentário sobre ….Gerivaldo e o “Começar de Novo” do CNJ….

  1. Anônimo 14 de setembro de 2011 - 19:42 #

    tem outro problema que não é carcerário, mas a pesquisa também mostra que se 97% dos presos não tem estudo (a grosso modo), então, os que tem não vão para a cadeia. Isso porque é pouco provável que pessoas estudadas não comentam nenhum tipo de delito que não seja punível com a perda da liberdade. Portanto, além dos problemas mto bem evidenciados, também é bom lebrar que a lei não vale pra todos. poxa, isso dá um desanimo….
    Cristina