É na mescla entre servidor e cidadão que o juiz encontra seu papel na sociedade
A entrevista que segue foi concedida ao informativo ACM Notícias, da Associação Cearense de Magistrados e trata sobre as possibilidade de conexão entre magistratura e Internet.
“É na mescla entre servidor e cidadão, que o juiz encontra seu verdadeiro papel na sociedade”. A frase emblemática do ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), Marcelo Semer, demonstra uma visão moderna das instituições públicas, sobretudo no que diz respeito à interlocução entre a magistratura e a sociedade civil através da Internet. Semer, que é juiz da 15ª Vara Criminal de São Paulo, blogueiro e articulista do site Terra Magazine, conversou com o ACM Notícias. Ele faz uma interessante reflexão sobre como a internet pode ajudar a redefinir papéis e reinventar a democracia. Semer será um dos palestrantes do III Encontro da Magistratura Cearense.
ACM: O senhor é magistrado e também atua na área da comunicação. Em algum momento esses dois papéis entram em confronto na hora de emitir uma opinião?
Marcelo Semer: Como trabalho, exerço apenas a magistratura. No Terra Magazine, publico uma coluna e artigos no Blog Sem Juízo, mas não propriamente como jornalista, apenas como um cidadão no gozo da liberdade de expressão. Evidentemente, não teço quaisquer comentários sobre processos que estejam sob minha jurisdição, mas de resto creio que é direito do magistrado exercer plenamente a sua cidadania. O recolhimento do juiz, como se dava antigamente, naquilo que se costumou chamar de ‘torre de marfim’ não trouxe efeitos positivos: o juiz não toma parte da sociedade que julga, e a sociedade estranha e receia a figura do juiz. Acaba como um estrangeiro. É na mescla entre servidor e cidadão, que o juiz encontra seu verdadeiro papel na sociedade.
ACM: Uma conta nas redes sociais não significa apenas a emissão de uma opinião pessoal, implica em repercussão, troca de argumentações. O senhor já foi mal interpretado em alguma colocação? Quais as consequências disso?
Marcelo Semer: Twitter, Facebook são instrumentos modernos de comunicação que até os tribunais estão incorporando em suas rotinas. As vantagens são muitas: a rapidez, a disseminação e a formação de uma rede de contatos valiosa. É lógico que, como toda forma de comunicação, pode haver ruídos, mas não é um risco maior do que em outras, como, por exemplo, a imprensa escrita. Nas redes sociais, não me comporto como autoridade, mas como cidadão, parceiro, amigo. Acho que nos ajuda a entender e praticar a dimensão humana do juiz.
ACM: Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre a teia de informações que é própria da internet: twitter, blog, coluna no Terra Magazine. Quais as peculiaridades de cada espaço e como eles interagem?
Marcelo Semer: O Blog funciona como um diário. No meu caso específico, gosto de colocar nele reflexões que possam ser divididas com outras pessoas: meus artigos e artigos de colaboradores que reputo interessantes. Há um número constante de seguidores, pessoas que não apenas leem, mas interagem, comentando e sugerindo temas. Acho muito valoroso. Nele figuram também links de outros blogs que leio, assim meus leitores são estimulados a se tornarem leitores de outros e assim por diante. O twitter é um misto de microblog, onde colocamos os links para divulgar os artigos, e uma rede social em que as pessoas conversam publicamente sobre os mais variados temas. A vantagem aí é a desnecessidade de escrever um artigo mais profundo, para dividir com outros uma reflexão ou uma apreensão. Acho muito interessante também acompanhar o que escrevem as pessoas que eu sigo e retuitar o que me parece interessante. Em grande parte, as redes sociais estão tomando o lugar dos meios impressos e até da TV. Dou um exemplo: quando morreu Bin Laden. A primeira informação foi passada pelo twitter. Eu liguei a televisão, mas só era possível sintonizar um canal. No twitter, podia receber informação extraídas de várias fontes ao mesmo tempo, inclusive internacionais. Era mais rico acompanhar pelo twitter do que por um canal de televisão. O Terra Magazine já é um portal de notícias e colunistas, um espaço precioso, e de muita leitura, em que posso colocar semanalmente minhas reflexões. A página é aberta a comentários e sempre recebo muitos e-mails. O retorno é valiosíssimo e a imprensa via web acaba se mostrando muito mais propensa à interação. Não preciso esperar o dia seguinte, na carta ao leitor, para saber o que as pessoas acharam. E a troca de impressões é sempre positiva.
