….MP e insignificância penal….

Pequenos conflitos refogem ao Direito Penal: baterias devem ser apontadas para crimes que colocam em xeque objetivos da República

O parecer que segue foi subscrito pelo procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, e professor de direito penal, Lenio Luiz Streck.

Serve como uma forte crítica ao modelo liberal-individualista-normativista e às dimensões e prioridades do sistema penal.

Nas suas palavras: “É preciso compreender que pequenos conflitos/delitos, sem qualquer repercussão social – como é, indiscutivelmente, o caso dos autos –, refogem ao Direito Penal secularizado do Estado Democrático de Direito.

1.Na Comarca de Três Coroas, o Ministério Público ajuizou ação penal contra D.R.M*. imputando-lhe a conduta subsumida nas sanções do artigo 155, caput, do Código Penal (fls. 02/03):

“Na data de 10 de setembro de 2007, por volta das 9h30min, na Rua X, cidade X, defronte ao estabelecimento comercial, o denunciado subtraiu, para si, uma bicicleta marca Verona, de cor branca com aros vermelhos e um aparelho telefônico celular LG, número X, pertencentes à vítima M.R.A. Na ocasião, o denunciado, avistando que a bicicleta da vítima encontrava-se em frente ao referido estabelecimento, sem cadeado e qualquer vigilância, subtraiu-a para si, levando, também, o aparelho telefônico celular que se encontrava dentro de uma pasta plástica no cesto da bicicleta, empreendendo fuga do local. Acionada a Brigada Militar, a vítima deslocou-se com a guarnição até o Supermercado Y, local em que o denunciado foi localizado e reconhecido, sendo abordado e preso. Os bens foram apreendidos com o denunciado, avaliados – em R$500,00, conforme auto de avaliação da fl. 37 – e restituídos à vítima”.

A denúncia foi recebida em 20/11/2007 (fl. 50). O réu foi citado (fl. 54v). A defesa apresentou resposta à acusação (fl. 105).

Procedeu-se a instrução do feito, com a ouvida da vítima (fls. 149/160) e das testemunhas (fls. 160v/161). Foi decretada a revelia do réu (fl. 113).

Em memoriais, a acusação requereu a condenação nos termos da denúncia (fls. 118/122). A defesa, por sua vez, requereu a absolvição do réu alegando atipicidade da conduta e, alternativamente, a aplicação das atenuantes de confissão espontânea e menoridade (fls. 123/131).

Sobreveio sentença que julgou procedente a ação penal para condenar o réu à pena de 01 (um) ano de reclusão, a ser cumprida em regime aberto, ao pagamento de 10 (dez) dias-multa no valor unitário de 1/30 do salário mínimo vigente ao tempo do fato. A pena privativa de liberdade foi substituída por uma pena restritiva de direitos, consistente em prestação de serviços à comunidade (fls. 132/135).

Irresignado, o réu interpôs recurso de apelação (fl. 137). Em suas razões, a defesa requereu, preliminarmente, a nulidade do auto de avaliação e, no mérito, a absolvição do réu alegando atipicidade da conduta pelo princípio da insignificância e insuficiência probatória. Subsidiariamente, postulou a aplicação da atenuante de menoridade (fls. 162/169).

Contrarrazões foram apresentadas pela acusação, que propugnou pela manutenção do decisum (fls. 170/175).

É o relatório.

2. O parecer encaminha-se no sentido do provimento do apelo defensivo, em face da incidência do princípio da insignificância ao caso em tela.

Isto porque, na verdade, o caso sub judice é mais um daqueles (muitos) que descobrem e desvelam a dura face da crise que atravessa a operacionalidade do Direito em nosso País.

