….parecer de Juarez Tavares na ADPF sobre violações no sistema penitenciário….

 

 

Em busca de mecanismos de contenção da sistemática
violação a direitos fundamentais no sistema penitenciário brasileiro
 

 
 

 

Subsidiando a ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE
PRECEITO FUNDAMENTAL ajuizada pelo PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE, no último
dia 27 de maio de 2015, junto ao Supremo Tribunal Federal, pelo reconhecimento
do “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro
(conheça a ação subscrita, entre outros, pelo advogado Daniel Sarmento, aqui),
o Professor Juarez Tavares* formulou um valoroso e histórico PARECER, que
certamente será, ademais de sua importância no deslinde da arguição, uma
referência doutrinária perene nas ciências criminais.

 

Depois de uma vasta análise sobre as funções manifestas
da pena e o cotejo das elaborações discursivas com dados concretos de
funcionamento do sistema carcerário nacional, e explicar as diferencias entre
pena ficta e pena real, o professor propõe estratégias
de contenção da sistemática violação aos direitos fundamentais de centenas de
milhares de pessoas submetidas ao sistema carcerário brasileiro
, visando
combater o que denominou de “eficácia invertida do processo ressocializador da
prisão”.

 

“É possível e necessário considerar a
vivência concreta no cárcere como dado empírico deslegitimante do poder
punitivo, isto é, como redimensionamento, pelo Poder  Judiciário, da pena a ser aplicada na sentença
condenatória.”

 

Entre as propostas sugeridas:

 

“levar em conta, na análise do art. 59 do
Código Penal, essa circunstância objetiva das condições insalubres e
degradantes da prisão a que se destina o condenado para diminuir-lhe ou mesmo
suspender-lhe a pena”;

 

“na fase de execução, em revisão criminal ou
por meio do remédio do habeas corpus, comutar-lhe ou diminuir-lhe a pena, em
face de aplicação analógica do art. 66 do Código Penal, quando essas mesmas
condições se verificarem no estabelecimento em que a esteja cumprindo” ;

 

“em vista das precárias condições do sistema
prisional brasileiro, tornar factível a relativização dos requisitos objetivos
para a progressão de regime, livramento condicional, indulto ou comutação de
penas, saídas temporárias ou ainda da punição proveniente do cometimento de uma
falta grave, bem como de outros incidentes da execução penal”;

 

“a não imposição das medidas cautelares
privativas de liberdade (ou sua redução significativa) em vista da necessidade de
expurgá-las do teor penal latente que lhe emprestam as agências punitivas”.

 

O parecer cita, ainda, acórdão da 10ª Câmara
de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de nossa
relatoria, que determinou a redução imediata do número de presos de Centro de
Detenção Provisória para sanar a violação decorrente da superpopulação carcerária:

“Recente decisão do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo,125 conduzida pelo substancioso voto do Desembargador
Marcelo Semer, demonstra com percuciência as razões pelas quais se impõe a
imediata intervenção judicial para fazer cessar o grave estado de sistemática
violação aos direitos fundamentais dos presos brasileiros:

As Regras Mínimas para o Tratamento de
Prisioneiros estabelecem que: As celas ou quartos destinados ao isolamento
noturno não deverão ser ocupadas por mais de um preso. Se, por razões especiais,
tais como excesso temporário da população carcerária, for indispensável que a
administração penitenciária central faça exceções a esta regra, deverá
evitar-se que dois reclusos sejam alojados numa mesma cela ou quarto
individual. (Parte I. Regras de aplicação geral. Locais destinados aos presos.
Item 9.1.) Todas os locais destinados aos presos, especialmente aqueles que se
destinam ao alojamento dos presos durante a noite, deverão satisfazer as
exigências da higiene, levando-se em conta o clima, especialmente no que
concerne ao volume de ar, espaço mínimo, iluminação, aquecimento e ventilação
(Parte I. Regras de aplicação geral. Locais destinados aos presos. Item 10.)
(…)

Ademais, não se justifica a violação do
direito de um indivíduo, pela simples coexistência da violação do mesmo direito
de outro indivíduo. O desrespeito à dignidade humana, à integridade física e
moral de um preso que seja, reclama agasalho do direito, não estando o Poder Judiciário
autorizado a se omitir na sua função de apreciar qualquer lesão ou ameaça de
direito quando compelido a tanto.

Conquanto não se desconheça a atual situação
de descalabro do sistema penitenciário brasileiro incluído, portanto, o sistema
penitenciário paulista as específicas condições prisionais dos CDPs de Osasco
(atualmente ocupados por população carcerária quatro vezes superior ao número
de vagas existentes, como já exposto) indicam a transposição do limite da
suportabilidade humana e a imposição, pelo Poder Público, de tratamento
desumano e degradante aos que estão lá custodiados, em clara afronta à vedação
constitucional e às regras mínimas para o tratamento de prisioneiros,
estabelecidas pela ONU, quadro intolerável que demanda providência urgente, sob
pena da ocorrência de dano irreparável ou de difícil reparação à dignidade humana
e saúde dos detentos, bem como à segurança de todos os que circulam por esses
ambientes.

No caso, em vez de invasão da seara
administrativa e, por consequência, da separação de poderes, o que existe é o
cumprimento do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5o, inciso
XXXV, CF). Ainda que concorra ao Poder Executivo a administração penitenciária,
a garantia do cumprimento das disposições legais não pode ser afastada do
controle judiciário. Assim, não basta que o Executivo seja o responsável por
custodiar os presos faz-se imprescindível que sua custódia se faça de acordo
com os princípios constitucionais, as regras de tratados internacionais que o
país ratifica, e segundo suas próprias normas legais.

A custódia de presos que não corresponde a
tais ditames, que ofenda tão frontalmente a direitos fundamentais, resulta ser,
na verdade, descumprimento da obrigação assumida pelo próprio Estado. E não há descumprimento
de lei, tanto mais de direitos constitucionais (como a já mencionada proibição
de penas cruéis e degradantes) que não possa ser apreciada pelo Estado-Juiz.

E a reserva do possível, no caso, nada mais é
do que a reserva do negligenciado, a reserva da omissão. O que se busca, em
suma, é o direito do Estado-administração a descumprir suas próprias normas justamente
na aplicação de sanções a quem descumpriu normas por ele fixadas.

Isso, todavia, é inadmissível, sob pena de
transformarmos o Estado em um criminoso tão ou mais cruel do que aqueles que
sua autoridade de titular do poder punitivo pretenda encarcerar. E, com isso,
repetirmos as lamentáveis cenas que se tem tornado comuns em presídios condenados,
onde as penas ao final aplicadas aos detentos são muito superiores do que a
mera privação de liberdade.

A ação do Judiciário visa, sobretudo, impedir
que a omissão do Executivo amolde as cadeias como masmorras impenetráveis,
palco de descasos que convirjam para violências, doenças e mortes, que, no futuro,
retornarão como pedidos de indenização ao próprio Estado.

(Agravo de Instrumento n.
2019978-41.2014,8.26.0000, Relator Marcelo Semer; Comarca: Osasco; Órgão
julgador: 10ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 28/07/2014)

*Juarez Tavares é professor titular da UERJ. Professor Visitante na Universidade de Frankfurt am Main, na Universidade de Buenos Aires e na Universidade Pablo D’Olavide (Sevilha). Professor Honorário da Universidade de San Martin (Peru). Pós-doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt am Main. Doutor em Direito pela UFRJ. Mestre em Direito pela UFRJ. Subprocurador-Geral da República aposentado. Advogado.

Conheça a íntegra do parecer aqui

 
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