….projeto do CP e o jogo dos 7 erros…. (2)

 

(2) A legislação penal de
emergência

 

A ideia de que o Direito
Penal é a solução para a criminalidade (que não deixa de ser nada mais do que o
triunfo da esperança sobre a experiência) vem norteando o populismo legislativo
há décadas.

A criação de tipos penais
que buscam atingir a todo custo novas situações, ainda que a tutela penal seja
excessiva (e por isso mesmo jamais estiveram dentro dela) ou tornar mais ampla
sua abrangência, mais rigorosas suas penas ou seus regimes, tem claro
comprometimento com essa submissão à “opinião pública”, rendição ao populismo
midiático, que a edição de um Código Penal, estruturado e balanceado, deveria
impedir.

Ao trazer o populismo penal
para dentro do Código, os autores não apenas o legitimam, mas prolongam a sua
sobrevivência. Não dá mais para dizer: quando o novo Código vier, esses tipos
de ocasião serão revogados. Não, os tipos fazem parte agora de um Código de
ocasião.

O Código Penal acolhe os
tipos recentemente criados pelo Estatuto do Torcedor –que chega a punir com
prisão de um a dois anos quem invadir
local restrito aos competidores
(art. 249), entre outros tipos criados com
a nítida preocupação de preparar a legislação para os grandes eventos. É sinal de que a realização da Copa do Mundo e das
Olímpiadas prometem nos deixar um legado pior ainda do que apenas um esperado
déficit.

A mesma preocupação de
exibir aos visitantes uma legislação “moderna e eficaz”, pode ter levado os
autores a tipificar o terrorismo (art. 239) de uma forma tão ampla e ao mesmo
tempo genérica. Sim, o projeto não esquece de agravar a pena quando a conduta é
praticada por arma de destruição em massa,
mas a abrangência do delito sugere que a preocupação dos autores não foi propriamente
o inimigo externo.

O terror pode, como uma
novel Lei de Segurança Nacional, atentar contra
o Estado democrático
, ser causado por razões políticas ou ideológicas, e se restringir a condutas como a de manter alguém em cárcere privado ou invadir qualquer bem púbico ou privado. Será
isso mesmo o terrorismo?

Não é preciso ir longe para
inferir o potencial de criminalização de movimentos sociais que a nova
legislação contém.

O antídoto do projeto, a
esse respeito, é claramente insuficiente. A causa de exclusão esta lançada
assim: “Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de
pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os
objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade”
.

A contrario sensu, portanto,
caracteriza-se terrorismo se o juiz entender que os objetivos e meios do
movimento social são incompatíveis e inadequados à sua finalidade. Risco
grande, portanto.

E a punição ao terrorismo se
amplia também para os lados, punindo-se quem dá abrigo ou guarida (seja lá o que isso queira dizer) a pessoa de quem se saiba ou se tenha
fortes motivos para saber,
que tenha praticado ou esteja por praticar crime
de terrorismo
-criando uma inédita figura culposa de favorecimento, com a
bagatela de quatro a dez anos de reclusão (art. 241).

Por fim, nada menos conforme
a esse direito penal da emergência, do que a causa de aumento do art. 242, do
tipo de terrorismo, segundo a qual as penas serão aumentadas se as condutas
forem praticadas durante ou por ocasião
de grandes eventos esportivos
e etc. Aqui se explica um pouco o porquê da
urgência de aprovação do projeto.

Bullying e stalking são
temas da moda e nada melhor do que aproveitar o prestígio e estender a eles a
tutela mágica do Direito Penal. Que Direito Penal será esse, devem se perguntar
os autores do projeto, se não pode ir a todos os campos, perscrutar todas as
asperezas, intervir em todos os conflitos, mesmo os mais íntimos?

A inépcia dos tipos consegue
ser ainda pior que a decisão de criminalizar.

A “perseguição obsessiva ou
insidiosa” (art. 147) destina-se a tutelar a liberdade, mas não se sabe
exatamente qual e por isso atira para todos os lados, protegendo a “integridade
psicológica”, a “capacidade de locomoção” e a “perturbação a esfera de
liberdade”, seja lá o que isso possa significar.

