É preciso inverter o paradigma de que o direito penal é como uma serpente, que só pica os pés descalços
O frenético ritmo imposto ao projeto de alteração do Código Penal está provocando reações na comunidade jurídica.
Na semana que passou, foi o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais que firmou manifesto pela suspensão da votação no Senado, até que o projeto possa ser melhor discutido com a sociedade.
Penalistas cariocas preparam um seminário com fortes críticas à reforma no começo de setembro.
A pressa dos senadores é mesmo incompatível com uma mudança deste porte.
Advogados, juízes, promotores, defensores e policiais praticamente não tiveram chance de interferir com suas experiências na formação do texto, que o presidente do Senado José Sarney faz questão de aprovar em sua última legislatura.
O fato de o nosso Código Penal ter a sua base de 1940 pode parecer que a mudança já vem tarde.
Mas não é bem assim.
Parte considerável das leis penais foram produzidas em anos recentes e o mais inusitado é perceber que foram justamente as novas leis as que mudaram mais rapidamente, como, por exemplo, a legislação dos entorpecentes.
O primeiro equívoco da comissão de juristas é o de apostar demais no próprio direito penal.
Não deixa de ser uma certa ingenuidade supor que o código possa fazer diminuir a criminalidade com novos tipos –do terrorismo ao bullying, da corrupção privada ao jogo do bicho, o projeto tem na propaganda sua marca mais efetiva. Promete muito mais do que poderá entregar.
A expansão do direito penal tem se verificado inócua para a diminuição da criminalidade –várias leis recentes mostraram isso, como a dos Crimes Hediondos.
Apesar de reunir pessoas altamente qualificadas, a comissão não atacou de frente o problema mais evidente do nosso direito penal: a seletividade.
As prisões não estão lotadas de pobres à toa.
Existe uma evidente supervalorização da propriedade em detrimento de outros valores bem mais relevantes, como a vida ou a integridade física. Um roubo é mais grave que a tentativa de homicídio ou a tortura, sem contar que o patrimônio público tem ínfima proteção se comparado com as insignificâncias que levam milhares às cadeias todos os dias.
É preciso inverter firmemente esse paradigma, que já inscreveu no direito penal sua opção preferencial pelos pobres –a serpente que só pisa os pés descalços.
A comissão desperdiçou a oportunidade de uma mudança significativa nesse ponto, como também quanto ao encarceramento dos microtraficantes também usuários.
No início dos trabalhos no Senado, ficou claro que as mais badaladas alterações do projeto serão descartadas logo de cara: a ampliação dos casos de aborto legal, a descriminalização do uso de entorpecentes, a punição da homofobia –que enfrentam poderosos lobbies religiosos.
O tempo vai se incumbir de mostrar que elas serviram apenas de estandarte de modernidade a uma discussão recheada de anacronismos.
Recentemente, o Congresso aprovou mudanças na lei processual para reduzir o expressivo volume de presos provisórios nas cadeias brasileiras.
As mudanças exageradamente tímidas não surtiram ainda o efeito desejado e o encarceramento segue crescendo sem qualquer impacto na redução da violência.
Aumentar os prazos das prisões, por intermédio das progressões ou limitar os regimes mais brandos só tende a tornar o quadro ainda mais tétrico.
Relegar a pena de prisão a crimes graves, concentrar a ação da justiça nos fatos relevantes, aumentar a capacidade de investigação da polícia são medidas que têm resultado mais profundo do que um novo Código produzido de afogadilho, para lustrar reputações.
Comentários fechados.