Essa crise revela-se sob uma dúplice perspectiva: de um lado, a crise do modelo liberal-individualista-normativista, no interior da qual os juristas continuam trabalhando o Direito sob uma ótica interindividual (A x B, Caio x Tício); e, de outro lado, a crise do paradigma epistemológico da filosofia da consciência, no interior do qual o intérprete e aplicador do Direito permanece operando sob um prisma metafísico-objetivante (relação sujeito-objeto), não se dando conta de que interpretar é um ato existencial, a partir de pré-juízos do intérprete e de sua história efetual (Wirkungsgeschichte).

Infelizmente, tudo indica que o direito e a dogmática jurídica permanecem preparados tão-somente para resolver/enfrentar conflitos próprios de uma sociedade de cunho liberal-individualista.

Dito de outro modo, a comunidade jurídica parece não ter conseguido, ainda, dar-se conta de que houve uma sensível alteração no campo temático da inserção do Direito Penal.

É preciso compreender que pequenos conflitos/delitos, sem qualquer repercussão social – como é, indiscutivelmente, o caso dos autos –, refogem ao Direito Penal secularizado do Estado Democrático de Direito.

Ou seja, as baterias do Direito Penal, em face do princípio da subsidiariedade, devem ser apontadas para os crimes que, de fato, colocam em xeque os objetivos e propósitos da República, devidamente delineados na Constituição (sonegação de impostos, crime organizado, lavagem de dinheiro, só para citar alguns).

O processo penal, por sua vez, deve ser visto sob uma ótica garantista/garantidor, segundo a qual sempre se deve ter claro a máxima “mínimo sacrifício para o indivíduo e máximo benefício para a sociedade”.

Ora, não quero crer que a dogmática penal tenha como meta a proteção dos “bens” apontados na denúncia: furto de uma bicicleta e de um celular restituídos à vítima.

Importante ressaltar que não há nenhuma especificidade acerca dos objetos apreendidos no auto de avaliação (fl. 41) – a bicicleta era nova, seminova, estava corroída, possuía estado de conservação precário, qual era o aro, marchas: quais fatores, afinal, foram levados em consideração?

Acrescente-se que a avaliação do celular também foi realizada sem que houvesse qualquer informação capaz de aferir o valor anunciado. Na verdade, nem a denúncia, nem o auto de avaliação e tampouco os depoimentos colhidos em juízo fazem sequer menção ao modelo do celular.

Desse modo, inexiste qualquer referência concreta à razão pela qual a bicicleta e o celular foram avaliados nas quantias constantes no auto de avaliação.

Estas podem até parecer questões simples, mas parece ser extremamente simplista o fato da res furtivae ter sido contabilizada em exatos quinhentos reais, sem qualquer referência às peculiaridades dos bens subtraídos.

Isto é, na verdade, o presente auto de avaliação põe a lume a crise paradigmática que atravessa a operacionalidade do direito em terrae brasilis.

Para que se constate a crise, basta ver como são feitos os laudos para comprovar (ou tentar comprovar, o que é sempre muito difícil) a ocorrência de um crime de colarinho branco. São vários peritos e peritos oficiais, exigidos pelo juízo e pelos defensores. Mas, tratando-se de um “simples furto”, para que maiores cuidados? É a pergunta que a dogmática jurídica deve responder!

Observa-se, nesse contexto, que o fato narrado na denúncia configura nítido caso de aplicação dos princípios da insignificância e da intervenção mínima, em face do valor e da restituição do objeto subtraído, não se justificando a tutela e tampouco a persecução penal.

Ademais, não se pode olvidar que os tribunais brasileiros, desde há muito, vêm aplicando corretamente a tese da bagatela, exsurgente do velho princípio da insignificância. Aliás, despiciendo dizer que o caso concreto, a toda evidência, encaixa-se como uma luva no aludido princípio, cujo reconhecimento foi recentemente ratificado pelo Supremo Tribunal Federal, que vem estabelecendo alguns critérios para a sua aplicação:

“Habeas corpus. Penal. Crime de furto (art. 155, caput, do CP). Princípio da insignificância. Hipótese de não-aplicação. Precedentes. 1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal assentou algumas circunstâncias que devem orientar a aferição do relevo material da tipicidade penal, tais como: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. 2. No presente caso, a pretensão deduzida no sentido de que seria possível a aplicação do princípio da insignificância ou do princípio da ‘irrelevância penal do fato’ à espécie não encontra respaldo suficiente para suspender os efeitos do acórdão ora questionado e obstar o andamento da ação penal. 3. Habeas corpus denegado” (HC nº 94.439/RS, Rel. Min. Menezes Direito, Primeira Turma, Supremo Tribunal Federal, julgando em 03/03/09).

