Ao completar seis anos, a Operação Lava Jato vive os seus dias mais delicados. Há uma profusão de dúvidas e irregularidades que pairam sobre o seu horizonte.
Bruno Dantas, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), quer apurar se houve emprego ilícito de gravações não autorizadas pelos membros da operação. Quatro ocupantes da força-tarefa se desligaram após uma visita de inspeção da Procuradoria Geral da República (PGR), que não admite mais a existência de um “corpo isolado” na instituição. Deltan Dallagnol está na iminência de ser novamente julgado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), pelos excessos midiáticos na apresentação da acusação contra Lula. Denúncia do site Poder 360 informa que sobrenomes dos presidentes de Câmara e Senado foram suprimidos de investigação sobre doações ilegais, de modo a evitar o foro privilegiado que a deslocaria para o Supremo Tribunal Federal (STF) – Maia estava identificado como Rodrigo Felinto e Alcolumbre como Davi Samuel. Por fim, mas não menos grave, veio à tona reportagem da Agência Pública, com dados obtidos pelo Intercept Brasil, desvelando uma relação não informada com agente do FBI.
As respostas da força-tarefa a essas indagações chamam atenção pela primariedade: um “assistente inexperiente” teria cortado os sobrenomes dos políticos sem prestar atenção neles; o aparelho de som teria gravado “sem querer”, porque servidores saíram da força-tarefa deixando o terminal ligado. Enfim, a explicação de Deltan Dallagnol sobre a parceria informal com o FBI exagera na ingenuidade: “Se houvesse alguma cooperação ilegal, isso estaria registrado nos procedimentos e advogados teriam questionado.”
É de se imaginar o que diriam os próprios promotores se réus de seus processos utilizassem explicações desse nível.
Verdade seja dita, não é a primeira vez que a operação é questionada. O STF por exemplo já considerou a condução coercitiva inconstitucional, indicou ilegalidade na forma como são tratadas as delações e fulminou a fundação com que a Operação pretendia se institucionalizar com bilhões de reais obtidos em acordo nos Estados Unidos. Isso sem contar as contundentes revelações da Vaza Jato acerca das conversas reservadas entre os acusadores e entre eles e o juiz Sergio Moro pelo aplicativo Telegram.
Ao que tudo indica, a prioridade política do grupo, no momento, é afastar-se de Bolsonaro.
Moro lançou a estratégia, demitindo-se de forma ruidosa do governo. Acusou Bolsonaro de querer intervir na Polícia Federal e para provar seus argumentos, ironia do destino, reproduziu conversas sigilosas que teria tido com ele pelo Whatsapp.
Desde então, em busca de destaque político, e com generoso espaço na mídia, tem feito comentários sobre os mais diversos assuntos, até mesmo sobre a pandemia, rompendo o silêncio sepulcral que se impôs enquanto estava no governo, quando Bolsonaro trucidava medidas sanitárias de combate ao coronavírus. Moro silenciou sobre as aglomerações propositadamente criadas pelo presidente, omitiu-se quando o chefe discursava para uma manifestação que celebrava o AI-5 e se fez de morto enquanto Abraham Weintraub espezinhava os ministros do STF em reunião ministerial.
Em relação a Bolsonaro, nunca é demais lembrar que Moro determinou que a PF investigasse o porteiro do condomínio Vivendas da Barra por declarações sobre o caso Marielle que o atingiam, e o defendeu no caso Queiroz em uma de suas primeiras declarações como ministro, em janeiro de 2019: “Sobre o relatório do Coaf sobre movimentação financeira atípica do senhor Queiroz, o senhor presidente já esclareceu a parte que lhe cabe no episódio.”
Deltan Dallagnol também aderiu rapidamente à estratégia. Em entrevista à revista Veja nesta semana, declarou que Bolsonaro “não é filho da Lava Jato” e que o presidente apenas apoiou a operação porque lhe interessava politicamente. As conversas reveladas pelo Intercept, todavia, mostraram a exaltação do grupo com episódios que atrapalhavam o adversário, como o engajamento da força-tarefa para impedir entrevistas de Lula, já preso.
A chegada de Bolsonaro ao poder pode ser apenas um subproduto da Lava Jato. Mas há indícios mais consistentes de que o resultado político da operação era bem previsível quando ela se iniciou.
