….nascimento e morte numa audiência criminal….

Viver o direito é também sentir

O texto que segue é do advogado Tadeu Francisco e foi extraído de seu Blog Fragmentos (das minhas vírgulas, dos meus pontos, dos meus contos).

– O nascimento e a morte –
Relatos de uma audiência criminal

Hoje presenciei um nascimento e uma morte.
Como a vida me soou mais incrível por isso.
Era uma audiência com os doutores engravatados.
Sala gelada, fria, cadeiras duras. Acho que o moribundo a ser julgado matou alguém. Bom, foi o que me falaram.
Ele entrou pela porta cabisbaixo, andando lentamente e quase se arrastando.
Há apenas alguns dias estava vivo como nunca, eu vi. Falava num tom melancólico, meio que soando arrependido, mas com sentimentos aflorados. Ele sentia que tinha feito algo errado, mesmo sem entender ao certo o que era.
Quando o vi naquela sala pálida, percebi que seus olhos estavam estéreis. Naqueles olhos que tanto jorraram lágrimas, nada mais saía. Secou.
Todos da sala olhavam pra ele desconfiados.
Ele se intimidou. Ficou acuado feito um alce momentos antes de ser abatido. Não deu outra: seu corpo foi estremecendo, o coração palpitando numa espécie de convulsão, as veias se acentuando na cor verde ressaltada sob a pele e, em meio aos barulhos dos relógios e a tosse vinda do corredor, sua respiração foi ficando ofegante e de repente seu coração parou. Morreu. Ali, na minha frente. “Que Deus o tenha”, diriam os mais crédulos. Eu nada disse.
Caiu duro e gelado feito um saco de pele. Nem barulho fez.
Possuía uma algema entrelaçada nos seus punhos que marcava suas mãos com tamanha força que até em mim doía.
Esperei pelos homens da funerária. Estranhei, pois eles não foram retirar o corpo. Nem os bombeiros chamaram. Sequer curiosos foram ver o defunto estatelado no chão.
Todos prosseguiram na sua rotina. A escrivã continuou com o seu maligno humor. O Juiz se limitou a acender um cigarro e sentar na janela. Já que é assim, também fiquei no meu lugar. Quando dava, eu analisava o corpo estendido. Era um rapaz jovem. Morreu timidamente.
Mas o que me deixou atônito foi o que veio depois.
O corpo morto foi repentinamente se transformando numa placenta. Coisa estranha. Parecia um monstro dentro de uma água viva. Penso que isso é uma coisa comum, pois ninguém da sala deu a mínima para aquela aberração toda.
Formou-se um feto no chão, bem diante dos meus olhos. Assustei. Dei de levantar da cadeira, mas me contive.
Pela transparência da placenta consegui ver que era um bebê grande, já crescido. Porém, o que me chamou atenção, foi ver que não havia nenhuma mulher gerando aquele feto. O útero estava dentro de umas grades de ferro, que o prendia como se fosse uma caixa.
Acho que já estava na hora do bebê nascer, pois ele forçava as grades com suas mãos maduras e machucadas. Pareciam mãos de um homem adulto.
As grades não o sustentavam mais, de modo que, como uma explosão, o bebê arrebentou as grades e escapou da placenta.
Foi água pra todos os lados da sala. Uma água fétida e podre que chegou a bater nos pés do Juiz fumante e respingar no rosto de todos que lá trabalhavam. Enquanto a escrivã só dava uma olhadela, tirando um mosquito da sua mesa, o Promotor limpava seu rosto com um lenço.
Convenci-me que essa cena é mais normal do que imaginei. Segurei-me na cadeira e levantei um pouco meus pés para que a água não espirrasse nas minhas calças. Penso que agi naturalmente por não querer passar por inexperiente.
O bebê já era crescido. Devia ter uns 30 anos. Ele não chorou, mas respirava ofegante. Ficou um tempo deitado na sala e logo a água evaporou, deixando só o cheiro insuportável no local.
O recém nascido se retorceu um pouco. Tinha o olhar controlado e fechado. Bocejou ferozmente e se levantou. Sabia andar sem nenhuma dificuldade. Eu fiquei atônito, mas os trabalhadores daquela sala ainda permaneciam calmos, olhando tristemente pros seus computadores.
Por incrível que pareça, o bebê já tinha nome e o magistrado sabia qual era. Sem pestanejar, o direto Juiz chamou pelo seu nome e foi enfático ao mandar ele se sentar num banco: o banco dos réus.

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Leia também minhas crônicas do crime: O choro e o choro de Kátia e Réquiem (coisas que o juiz não sabe), por Marcelo Semer

2 Comentários sobre ….nascimento e morte numa audiência criminal….

  1. Anônimo 23 de janeiro de 2011 - 02:52 #

    E, aos costumes, disse nada…

  2. Anônimo 30 de janeiro de 2011 - 13:53 #

    É estranho o nosso comportamento social. Nós nos preocupamos mais com o agressor das normas jurídicas, com o agente do ilícito, com o ofensor da legalidade, que com a própria vítima. Talvez seja a nossa concepção católica em antagonismo com o pensamento protestante. Ora, como disse o filósofo alemão Hegel, "Ao mal do crime o mal da pena". Não podemos ser, excessivamente, tolerantes com o erro alheio.

    Markus Galvin