Registre-se, ainda, por oportuno, que só há crime se a ação ofende bens juridicamente relevantes, sob pena da própria banalização do Direito Penal. Condutas sem relevância social – como a do caso sub judice – não ensejam a intervenção do aparato repressivo. É imprescindível, nesse sentido, uma adequada reforma no direito penal brasileiro, com uma nova perspectiva, levando em conta o princípio da subsidiariedade, e mecanismos de controle administrativo de condutas que, de fato, não representam perigo à sociedade.

Desse modo, considerando que se está diante de um nítido caso de aplicação do princípio da insignificância, impositiva se faz a absolvição do réu.

3. Pelo exposto, o Ministério Público, em Segundo Grau, entende deva ser PROVIDO o apelo defensivo ora interposto, para absolver o réu com base no art. 386, inc. III do Código de Processo Penal.

É o parecer.

Porto Alegre, 10 de outubro de 2011.

LENIO LUIZ STRECK
PROCURADOR DE JUSTIÇA

*foram extraídos elementos de identificação

9 Comentários sobre ….MP e insignificância penal….

  1. Irineu Tolentino 24 de novembro de 2011 - 23:50 #

    Eu ficaria mais feliz se o argumento central – o motor da decisão – fosse a "ausência de dolo de lesar". Mas, aplicar na hipótese o princípio da insignificância (que para mim é inteiramente insignificante, contraditório e apócrifo) é algo temerário que faz, cada vez mais, erodir a força da lei, a ordem e o conceito de certo e errado numa sociedade já bastante relaxada como a nossa.
    Para mim, se há uma norma que diz "Não pise na grama" essa norma deve ser respeitada ressalvada eventual excludente de ilicitude.
    Eu gostaria de viver numa sociedade onde o combinado (a lei) fosse respeitado.
    Desculpem-me a franqueza.

  2. Fazenda Pública Osasco 25 de novembro de 2011 - 12:56 #

    O autor do parecer destrói a avaliação dos bens. Nem sequer argumenta na direção da relação entre os bens e a condição da vítima. Para o procurador e, fico preocupado, para muita gente, essa correlação vai deixando de ser importante. O que vale é a idéia de que existe a insignificância. A Defensoria de São Paulo já transformou julgados do STF em lei. Argumenta com base neles como se houvesse força vinculante. Gente, a Constituição Federal protege a propriedade privada, gente. Será que esses operadores estão lembrando disso? Tenho certeza que não. Em nome de um discurso pseudo grandioso, estão dizendo que inexiste crime. Dá medo, muito medo…

  3. Anônimo 25 de novembro de 2011 - 23:16 #

    Que me desculpe os prezados comentasristas acima, mas realmente não entendem nada sobre o assunto. A tese da bagatela não existe para beneficiar criminosos, mas para adequar o que realmente é relevante para a sociedade. É certo que a Constituição Federal garante a propriedade, mas até mesmo esta encontra limites. E não seria diferente no campo do Direito Penal. A sociedade capitalista, gananciosa e individualista protege demais bens insignificantes, estando os juristas certos no sentido de limitar esse desencontro. Ora, aceitar que uma pessoa seja condenada por furtar (não existe violência) um bem de pouco mais de R$ 10,00 é absurdo. É sobrepor o interesse individual sobre o coletivo. Ora amigos comentaristas o mesmo acontece com a pirataria, é tão irrelevante para o Direito Penal que deveria ser tratado civilmente, embora exista ainda uma grande resistência em aplicar o instituto ao caso da pirataria. (Kássio Costa)

  4. Marcelo Semer 26 de novembro de 2011 - 14:30 #

    É verdade que a Constituição tutela a propriedade privada. Mas tutela, primeiro, a dignidade da pessoa humana. É isso que está em questão -a desproporcionalidade da tutela da propriedade, em face da defesa intransigente da dignidade.