Sugiro para isso a leitura de um texto que o próprio Sergio Moro escreveu em 2004 analisando a Operação Mãos Limpas, na Itália. De forma entusiasmada, Moro chamava de “uma das mais impressionantes cruzadas judiciárias contra a corrupção” e “momento extraordinário na história contemporânea do Judiciário”.
Moro escreveu o artigo quando o empresário Silvio Berlusconi já havia subido ao poder, após enorme desgaste da classe política. Ele reconhece que a deslegitimação do sistema político italiano teve ligação direta com o início das prisões e a divulgação dos casos de corrupção, mas ainda assim a saúda, já que o “processo de deslegitimação foi essencial para a própria continuidade da operação”.
Tal como viria a acontecer no Brasil, Moro constata que “a opinião pública é essencial para o êxito da ação judicial”. E, por essa razão, anota que os responsáveis pela Operação Mãos Limpas “fizeram largo uso da imprensa”, reproduzindo relato de Mark Gilbert: “a investigação da ‘mani pulite’ vazava como uma peneira (…) Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no L’Expresso, no La Republica e outros jornais e revistas simpatizantes”.
O constante fluxo de revelações tinha uma dupla função: alertar investigados em potencial, sobre o aumento da massa de informações favorecendo novas confissões e garantir o apoio da opinião pública às ações judiciais.
Os integrantes da Lava Jato costumam negar a relação entre prisão provisória e as delações obtidas. Mas o próprio Moro concluíra por sua necessidade, dez anos antes: “Por certo, a confissão ou delação premiada torna-se uma boa alternativa para o investigado apenas quando este se encontrar em uma situação difícil”, completando com o fato de que “a prisão pré-julgamento é uma forma de se destacar a seriedade do crime e evidenciar a eficácia da ação judicial”.
Essa mescla de prisões, confissões e publicidade, enfim, teria produzido um círculo virtuoso, que, como concluiu Moro, era “a única explicação possível para a magnitude dos resultados”.
Prisões para delação, vazamentos pela mídia simpatizante e busca frenética de apoio popular foi o mesmo tripé que sustentaria a Lava Jato. Lendo o artigo, é possível compreender a importância da comunicação estratégica com a mídia, primeira das preocupações da operação, da distribuição seletiva das informações privilegiadas à divulgação de áudio da presidenta da República. E dá para entender também por que Moro achava tão importante que os promotores soltassem uma nota à imprensa logo após o interrogatório de Lula (“porque a defesa já fez o showzinho dela”).
Ninguém mais do que Moro soube estreitar laços com a população, sedimentar apoios e cultivar a relação que aparentemente pretende transportar agora para a política. Em março de 2017, antes mesmo de proferir a primeira sentença no processo, Moro postou em rede social um vídeo de agradecimento às manifestações, dizendo que elas teriam ajudado “a que nós realizássemos essa travessia sabendo que nós contávamos com apoio da grande maioria, talvez a totalidade, da população, para esses trabalhos que vem sendo realizados na assim chamada Operação Lava Jato”.
O tempo todo Moro foi tratado como se ele próprio fosse um membro da força-tarefa, esgarçando as distinções que havia entre juiz, promotor e polícia. Para Fábio Kerche, a similaridade com a Operação Mãos Limpas só foi obtida “fragilizando as fronteiras institucionais”, em uma moldura diversa da que foi aprovada pelos constituintes brasileiros. Afinal, como supor dentro das regras constitucionais que juízes promovessem uma “cruzada” contra a corrupção sem perder a imparcialidade para julgar os réus que por ela fossem colhidos. Muitos foram os que, perdidos na tradução, deram aval a certas práticas acusatórias realizadas por juízes italianos, sem lembrar que estes, na verdade, faziam parte do Ministério Público.
A confusão alimentada pela mídia, da existência de um ser mítico que reunisse todas as vontades e funções do Estado contra os monstros da corrupção, numa luta do Bem contra o Mal, é justamente o calcanhar de Aquiles da mais delicada arguição sobre a Operação. A de que, ainda que com as melhores intenções, o juiz tenha se misturado à acusação, alijando a defesa e, assim, colocando sua capacidade de julgar em xeque.
É esta a questão que o STF deve apreciar nas próximas semanas. Uma nuvem ainda mais carregada sobre a Lava Jato.
[Artigo e foto publicados originalmente na Coluna Além da Lei, da Revista Cult]
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