A intimidação vexatória, por
sua vez, é pródiga nos verbos, em que reúne condutas bem distintas: intimidar, constranger, ameaçar, assediar
sexualmente, ofender, castigar, agredir, segregar
. Tira-se de barato que
repete o erro da criminalização do assédio sexual, em que constranger, tradicional verbo transitivo direto e indireto na
linguagem do direito penal, vem esvaziado de seu conteúdo.

A questão mais grave, porém,
é que todas essas condutas, a serem praticadas direta ou indiretamente (o que as torna ainda mais inimagináveis),
devem ocorrer com o agente valendo-se de pretensa
situação de superioridade
.

E aqui o busílis é mais
sério, pois ou o agente se vale de uma situação de superioridade (e teremos a
criminalização do assédio moral, comum em especial nas relações de trabalho) ou
apenas projeta sua própria e inexistente situação de superioridade (e o crime
se aproxima, por exemplo, de alguma forma qualificada de injúria).

Mas nada representa melhor a
emergência do que a criação do crime de milícia –dirigido a combater a situação
das comunidades dominadas do Rio de
Janeiro. Incapaz de estipular por si só condutas abstratas, o projeto resolve
explicá-las ao público leigo, com a discutível técnica de exemplificação:

“Se a organização criminosa
se destina a exercer, mediante violência ou grave ameaça, domínio ilegítimo
sobre espaço territorial determinado, especialmente sobre os atos da comunidade
ou moradores, mediante a exigência de entrega de bem móvel ou imóvel, a
qualquer título, ou de valor monetário periódico pela prestação de serviço de
segurança privada, transporte alternativo, fornecimento de água, energia
elétrica, venda de gás liquefeito de petróleo, ou qualquer outro serviço ou atividade
não instituída ou autorizada pelo Poder Público, ou constrangendo a liberdade
do voto”.

O projeto faz crer, e nisso
reside seu defeito, que a situação só pode ser punida pela criação de um novo
tipo –este sim eficaz. Mas a ânsia de
explicar as possibilidades de extorsão fragiliza a própria compreensão do
“domínio ilegítimo de território”.

A dificuldade sempre residiu
em questões de prova e, mais precisamente, em enfrentar o poder, não na ausência
de tipo, eis que a cumulação de extorsões e formação de quadrilha sempre foi
juridicamente viável.

Mas a ideia da autoria incorporada
pela cláusula do domínio do fato, a
tipificação do enriquecimento ilícito
(plasmando a inversão do ônus da prova), a ampliação do início da execução para
atos preparatórios imediatamente anteriores, segundo o plano do autor, enfim, tudo
está a indicar que, como a jurisprudência que vem se formando nos momentos de
exceção, a exigência da prova tende a ser cada vez mais flexível.

O futuro parece não reservar
ao direito penal a mesma rigidez do sistema de provas, fato de que, certamente,
vamos nos arrepender no futuro, quando se espalhar para todos os tipos. Princípios,
dificilmente se regeneram, uma vez rompidos.

O direito penal de
emergência se junta ao direito penal do autor, ademais, quando o projeto
estabelece circunstância qualificada pela participação de ex-agente do sistema
de segurança pública (supra item 4). E, a despeito de ser um crime que se
dirige fundamentalmente à intimidação coletiva (pelo tal ‘domínio territorial’
ou sobre a comunidade) a pena da milícia pode ser ainda aumentada quando a violência ou grave ameaça recair
sobre pessoa incapaz, com deficiência ou idoso
–como se fosse possível a
existência de uma comunidade sem incapazes, idosos ou deficientes.

Quando a causa de aumento é
obrigatória, representa na verdade, um disfarçado aumento de pena. E aí sim, o
legislador da emergência pode se dar por satisfeito, porque o novo tipo já
atingiu a pena máxima de trinta anos. Não há mais por onde crescer –quem poderá
lhe acusar de não ter resolvido definitivamente o problema das milícias?

E como convém a um país que
cresce no cenário internacional e passa a ser disputado como destino de imigrantes,
nada melhor do que prevenir e dobrar as penas de quem, por exemplo, oculta clandestino ou estrangeiro irregular.
Bush manda lembranças.

 

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