Voto é condição necessária, mas não suficiente à democracia
Poucas pessoas podem arriscar dizer hoje que consequências as manifestações de rua terão para o futuro da democracia brasileira.
Há quem comemore o prenúncio de uma democracia direta, cobrindo o visível déficit de legitimidade da política representativa.
Há quem receie o abandono dos partidos, como um campo livre para aventureiros de todos os gêneros.
A carona que parte da sociedade tomou na manifestação inicial do Movimento Passe Livre pode até ter desfigurado a integridade de seu conteúdo, pela redução da tarifa, ao compartilhar insatisfações distintas e mesmo excludentes entre si.
Mas algumas lições podem ser aprendidas com essas caminhadas coletivas.
A primeira delas é o resgate da importância do direito à manifestação.
Muitas pessoas vêm ocupando as ruas há anos empunhando suas bandeiras, cientes de que só existe negociação quando se cria pressão. Mas a verdade é que quase sempre são recebidas com má vontade, quando não com forte repressão.
A perturbação ao trânsito, travestida indevidamente de afronta a direito fundamental, e o incômodo ao cotidiano, já custou a integridade física de muitos desses manifestantes.
Nem precisamos ir longe.
Na última quinta-feira, os principais jornais de São Paulo, Folha e Estadão, cuidaram de deslegitimar totalmente as manifestações, ao acusar seus autores genericamente de vândalos, incensando a repressão policial.
Mas depois de milhares de pessoas na rua, transformados de um dia para outro em ativistas, quem se lembrou de repetir “que era hora do basta” ou exigiu “retomar a Paulista” para os automóveis?
Nada disso, por óbvio, exclui a reprovação aos atos de depredação, que os próprios manifestantes vem tentando impedir, como se viu ontem diante da Prefeitura de São Paulo.
E os saques oportunistas de quem apenas se esconde no meio de uma multidão pacífica para tomar proveito para outros fins.
A segunda lição é a sem-cerimônia com que o Estado abraça a repressão, quando estimulado pelos setores que gritam por lei e ordem.
Isto está longe de representar apenas excessos de funcionários despreparados –vem sendo constantemente traduzida como política de governos, seletiva, aliás, como tantas outras políticas públicas.
Não à toa, os índices de violência policial são expressivos e as maiores vítimas são jovens negros da periferia. O ponto fora da curva foi vê-la dirigida a destinatários pouco tradicionais, como os jornalistas, o que acabou por aumentar a visibilidade.
Por fim, começamos a entender que na democracia, o voto é uma condição necessária, mas está longe de ser suficiente.
E isso é um avanço, porque todas as vezes em que se pretendeu aprofundar mínimos espaços de democracia direta, com participação de entidades sociais na formulação de políticas ou mecanismos de plebiscito e referendo, pairou sobre seus autores a acusação de chavismo.
Há uma impressão arraigada em certos setores que o povo é sempre influenciável e refém de benesses governamentais, de modo que ouvi-lo é quase um sinônimo de autoritarismo.
Porém, quanto mais a política se mantém distante da sociedade, mais se torna surda, isolando-se em um curto-circuito que a autolimita a acordos e concessões mútuas.
A reinvenção da democracia pode introduzir novos atores e novos papéis à cena política. Mas dificilmente será exercida sem participação do povo, sem os partidos e sem o exercício consciente das liberdades.
Como conjugá-los é a tarefa que nos cabe construir.
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