……..Homofobia e a vergonha do prazer (O lugar sem limites)….

 
 
Tensão erótica e homofobia num atual livro chileno
da década de 60
 
 
 
 
 
 
 
 
o
inferno não tem limites, não se localiza

num
só lugar; porque o inferno é onde estamos,

e
onde for o inferno, lá estaremos para sempre…

(Marlowe, Doutor Fausto)

 

 

 

O cenário é o prostíbulo decadente de um paupérrimo
vilarejo do interior chileno. Cidade fantasma, prestes a se exaurir, sem luz
elétrica nem esperanças, dominada, como tantas outras pobres localidades da
América Latina, por um cacique local, o senador Don Alejo Cruz.

A tensão sexual que se estabelece entre o travesti
Manuela e o caminhoneiro Pancho Vega é a peça de resistência do enredo,
mesclando medo, desejo, prazer, vergonha e dor.

O lugar sem limites –tal como a descrição do inferno do
Mefistófeles de Marlowe que vem em epígrafe- é um romance de 1966 do escritor
chileno José Donoso, que se antecipa em décadas a inúmeras querelas de gênero e
orientação sexual prementes nos dias de hoje.

Entre tantas questões que o livro desperta (como a
dubiedade da condição de Manuela, que não aceita o epíteto de pai da herdeira
do prostíbulo), chamo a atenção para uma descrição de dois trechos do romance,
no crescendo do conflito erótico e violento que perpassa toda a hábil
narrativa, e que nos permite uma impactante leitura sobre o nascedouro da homofobia,
aqui descrita como álibi para a vergonha do prazer.

 

Pancho,
de repente, ficou calado olhando para Manuela. Para aquilo que dança ali no
centro, estragado, enlouquecido, com a respiração irregular, cheio de crateras,
vácuos, sombras alquebradas, aquilo que vai morrer apesar das exclamações que
profere, aquela coisa incrivelmente asquerosa e que incrivelmente é festa,
aquilo está dançando para ele, ele sabe que deseja tocá-lo e acariciá-lo,
deseja que aquelas contorções não se deem só naquele centro, mas de encontro a
sua pele, e Pancho se deixa olhar e acariciar de longe… a bicha velha que
dança para ele e ele se deixa dançar e que já não provoca o riso porque é como
se ele também estivesse desejando. Octavio que não saiba. Que não perceba. Que
ninguém perceba. Que não o vejam deixando-se tocar e golpear pelas contorções e
as mãos histéricas de Manuela que não o tocam, deixando-se, sim, mas daqui da
cadeira onde está sentado ninguém vê o que se passa debaixo da mesa, mas que
não pode ser não pode ser e agarra uma mão adormecida de Lucy e a coloca ali,
onde queima.

(….)

Iam cada
um a um lado de Manuela, segurando sua cintura. Manuela se inclinou para Pancho
e tentou beijá-lo na boca, rindo. Octavio viu e largou Manuela.
-Que é
isso, compadre, não seja maricas você também…

Pancho
também largou Manuela.
-Mas eu
não fiz nada…
-Não me
venha com conversa que eu vi…
Pancho
ficou com medo.
-O senhor
achar que vou deixar esse veado nojento me beijar? Está louco, compadre?
Imagine se vou permitir que ele faça uma coisa dessas. Diga, Manuela, você me
beijou?
Manuela
não respondeu. Era sempre a mesma coisa quando havia um homem tolo como aquele
tal Octavio, desgraçado, o que ele tinha a ver com a coisa, seria melhor que se
mandasse. Octavio começou a provocá-lo.
-Qual é,
sua bicha, responda.
Pancho se
perfilou ameaçador na frente de Manuela.
-E então?
Estava
com o punho fechado.
-Não
sejam bobos meninos, vamos em frente com a farra.
-Beijou
ou não beijou?
-Só de
brincadeira.
Pancho
deu um soco na cara dele enquanto Octavio segurava…

 

O
lugar sem limites (Cosac Naify) 
é a dica de hoje da seção Prateleira, não
porque seja um livro no qual se possa aprender Direito. Mas porque a ficção bem
elaborada nos ajuda a conhecer o outro, a apreender experiências que jamais
tivemos e, sobretudo, a aumentar a sensibilidade, sem o quê o ato de julgar (e
todas as demais atividades dos operadores do Direito) restam completamente sem
sentido. Porque, afinal de contas, o Direito deve existir para a vida –e não o
contrário.
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