  5. Fazenda Pública Osasco 26 de novembro de 2011 - 14:45 #

    Eu não tenho tanta certeza assim de que está havendo uma correta consideração disso tudo. Sem falar numa coisa: o sujeito é processado e recebe, muitas vezes, uma pena compatível. Recebe um regime aberto ou penas alternativas. Absolver, pura e simplesmente, passando por cima de particularidades do caso concreto, como vem acontecendo, é abolitio criminis. E, meus caros, a propriedade privada vai ficando desprotegida. Vai sim. O equilíbrio em tudo na vida é essencial e o parecer copiado neste blog fugiu disso. Lamento e fico com medo.

  6. Daniel B. 29 de novembro de 2011 - 14:25 #

    Fazendo Pública Osasco, mesmo que o acusado por um crime de bagatela seja condenado à pena privativa de liberdade em regime aberto substituída por uma restritiva de direitos, os efeitos secundários da condenação, com certeza, já faria com que a condenação não fosse compatível. É só imaginar os efeitos da reincidência durante o período de cumprimento da pena e, após, por 5 anos, basta imaginar os efeitos da condenação criminal na vida pessoal do condenado (por exemplo,dificuldade de conseguir emprego, uma vez que os registros criminais, pelo menos em SP, não saem dos antecedentes criminais do sujeito antes que ele faça o procedimento de retificação de seus dados frente ao IIRG – a famosa "baixa na captura" – em violação ao art. 202 da LEP), basta imaginar o impacto de pena de uma pena de multa de 10 dias-multa no mínimo legal (R$ 181,67) no bolso de, por exemplo, pessoas em situação de rua e por aí vai.
    O Prof. Lênio Streck, em sua análise do conteúdo do laudo pericial, mais do que evidenciou as "particularidade do caso concreto".
    Por fim, a propriedade privada é mais do que tutelada no Brasil. O que as pessoas querem é que a propriedade seja sagrada a ponto de legitimar qualquer tipo de intervenção do Estado, por mais desproporcional que seja.
    Marcelo, seu blog é ótimo. Parabéns.

  7. Fazenda Pública Osasco 30 de novembro de 2011 - 11:53 #

    Veja alguns julgados sobre isso http://fazendapblicadeosasco.blogspot.com/

  8. Panacea Musicalis 12 de janeiro de 2012 - 23:53 #

    Vale lembrar que NO CASO CONCRETO não houve qualquer mácula ao direito de propriedade. Os bens foram totalmente recuperados; íntegros. Portanto, NO CASO CONCRETO, conclui-se não haver crime, pelos motivos brilhantemente expostos no parecer.

    Agora, francamente, é tanto medo que arvoram-se a falar em abstrato, com pretensões discursivas e universalizantes. Devagar… cada caso é um caso.

    A absolvição NESTE CASO ESPECÍFICO não gera o menor risco de ameaçar o sacrossanto direito de propriedade! Ou algum de nós vai "pôr a mão nos bolsos e olhar pra trás" quando o acórdão for publicado?

  9. Jean Salles 29 de agosto de 2012 - 16:59 #

    Intrigante ainda ver gente falando em propriedade privada em uma República. Acho que quando se entender o que de fato é uma "res publica", irão entedender quais crimes de fato devem ser combatidos. Vai explicar pra um "leigo" que mais vale combater os políticos corruptos do que o celular e a bicicleta dele. Garantismo é diferente de abolicionismo.