ACM: Outra característica da rede é o encontro de pares, de pessoas que compartilham as mesmas idéias, como os blogueiros progressistas. Neste sentido, é possível se detectar um grupo que discuta o Direito, de maneira menos formalista, na internet?
Marcelo Semer: Não existe um grupo estanque. Os contatos são fluídos. Há vários juízes tomando parte das redes sociais e é muito comum que as pessoas que pensam de uma forma mais aberta se encontrem. Muitas vezes são os seguidores de um que avisam
da existência de outros e assim por diante. Acho que existe uma interessante comunidade de juízes blogueiros, com uma visão menos formal e mais aberta, com preocupações similares. O encontro é sempre positivo.
ACM: Pessoalmente, como o senhor acha que a internet pode aproximar a figura do magistrado da sociedade?
Marcelo Semer: Quebrando a ideia de que o juiz é um ser diferente, que se coloca acima de seus iguais. O juiz é um cidadão como outros, tem um serviço extremamente relevante, mas tem problemas, sentimentos e preocupações como todas as pessoas. Muitas vezes, ouço isso no twitter: ah, o Marcelo é um juiz diferente, discute com a gente, conversa. Mas em 21 anos de magistratura posso dizer: os juízes são assim, não são gente estranha. Falta que as pessoas os conheçam.
ACM: Em um artigo, o senhor defende que as redes sociais estimulam a reinvenção da democracia. É possível fazer esse paralelo em relação à Justiça? Institucionalmente, o Judiciário está preparado para lidar com as novas possibilidades da rede?
Marcelo Semer: Imagine que hoje milhares de pessoas podem estar conectadas sem a necessidade de uma liderança que as convoque. É uma forma diferente de democracia que põe em xeque, inclusive, o papel dos representantes. Na política, quem não conseguir entender isso vai ficar superado. Essa possibilidade ilimitada de conexão, informação e reunião, não tem precedentes e certamente reinventa a democracia. O Judiciário vai ter que aprender a conviver com isso também e, quanto mais rápido nos familiarizarmos, melhor. Dizem que a internet é perigosa, podem ser cometidos crimes pela web e as crianças e jovens ficam desprotegidos. Mas tudo isso pode acontecer também na vida real. A melhor forma de nos proteger é ganhar maturidade, aprender a conviver nesse espaço e não se esconder e fingir que ele não existe.
ACM: Em 2010, no período da campanha eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concedeu direito de resposta ao candidato José Serra do PSDB na conta do twitter de Rui Falcão, da coligação que fazia oposição a Serra. Como o senhor avalia esse episódio?
Marcelo Semer: Primeiro, a percepção de que as redes sociais existem e provocam consequências. Depois, uma lição aos usuários: web não é “second life”, mera simulação de vida. Podem ser cometidas infrações, inclusive com punições. Agora, por outro lado, devemos pensar em estabelecer mecanismos menos rígidos de tutela, justamente para permitir que essa reinvenção da democracia não seja brecada logo de cara. Web não rima com censura.
ACM: A Associação de Juízes para a Democracia (AJD) está completando 20 anos, o que coincide com a época em que Judiciário torna-se um protagonista social, após a Constituição de 1988. Como ex-presidente da entidade, como o senhor avalia esse período e quais os grandes desafios da instituição?
Marcelo Semer: A AJD foi criada por um grupo de 37 juízes de São Paulo. Hoje está espalhada em praticamente todos os Estados e todas as justiças. É um bom sinal. A ideia de uma militância institucional, que encontrasse um caminho não-corporativo de atuação política é algo que faltava ao Brasil há duas décadas. Acho que abrimos um importante espaço, inclusive na autocrítica do poder, interagindo não apenas com associações de juízes, mas principalmente com entidades da sociedade civil. Afinal, o Judiciário não pertence aos juízes, mas à sociedade. O maior desafio é construir uma justiça democrática, acessível, igualitária, na qual seus membros assumam a função que a Constituição nos outorga: ser o garantidor dos direitos fundamentais.
ACM: Por fim, é possível imaginar que um dia o Brasil use as redes socias como ferramentas de plebicitos, consultas populares e até mesmo para ajudar a elaborar uma Constituição, a exemplo da Islândia?
Marcelo Semer: Para isso, o primeiro passo é a universalização. Pouco mais de metade do país tem acesso à internet em velocidade razoável e muitos apenas em locais de trabalho ou estudo. Se a democracia passa pela web, passa também pela popularização da banda larga. Não é possível fazer democracia sem inclusão. Temos que aprender que o país não se resume à classe média.
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