….o banquinho e o lugar do Ministério Público na sala…

A importância da concepção cênica igualitária na sala de audiências

O artigo que segue é do juiz e professor carioca Rubens Casara* e foi publicado originalmente no Boletim IBCCrim**, em 2005. O tema volta à cena com a decisão recente da Justiça Gaúcha de colocar, a pedido da Defensoria Pública, o assento do Ministério Público no mesmo plano da Defesa aqui noticiados (pedido da Defensora Cleusa Trevisan; decisão do juiz Mauro Caum) e a perspectiva de julgamento da questão pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal.

Como lembra Rubens, a “estrutura cênica” é essencial para simbolizar a paridade de armas, a integridade do sistema acusatório e evitar a contaminação do julgador: a manutenção do MP no espaço privilegiado .

Conclui o magistrado: “A manutenção de espaço privilegiado à acusação perpetua uma percepção da realidade entranhada de vários preconceitos e revela, sem máscaras, uma ideologia de casta incompatível com a República.

Um banquinho, o ministério público e a constituição : em busca de um espaço público republicano, Rubens R.R. Casara

“Sixto Martinez fez o serviço militar num quartel de Sevilha. No meio do pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao banquinho, um soldado montava guarda. Ninguém sabia porque se montava guarda para o banquinho. A guarda era feita porque sim, noite e dia, todas as noites, todos os dias, e de geração em geração os oficiais transmitiam a ordem e os soldados obedeciam. Ninguém nunca questionou, ninguém
nunca perguntou. Assim era feito, e sempre tinha sido feito. E assim continuou sendo feito até que alguém, não sei qual general ou coronel, quis conhecer a ordem original. Foi preciso revirar os arquivos a fundo. E depois de muito cavoucar, soube-se.

Fazia trinta e um anos, dois meses e quatro dias, que um oficial tinha mandado montar guarda junto ao banquinho, que fora recém-pintado, para que ninguém sentasse na tinta fresca”.

Eduardo Galeano

I) Apresentação do problema

No Estado do Rio de Janeiro, bem como na maioria das unidades da federação, nos julgamentos criminais em primeiro grau de jurisdição, reserva-se ao Ministério Público, na qualidade de parte autora, posição cênica de destaque nas salas de audiência, imediatamente à direita do órgão julgador, enquanto a defesa-técnica e o réu permanecem em plano inferior e afastados do juiz.

Procurar-se-á neste texto analisar a adequação dessa “estrutura cênica” ao modelo republicano e ao princípio do tratamento isonômico das partes no processo penal. Para tanto, parte-se da hipótese de que a estrutura patriarcal e a ideologia de casta entranhados na história da sociedade brasileira favorecem o surgimento de tratamentos privilegiados que não são sentidos/percebidos como tais.

II. A importância da concepção cênica igualitária

Ao contrário do que possa parecer a uma primeira vista, a questão proposta não é despida de interesse prático, pois todos os procedimentos judiciais, toda a composição e símbolos dos tribunais, inclusive a posição de cada um dos protagonistas da relação processual, tudo conspira à solução do caso penal. Em um tribunal, nada existe sem um sentido, sem uma funcionalidade real e concreta.

A disposição cênica da sala de audiência é uma forma de comunicação que é recebida, consciente e, por vezes, inconscientemente, pelas partes, pelo juiz e pela população. A proximidade física de uma das partes com o juiz, ambos presentando o Estado, gera no imaginário popular a impressão de promiscuidade funcional, de contaminação da imparcialidade, não raro confirmado por conversas ao pé-do-ouvido entre o acusador e o julgador. Tal fenômeno é refletido em várias pesquisas, cujos resultados são conhecidos, nas quais resta demonstrado que as pessoas não conhecem as verdadeiras funções do Poder Judiciário e do Ministério Público na justiça criminal. “O juiz me acusou” e o “promotor me julgou” são frases cotidianamente percebidas e que acabam por contribuir para distanciar ainda mais as agências estatais da população.

Nos crimes submetidos ao rito especial próprio do Tribunal de Júri, a distorção mostra-se ainda mais evidente, pois, diante de jurados leigos, tem-se uma das partes fincada ao lado do juiz togado (“contaminando-se, aos olhos da população, da imparcialidade judicial”), com a retórica, pouco sofisticada, de que não é o órgão de acusação, enquanto que a defesa-técnica e o réu permanecem em verdadeiro apartheid físico e social diante do corpo de jurados, da sociedade e, em especial, das famílias da vítima e do acusado que assistem a uma imagem (fortalecida pelo imaginário inquisitorial da sociedade brasileira) de verdadeiro complô para a expiração dos pecados do réu.

