Não podemos criar mercado que dependa das prisões, sob pena de acabarmos na dependência delas
Já faz tempo o Brasil tem constatado um enorme crescimento de sua população carcerária, a quarta no mundo.
Desde a vigência da Lei dos Crimes Hediondos, o número de presos praticamente dobrou no país e vem se expandindo com a última legislação de entorpecentes.
O aumento expressivo desta massa carcerária em nada diminuiu os índices da criminalidade, mas agora pode representar um negócio altamente lucrativo para alguns, o encarceramento privado.
Vendido como o padrão inglês, de grande eficiência e alta tecnologia, a penitenciária mineira de Ribeirão das Neves inaugura este equívoco institucional.
O Estado não vai deixar de pagar para custear os presos. Os empresários é que vão passar a ganhar com as prisões, em valor por condenado –um estímulo e tanto para que elas continuem sempre crescendo. Trocaremos, enfim, salários por lucros.
O que está em questão não é apenas o esvaziamento do Estado em uma de suas mais importantes funções, mas também a ideia desvirtuada de que o crime compensa, ainda que para o carcereiro.
Não podemos criar um mercado que dependa das prisões, sob pena de acabarmos nós mesmos na dependência delas.
A divulgação da parceria enfatizou que a empresa não lucrará com o trabalho dos presos, regra dispensável diante da disciplina contrária da lei federal. Mas mencionou que a própria contratada seria responsável por fornecer assistência jurídica aos detentos –um evidente conflito de interesses, que colide ainda com a competência constitucional da Defensoria Pública.
A execução da pena é tarefa estatal, na qual tomam parte inúmeros agentes públicos e deve ser obrigatoriamente supervisionada pelo Judiciário. Presos não são objetos contratuais, mas sujeitos de direitos –ainda que boa parte destes, verdade seja dita, continuem desrespeitados. Não há porque supor que serão mais respeitados pelo mercado.
O caráter público da prisão, do julgamento e da aplicação da pena são princípios básicos da constituição de nosso Estado. São tarefas indelegáveis, que não se transmitem por contratos ou subempreitadas –como caçadores de recompensas ou oficiais privados de condicional de Estados norte-americanos.
A depreciação de importantes serviços públicos ao longo de décadas de abandono abriram espaços ocupados pela iniciativa privada, especialmente nos casos da educação e na saúde, que acabou entregue ao mercado das seguradoras.
As fissuras na previdência pública vitaminaram recentemente o mercado para as instituições financeiras.
Mas há limites aos quais não se deve ultrapassar, sob pena de se perder por completo a noção de Estado, como já se abala com a progressiva privatização dos serviços de segurança.
Que faremos em sequência, contrataremos mercenários para garantir as fronteiras?
Excelente artigo… estava achando que eu estava louco, porque ninguém demonstrou espanto com essa empreitada… o Estado está dando para o setor privado a administração daquilo que deveria ser seu e de mais ninguém. Isso vai criar estímulos para que tenhamos um Estado que prenda todo mundo. Imagine só a pressão sobre as autoridades públicas, o lobby no Legislativo para se reduzir a idade penal, aumentar penas, criar novos crimes, reduzir direitos dos presos, flexibilizar a aplicação de penas alternativas, etc… Financiamento de campanha, então, ia ser uma coisa mais tosca do que já é… teríamos governos eleitos com doações de campanha dessas empresas a cobrar-lhes hordas de pessoas para as suas cadeias. Tem um episódio do "Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais (Law and Order: SVU)", série de TV americana, veja só, que mostra justamente um dos "sintomas" do que seria a "doença" a acometer o Estado que delega a função prisional à iniciativa privada: ao investigar a atuação de um juiz, a polícia percebe que ele prende todo mundo, independentemente do tipo de delito ou mesmo de sua materialidade. Então, para o espanto geral, os detetives descobrem que ele recebe comissão da empresa gestora do centro por cada jovem sentenciado à internação. Prisão privada é coisa antiga por lá. Eu sinceramente achei que desse mal não sofreríamos, pelo menos não com essa Constituição em vigência. Imagina se a moda pega… seria a sensação da bolsa quando essas empresas abrissem o capital! A idade penal a partir dos 12 e, pronto, os acionistas não vão ter aonde guardar dinheiro… transformar problema social em solução lucrativa não é novidade, mas essa bateu o recorde… bom, tem que ter algo de bom nisso, claro, pelo menos deixaríamos de ter uma política (e uma polícia) de extermínio… mas, sério, não dá pra entender mais nada… o detalhe da contradição que é tudo isso: "o consórcio também é responsável por dar assistência jurídica aos presos"… hã? peraí, não é interesse deles que os presos fiquem presos? e o Estado, que tem órgão constitucionalmente preparado para essa assistência, vai pagar a empresa por isso? Sou eu que devo estar louco, só pode ser…
Já estou na idade de lembrar-me coisas velhas e comparar com fatos novos. Lembro de um faroeste de Don Siegel, cujo título no Brasil é “Só matando”. Resumindo o enredo: em uma cidade do velho oeste a delinqüência é o maior problema. Para encontrar uma solução a elite resolve contratar um xerife incorruptível, conservador, severo, intolerante e, claro, violento. Ele limpa a cidade dos malfeitores e restabelece a lei e a ordem. O problema, depois, passa a ser: como livrar-se desse xerife. Daí o título: “Só matando”.
A história é uma metáfora de como todos podem, por uma razão ou por outra, tornar-se um criminoso. A elite daquela cidade de inicio só desejava o bem geral, depois, tornaram-se mandantes de um crime: matar o xerife.
Tornar o prisioneiro uma mercadoria, para ser tratado como mercadoria, embaladinho, arrumadinho, arquivadinho, pode parecer agora uma boa idéia. Mas a partir do momento em que se perverte um valor moral em busca de um resultado imediato, mil alternativas podem gerar a partir daí e, a maioria, (acredite), da pior espécie.