….Presunção de inocência, Constituição e autoritarismo – a audiência pública na CCJ do Senado….

 

Um embate entre princípios e políticas

 

 

 

Informes sugeriam à população que o sistema legal era irremediavelmente fraco contra o crime.

As novas propostas favoreciam julgamentos mais rápidos e a redução das proteções legais.

Os cidadãos foram informados que o princípio liberal de “nenhum crime sem uma lei” (nullum crimen sine lege) foi trocado para “nenhum crime sem uma punição” (nullum crimen sine poena). Esse slogan tinha o objetivo de exercer apelo sobre aqueles que estavam fartos pelo fato de o sistema judicial dar muitos direitos a perpetradores de crimes.

O sinal era impossível de ser ignorado: os tribunais ficariam mais “radicais” ou simplesmente se tornariam supérfluos.

 

 

As palavras da epígrafe poderiam ser ditas em vários momentos e, especialmente, na atualidade não nos são estranhas.

Um sistema fraco contra o crime, julgamentos mais rápidos, nenhum crime sem uma punição, fartos de o direito dar muitos direitos a perpetradores, são expressões que, com maior ou menor sofisticação, tem acompanhado de programas policialescos a exposição de projetos de lei. O texto, todavia, reproduz passagens do livro Apoiando Hitler, Consentimento e Coerção na Alemanha nazista, com o qual o autor Robert Gelatelly demonstrou como o endurecimento penal foi um discurso de legitimação da ditadura nazista.

A comparação não devia assustar demais, nem provocar falsas vítimas. Foi o que fez o juiz Rubens Casara na audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, que discutia o projeto de lei 402/2015, de autoria mediata da Associação dos Juízes Federais, ali defendido pelo representante da entidade e pelo juiz Sérgio Moro. Casara lembrou que estilhaçar a presunção de inocência, carro chefe do projeto que foi subscrito pelo senador Roberto Requião (PMDB-PR), é algo encontradiço em ditaduras ou sistemas como o fascismo e o nazismo. É óbvio que não é só isso que os caracteriza; mas é algo que os identifica.

Os proponentes não deviam se sentir moralmente agredidos pelos termos da comparação; deviam-na tomar como alerta, não ofensa. Da mesma forma como o professor Maurício Stegemann Dieter fez lembrar que a tortura policial e o genocídio da juventude pobre e preta preservam-se como entulhos autoritários remanescentes de uma ditadura, cujos efeitos não cessaram por completo.

A democracia não precisa de palavras de auto-louvação; precisa de atores vigilantes que não nos permitam, citando novamente Casara na audiência, cair em tentações autoritárias. Elas são recorrentes e persistentes; são respostas fáceis e no mais das vezes populares. Mas, como lembrou o professor Tiago Bottino na mesma audiência, a Constituição nos protege de nós mesmos, como o mastro a que Ulisses se amarrou para não ceder, ao ouvir o canto das sereias.

Muita coisa foi dita nas quase cinco horas da audiência que, felizmente, pôde tornar-se um espaço contraditório e não apenas aclamatório –como o turbilhão de câmaras parecia indicar. Às críticas de que o projeto flexibiliza, numa locução bem eufemística, a cautelaridade na decretação da prisão antes da decisão definitiva, respondeu-se com a perspectiva de que o STF altere o entendimento esposado inicialmente no HC 84078/MG -pela inconstitucionalidade da proibição do efeito suspensivo em recurso especial e extraordinário, por representar execução antecipada de pena, violando a presunção de inocência.

Pragmaticamente, a própria expectativa fulmina o projeto. Se acolhida, ele se tornaria supérfluo; se não, apenas inconstitucional. Em resumo, como se pretendeu explicar, a questão em jogo é constitucional, totalmente insuperável por um projeto de lei.

De pouco adianta apegar-se à tese de que a lei poderia alterar os requisitos da prisão preventiva, que são infraconstitucionais. Sim, pode, mas jamais chegar aos extremos do projeto: a-) o de obrigar que o réu prove a desnecessidade da prisão, sob pena de lá ser “conservado” ou b-) que os novos requisitos, como ali constantes, sejam os mesmo do art. 59, ou seja, ligados à fixação da pena.

O projeto, enfim, tenta disfarçar o que é indisfarçável, o intuito de antecipar a execução da pena, ou seja, prender sem indicar razões cautelares. Como isso é inconstitucional, ele se esfumaça em um símbolo para a opinião pública, como tantas outras medidas de cunho repressivo.

Enquanto vários de nós tentamos sensibilizar os senadores para a interpretação constitucional, que parece ser o papel preventivo de uma Comissão de Constituição e Justiça, os defensores do projeto sustentam seu pleito na “realidade”, no emaranhado de recursos que nunca permitem a prisão dos corruptos.

A interpretação direta da realidade, por sobre a lei, como aquela que aumenta penas em face do crescimento da criminalidade, que fixa regimes ilegais, pelo desassossego social ou busca a verdade real, fora dos escaninhos do devido processo, abdica de princípios pela política, e encarcera o próprio juiz, como refém da maioria.

De toda a forma, tampouco se demonstra a suposta impossibilidade de prender antes da sentença definitiva, leitmotiv do projeto. Nossa legislação admite, desde que comprovada a necessidade, a prisão provisória a qualquer momento da investigação ou do processo e a própria presença do juiz Sérgio Moro é, paradoxalmente, a demonstração mais inequívoca de que prisões vem sendo decretadas a granel, muito antes do trânsito em julgado (antes mesmo da acusação).

De outro lado, o volume indecente de 40% de presos provisórios, encontradiço em pesquisas recentes sobre o sistema penitenciário, só indica que se é algo de que o Brasil não padece é de um Judiciário que prende pouco –como bem ressaltou o promotor Elmir Duclerc.

O projeto tem mais defeitos, como a equiparação absurda da decisão de tribunal de júri -órgão de primeira instância- como se fosse também tribunal, para os efeitos de possibilitar essa prisão antecipada, e um equivocado retrocesso ao restringir a amplitude dos embargos infringentes, como forma de diminuir as oportunidades de defesa. Ou uma catalogação de crimes graves efetuadas ao léu, sem qualquer dimensão ou proporção, no condenado caminho de ressuscitar uma prisão preventiva obrigatória, já enterrada por decisões legislativas e judiciais. Não é novidade, apenas o atraso embalado com outra roupa.

Exigir que o réu prove que não pretende fugir ou praticar novos crimes e tratar a cautelaridade da prisão pré-trânsito, com elementos típicos de fixação de pena, é sim violar a presunção de inocência, tal como desenhada em nossa Constituição, e interpretada pelo Supremo Tribunal Federal.

Não é, portanto, nenhum abuso ou ofensa dizer que esvaziar o sentido de garantia do processo penal ou limitar a liberdade individual seja uma proposta que esgarça a democracia.

Nossa tradição processual, como costuma ensinar Geraldo Prado, tem um enorme ranço autoritário; esperemos, enfim, que a modernidade não ajude a aumenta-lo.

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