Se cada país tem o seu tempo para punir agentes da ditadura, o nosso pode estar chegando.
Fatos novos podem indicar que o acórdão do Supremo Tribunal Federal de 2010 pela extensão da Lei da Anistia a crimes praticados por agentes públicos não tenha sido o ponto final da discussão.
Depois da decisão, como se sabe, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o país pela ausência de julgamento do caso Araguaia, assinalando a impossibilidade de se aplicar uma autoanistia para evitar a apuração de crimes contra a humanidade –como, aliás, já assentava a jurisprudência internacional.
O Ministério Público Federal, por sua vez, vem ajuizando diversas ações penais com base na jurisprudência do próprio STF em casos de extradição, fundamentando-se no caráter permanente do crime de sequestro, o que, alegam, impede tanto a arguição da prescrição, quanto da própria anistia.
Uma das ações, cuja viabilidade foi recentemente reconhecida pela Justiça Federal de São Paulo, envolve justamente um dos expoentes da ditadura, o coronel Brilhante Ustra, e tem audiência de instrução designada para o começo de dezembro.
O próprio ministro Marco Aurélio, que foi um dos votos pela validade e extensão da Lei da Anistia no Supremo, admitiu, recentemente, que a alteração da composição do tribunal pode mesmo determinar um novo julgamento –a Ordem dos Advogados do Brasil já anunciou que vai voltar a questionar o tema no STF.
Um dos novos ministros, Luis Roberto Barroso, também insinuou que a questão deve retornar à apreciação do órgão. Se o fizer, já se sabe que a Procuradoria Geral da República, após a posse do novo titular, Rodrigo Janot, alterou a posição anteriormente ofertada pelo antecessor Roberto Gurgel.
O Ministério Público, enfim, é a favor do julgamento dos agentes públicos envolvidos em crimes contra a humanidade.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Diego Garcia-Sayán, afirmou que “cada país tem o seu próprio tempo para punir agentes” –e que a CIDH não recebeu nenhuma informação de que sua sentença não seria cumprida por aqui.
Para Garcia-Sayán, que vem ao Brasil presidir sessões da Corte entre os dias 11 e 15 de novembro, o
país deve ir adotando os passos em algum momento.
Desde a decisão do STF, contrária ao julgamento de responsáveis por crimes contra a humanidade, o país instalou a Comissão Nacional da Verdade, decisões judiciais determinaram a alteração de certidões de óbito para fazer constar na causa mortis as violências causadas pela repressão (como no caso de Vladimir Herzog, sepultando a mentirosa versão de suicídio) e, no âmbito civil, o próprio coronel Brilhante Ustra foi condenado pelo TJSP em ação declaratória que reconheceu participação na tortura.
Se cada país tem o seu tempo e a sua hora para punir os agentes da ditadura, o que já foi feito pela maioria das nações sul-americanas que suportaram quase que simultaneamente os anos de chumbo, a nossa pode estar chegando.
Especialistas acreditam que a não punição das violações tenha ligação direta com a preservação de abusos policiais. É cada vez mais presente a sensação de que a tortura se manteve intacta mesmo com a redemocratização e o inusitado de casos como o do pedreiro Amarildo pode ser apenas a identificação e a responsabilização de seus autores.
No fundo, trata-se da ideia, muito difundida socialmente, de que alguns fins possam justificar certos meios –o que não é apenas atentado à dignidade humana, mas também à própria democracia.
O momento é especialmente propício como resposta à equivocada tentação de defender que uma violência seja, quaisquer os seus motivos, adequada forma de combater outra violência.
Nesse momento, nem podemos admitir uma escalada da repressão que sufoque conquistas democráticas pelos excessos atávicos das legislações de emergência, nem supor que diante de abusos do policiamento, estejamos todos autorizados a praticar outras tantas violências contra os próprios policiais. Aqui também fins não justificam os meios.
A democracia deve resistir a essa falsa questão de extremos atacando de frente a contumaz seletividade do direito penal, uma serpente acostumada a só picar os pés descalços, e impedindo que a omissão frente aos abusos da repressão nos encaixote em um Estado policial.
O reconhecimento do direito de julgar crimes contra a humanidade pode ser um passo importante nessa trajetória.
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