Crítica de Eric Novello para o site literário Aguarrás, sobre “Certas Canções”: saudosismo positivo da reinvenção da democracia
Certas Canções é o romance de estréia de Marcelo Semer.
No meu passeio de sempre pelas orelhas descubro que ele é juiz de direito, já foi professor universitário, jornalista e advogado. Com tanto currículo sempre torço o nariz, mas admito que não existe ciência mais complicada do que sintetizar material para as tais orelhas que de um lado vendem a história e do outro o autor.
Pois do lado da história, anos 80. O texto cita Chico, Caetano e Milton Nascimento, chamado carinhosamente de Milton. Entre uma MPB e outra, entre um Paralamas e um Titãs, o momento mágico das Diretas Já. Hora então de mergulhar nas Certas canções.
E o começo é bom. Bem escrito e dosado nos elementos que apresenta: amizade, política e canção. O que podia servir apenas como trilha sonora se mistura logo de cara com a vida dos personagens e ajuda a definir suas personalidades para o leitor. Aqui, o gosto musical é levado a sério, quase questão de caráter.
“Chico ou Caetano? Eu era Chico. Sem Dúvida. Cada palavra no seu lugar, como se elas nunca tivessem estado em qualquer outro antes. Como se tivessem nascido juntas, e só nós ainda não conseguíssemos vê-las assim desde o início. (…) Mas o João, não. Ele era Caetano. João era energia, era etéreo. Era pura sensação. Cheio daquelas coisas que na época a gente não sabia descrever muito bem”.
E essa é a brincadeira: contar a história de amigos inseparáveis (e dessa ingenuidade de amigos que se acham inseparáveis) bebendo da história do Brasil, do fim da ditadura e do que a música representou nessa luta pela liberdade do povo brasileiro.
Enquanto o ambiente se compõe no imaginário, o leitor se agarra ao que há de mais concreto: os personagens e sua paixão pela música. Se o que leva um livro adiante são suas perguntas e respostas, em Certas Canções as perguntas surgem com naturalidade: o que será desse triângulo, será mesmo de amigos, será amoroso, que músicas vão ouvir quando suas vidas mudarem radicalmente, porque toda vida há de mudar. Com o passar das páginas, porém, descobrimos que a essência dos personagens não é feita de melodia, é temperada por ela. O verdadeiro substrato é a política. E aqui está o problema.
“Thales Ramalho, que ainda não era um convertido, não veio. Paulo Maluf, o pretenso destinatário da derrota, também não deu às caras. Mas José Sarney estava lá. Era o chefe da tropa inimiga, votou pelo não e arregimentou sua infantaria para votar junto com ele. Mal sabia que seria o verdadeiro herdeiro do insucesso das diretas por obra e graça do destino. Ou será que ele sabia?”
Determinados temas atraem demais a atenção, não importa como sejam utilizados. Há cenas, imagens, momentos que funcionam como verdadeiros buracos negros e mudam a importância relativa das coisas. A política funciona assim. É muito difícil usar a política como pano de fundo, ainda mais a ditadura, sem que ela ganhe a batalha e se torne o foco, sem que ela demonstre a força diante dos protagonistas que ainda são reflexos de Chico e Caetano. Tudo bem que influencie os rumos da história, já que estamos falando da reinvenção da democracia, mas sua onipresença acaba ofuscando o que deveria ser o centro da narrativa: o aspecto humano. Os personagens tão próximos, com jeito tão Caetano de ser, passam a ser de direita, de esquerda, o cara do PMDB. A política está na frente, no pano de fundo a música e a amizade.
O engraçado é que essa armadilha que pega os personagens pelo pé e os dilui, tornando-os mais contadores do que participantes, consegue dar fôlego aos eventos e fazer a trama girar.
“Em relação à estratégia, a esquerda historicamente se dividia entre aqueles que pretendiam o tudo ou nada e aqueles que entendiam possível construir uma nova ordem aos poucos, gradualmente. Entre aqueles que queriam a revolução e outros que entendiam possível iniciar com a reforma. O Saulo era (…) mais realista. Seu objetivo era ocupar espaços, por menores que eles fossem”.
Meu olhar nada imparcial buscava a história de três amigos, de triângulos que em determinado momento sentem os ângulos tensos e desmoronam para formar outras geometrias. E isso eu encontrei aqui e ali, escondido nas entrelinhas, como se o autor na ânsia de compartilhar sua visão política com um mundo de leitores tivesse guardado o melhor da lembrança (verdadeira ou construída) para si.
Se funciona? Quem procura histórias mais cotidianas provavelmente se perderá no meio do caminho, com os amigos ficando menores que os broches em seus peitos. Quem gosta de livros políticos lamberá os beiços e desfrutará com tudo de um saudosismo positivo (nada de besteirol anos 80 como pode induzir a orelha), que mostra um povo com capacidade de mudar seu destino e lembra que nossa música pode ser muito mais do que “tira o pé do chão e grita, galera”.
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