A redefinição do espaço público reservado à solução do caso penal, não representaria uma ofensa ou declaração da falta de importância da instituição Ministério Público, verdadeira pedra de toque do moderno modelo acusatório. Pensar o contrário é assumir como premissa que o advogado e o defensor público são menos importantes do que o Ministério Público na busca do processo justo. A manutenção de espaço privilegiado à acusação, por outro lado, perpetua uma percepção da realidade entranhada de vários preconceitos e revela, sem máscaras, uma ideologia de casta incompatível com a República.

Vale lembrar que a redação do artigo 41, inciso XI, da Lei nº 8.625/93 não sugere que o promotor de Justiça fique distante do advogado de defesa e do réu. Pode-se, perfeitamente, reservar assento à direita do magistrado desde que tanto a acusação quanto a defesa estejam eqüidistantes do julgador.

III. Sistema processual, formas e estrutura da sala de audiência

Um sistema processual não é apenas uma determinada forma de processo, mas um modelo completo de organização judicial, com sujeitos processuais específicos, com estruturas cênicas bem definidas e uma cultura de contornos bem precisos. Assim, reconhece-se que no Estado moderno as estruturas judiciais exercem a função de exteriorizar “a nova linguagem dos sistemas judiciais” e lentamente moldam “o mundo e a cosmovisão judicial”(1).

Não se pode analisar a questão posta ancorado em uma consideração pobre e formal da estrutura das salas de audiência e das práticas institucionais. Ao contrário, deve-se partir da idéia básica de que as formas, os signos e as estruturas processuais sempre estão vinculados a práticas concretas, com conseqüências reais, e necessitam ser pensadas a partir de suas funções (reais, ocultas ou não), em especial, da consideração de que as formas, estruturas e signos judiciais existem para proteger o imputado “da violação de princípios pensados para salvaguardar sua pessoa do uso abusivo do poder penal”(2).

Na atuação do Ministério Público, as formas e as práticas institucionais (da mesma forma que as prerrogativas) devem guardar pertinência com “a defesa correta dos interesses a seu cargo”(3). Dito de outra forma, as prerrogativas, os poderes e as faculdades do parquet são mecanismos que permitem (e só por isso se justificam) a concretização dos fins institucionais de tão importante agência estatal.

Os argumentos contrários à tese da concepção igualitária da sala de audiência assumem a feição de abstrações generalizantes desassociadas de considerações acerca da instrumentalidade das formas e acabam por omitir a discussão acerca da existência, ou não, de razões concretas para o Ministério Público, enquanto parte no processo penal, tomar assento em plano diverso do da defesa-técnica, à direita da agência judicial. Em outras palavras, o debate sobre o tema deve responder a uma indagação fundamental à causa: estar sentado ao lado do órgão judicante interfere no exercício das funções institucionais do Ministério Público?

Desnecessário, ainda, declarar que a estrutura cênica da sala de audiências está entre as condições de legitimidade dos julgamentos.

Percebe-se, portanto, que a concepção igualitária funciona, ao mesmo tempo, como verdadeiro princípio de proteção do imputado (ao assegurar a par condicio) e condição de legitimidade dos atos estatais (imagem de imparcialidade, com as partes eqüidistantes do órgão judicante).

Logo, se existir um real conflito entre uma “prerrogativa” (rectius: privilégio) do acusador público, de um lado, e os princípios de proteção do imputado e as condições de legitimidade do julgamento, de outro, sempre devem prevalecer estes últimos. Não se trata de menosprezar as “razões de Estado” que levaram à criação do Ministério Público, mas de empreender esforços “contra a desumanidade e insensibilidade das burocracias judiciais”(4). A correta solução do impasse, portanto, “obriga à reflexão teórica a pôr em primeiro plano a função substantiva de proteção das formas”(5). Não mais se sustentam análises e teorias que pregam (com a conotação do termo ligada à fé) a forma tão-somente pela forma (distorção da ideologia do ritualismo), sob pena de manterem-se práticas, reiteradas sem reflexão, que podem constituir tanto tradições quanto vícios.

O Ministério Público, também como parte, sempre atua adstrito à legalidade, como ocorre com os funcionários públicos em geral. Nessa dimensão, “as formas ordenam a atividade desses funcionários para que eles intervenham nos estritos limites de sua função e sob direção exclusiva do que a lei lhes indica como âmbito de sua competência”(6).

No processo penal, as formas, inclusive a concepção cênica da sala de audiência, atendem à disciplina da atividade acusatória. Diante da Constituição da República de 1988, a estrutura da sala de audiências tem como função possibilitar a proteção dos direitos e garantias fundamentais (contraditório, igualdade, etc.). Como bem definiu Geraldo Prado, em recente evento acadêmico da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Criminais, “as formas não devem proteger meras rotinas, sem função alguma, até porque quando o fazem tutelam interesses sob o manto de ideologias inconfessáveis”.

