Quem grita por lei e ordem é o primeiros a aplaudir crimes bárbaros para sua contenção
É curioso que aqueles que mais defendem o aumento do rigor penal se frustrem tanto com a condenação da violência policial.
Os que pleiteiam a redução da maioridade são justamente os mais refratários às políticas de desarmamento, mesmo que a violência contra a qual se insurjam seja praticada quase sempre com armas de fogo.
O que está em jogo, na verdade, não são princípios. Mas a ideia recorrente de que alguns crimes e certas violências sejam aceitáveis, enquanto outras não.
Basicamente, a ilusória divisão da sociedade entre bandidos e homens de bem –de uma forma tão dogmática, que nem mesmo os crimes dos homens de bem são capazes de transformá-los em bandidos.
Muitos dos que criticam de forma veemente a corrupção dos políticos se propõem a oferecer propinas para um atendimento diferenciado. E entre aqueles que reclamam do volume da carga tributária, também estão os que indiretamente a provocam sonegando impostos que serão cobrados de outros.
Quem se atreveria a chamá-los de bandidos?
Essa ilusória distinção é o que permite ao cidadão ser um feroz defensor do vertiginoso aumento das penas, na crença de que jamais lhe alcançarão.
Pugnar pela redução da maioridade penal a cada crime grave cometido, sem compreender que isso significa o ingresso do direito penal na escola, pela porta do bullying, nas baladas, pelos documentos falsos nas mãos de adolescentes ou nas discussões juvenis em redes sociais.
É fácil tornar rigoroso o direito penal quando conseguimos criar uma imaginária linha divisória da qual sempre nos colocamos do lado certo, supondo que a criminalidade só é praticada pelos outros. Por “eles”.
É difícil compreender, no entanto, que essa linha divisória não é assim tão natural, mas alimentada pela própria sociedade por intermédio de instrumentos de seletividade do sistema penal.
Há escolhas políticas que a conformam.
Por exemplo, quando o Código Penal pune o furto de um rádio de veículo de forma mais grave do que o homicídio por erro médico ou a lesão corporal praticada intencionalmente. Quando estipula pena maior a um roubo de dez reais, do que a tentativa de homicídio doloso.
A lei quer dizer que não há bem mais tutelado do que a propriedade. Mas não qualquer propriedade.
Se um furtador devolve a coisa subtraída no dia seguinte, ainda assim responderá pelo crime, por menor que seja o bem; já o sonegador que faz acordo para restituição de milhões à Receita, escapará do processo penal.
A seletividade não para na legislação, pois é sabido que a vigilância policial tampouco se distribui proporcionalmente pela sociedade.
A periferia e o entorno das favelas são muito mais fiscalizados do que regiões nobres, provocando enorme distorção na apreensão de armas e entorpecentes, por exemplo. Quem vê o cotidiano forense, supõe que só pobres usem drogas.
Até mesmo no sistema de justiça, a seletividade se revela.
Recentemente, duas decisões paradigmas do STF acabaram por aguçar um certo apartheid processual.
De um lado, o Supremo entendeu que não se pode prender antes do trânsito em julgado sem fundamentar a necessidade cautelar.
De outro, limitou fortemente a abrangência dos Habeas Corpus, quando de urgência substituíam recursos mais demorados às cortes de Brasília.
O subproduto das decisões é que diminuiu a chance de prisão a quem responde o processo em liberdade e diminuiu a chance de liberdade a quem responde o processo preso.
Pelo maior volume de prisões em flagrante, provocados pela vigilância policial, não é difícil concluir quem serão os presos.
Com isso, muitos réus só terão acesso à jurisprudência dos tribunais superiores, após terem cumprido integralmente as penas que mais tarde se concluirão desnecessárias.
Nós podemos decidir ser um estado policial, baseado na forte vigilância, na hiper-prisionalização e na paulatina supressão de garantias em nome da segurança.
Podemos optar em ser um estado social, que dê preferência à ampliação das redes de proteção e que esteja focado nas alternativas à prisão e em policiamentos comunitários.
Mas manter um sistema penal seletivo, apenas nos leva a um estado hipócrita, em que aqueles que gritam por lei e ordem, são os primeiros a aplaudir crimes bárbaros cometidos supostamente para sua contenção.
A meu ver lucidez é isso! O mundo deveria ler isso!
Em tempos de discussão sobre maioridade penal, essa música de 2004 se faz atualíssima. http://www.youtube.com/watch?v=_Zc7gBKV_Vg