IV. Sistema acusatório, processo de partes e devido processo penal

Como se sabe, o Brasil adota o modelo processual acusatório, no qual as funções de julgar, acusar e defender estão entregues a órgãos diferentes e são (ou deveriam ser) rigorosamente separadas. Assim, tem-se um processo de partes, no qual a solução do caso penal é construída dialeticamente pelos sujeitos processuais, que para tanto devem gozar de igualdade de armas, de tratamento igualitário. A garantia do devido processo legal, em sua moderna concepção, engloba, além dos direitos subjetivos das partes, fatores objetivos, garantias do processo e elementos concretos que ajudem na legitimação da função jurisdicional.

No Brasil, portanto, há um processo penal de partes, com a determinação constitucional de que o Poder Judiciário busque a igualdade material entre a acusação pública e a defesa e, ao mesmo tempo, assegure o efetivo contraditório, com paridade de armas. A igualdade entre as partes há de ser entendida em sentido material e dinâmico, com o equilíbrio em todos os aspectos capazes de influir (consciente ou inconscientemente) na construção dialética da sentença penal.

Impossível querer impor a legislação infraconstitucional de regência do Ministério Público quando em flagrante oposição às normas e diretrizes constitucionais. Por fim, com Ada Pellegrini Grinover, vale ressaltar que “é sem dúvida condenável a postura corporativa que quer reivindicar para os operadores jurídicos de determinada categoria uma posição de privilégio com relação à outra. Aliás, vale lembrar que o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, no art, 25, V, determina, como direito do advogado, o de tomar assento à direita dos juízes de primeira instância. E amanhã a Lei Complementar da Defensoria Pública poderá prescrever a mesma prerrogativa, em benefício dos integrantes da carreira. O que é no mínimo lamentável, quando não ridículo”(7).

Ainda segundo Ada Grinover, o melhor seria se os operadores jurídicos “para além de vaidades corporativas, refletissem a magnitude de seus respectivos ofícios, mas no pleno respeito à relevância dos outros, aceitando que seus integrantes se sentem lado a lado, em local próprio e distinto daquele em que se desenvolve o ofício jurisdicional”(8).

IV. À guisa de conclusão

Na concepção cênica igualitária, a separação de poderes está mais do que nunca assegurada. Separa-se, também no imaginário popular, a agência judicial e o órgão que veicula a retensão punitiva do Estado-administração, contribuindo para a criação de uma cultura constitucional na medida em que dificulta a confusão entre o Estado-juiz e o Estado-persecutor, formando-se uma significação social de efetiva separação das funções estatais. Vale lembrar que a própria origem do Ministério Público está ligada à necessidade de se preservar a imparcialidade do órgão julgador e ao mesmo tempo assegurar uma acusação pública atrelada ao princípio da legalidade.

Por fim, a desigualdade material entre o Ministério Público, de um lado, e a defesa-técnica, do outro, acaba por recomendar a concepção igualitária da sala de audiências. Os poderes e (reais) prerrogativas de que goza o Ministério Público fazem com que a agência judicial, garante da igualdade processual, tenha que adotar medidas que minorem a desproporção de forças entre as partes. Ao lado do rol de garantias rotuladas de favor rei, coloca-se o direito da defesa (e de cada cidadão) de estar no mesmo plano físico que a acusação, sem apegos à tradição, apenas à Constituição da República.

Termina-se com a convicção que a reformulação de práticas e estruturas desassociadas do desenho constitucional da sociedade que se quer construir permitirão o nascimento de uma cultura efetivamente republicana e democrática. No mais, como bem realçou Geraldo Prado, ao se pronunciar sobre o tema no evento acima nomeado, “o Ministério Público não se dignifica por estar ao lado do juiz, na sala de audiências, e sim por estar cada vez mais próximo de sua missão constitucional. A colocação do Ministério Público no mesmo plano da defesa transforma o ambiente processual e transmite à comunidade a idéia da igualdade de tratamento e paridade de armas que não se encontra no posicionamento tradicional, fundado em uma inadmissível superioridade funcional do órgão de acusação pública, superioridade rejeitada pela Constituição da República em prol da própria Instituição e de seus membros”.

Notas

(1) BINDER, Alberto. O Descumprimento das Formas Processuais, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 32.

(2) BINDER, Alberto. Ob. cit., p. 36.

(3) Idem, p. 36

(4) Idem, p. 39

(5) Idem, p. 39

(6) Idem, p. 103

(7) GRINOVER, Ada. O Processo em Evolução, Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1998, p. 317.

(8) GRINOVER, Ob. cit., p. 318.

*Rubens R.R. Casara é Juiz de Direito do TJ/RJ, mestre em Ciências Penais pela UCAM/ICC, professor universitário, membro do Movimento da Magistratura
Fluminense pela Democracia e da Associação Juízes para a Democracia

**Boletim Ibccrim v.13, n.151, p. 6-7, jun. 2005

Comentários fechados.