Foro privilegiado e prisão especial por títulos, resquícios de privilégios do absolutismo
Nas Ordenações Filipinas, diploma importado que vigeu aqui na época do Brasil Colônia, as penas de certos crimes eram distintas, mais brandas, se aplicáveis a nobres ou autoridades. Estes, de condição superior, não podiam por exemplo sofrer com açoites ou galés que eram largamente aplicadas a escravos ou peões.
Da legislação ibérica ainda se podia dizer que era uma lei de seu tempo. Impunha ao povo um direito penal do terror, fundado na máxima intimidação e em penas crudelíssimas, suavizadas, de toda a forma, se o destinatário fosse um fidalgo.
Afinal, a violência de Estado e a desigualdade perante a lei eram marcas indeléveis do absolutismo que reinava em toda a Europa.
Incrível é mantermos ainda hoje, mais de um século depois de sua revogação, algumas reminiscências jurídicas deste ordenamento profundamente elitista.
Um exemplo típico é o da prisão especial. Na vigência das Ordenações (entre 1603 e 1830), a mesma prisão que para um homem do povo seria em ferros, para nobres e autoridades, ou Doutores em Leis, Canones ou Medicina, poderia ser domiciliar.
Hoje, a despeito de todos os avanços em direção ao reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão e principalmente da igualdade entre as pessoas, preservamos o instituto da prisão especial como uma forma privilegiada de encarceramento cautelar.
Continua sendo destinada aos ocupantes de certos cargos públicos, membros de algumas atividades profissionais e aos portadores de diploma de curso superior. As penas já não podem mais ser diferentes entre ricos e pobres (ou diplomados e não instruídos), afinal todos somos iguais perante a lei. A forma de cumpri-las, no entanto, acaba sendo diversa e privilegia a não promiscuidade dos eventuais presos da elite com os incultos.
O foro privilegiado para julgamentos criminais de autoridades é outra desigualdade que ainda permanece. Reproduzimos, com pequenas variações, a regra antiga de que fidalgos de grandes estados e poder somente seriam presos por mandados especiais do Rei.
É um típico caso em que se outorga maior valor à noção de autoridade do que ao princípio de isonomia, com a diferença de que hoje a igualdade é um dos pilares da Constituição.
Um promotor de justiça ou um magistrado que praticam um homicídio –nada que mais se distancie de suas funções- são julgados por um órgão especial de desembargadores do Tribunal de Justiça. Não no Tribunal do Júri, pelo conselho popular, como ocorre com os demais assassinos sem cargos.
Aparentemente, trata-se na hipótese de preservar as autoridades de um processo comum, como se sofressem um constrangimento ao serem julgadas por autoridades iguais ou inferiores. Nada mais sem razão. Competência processual não se deve medir por uma ótica militar ou por estrato social.
Autoridades que cometem crimes devem ser julgadas como quaisquer pessoas, pois deixam de se revestir do cargo quando praticam atos irregulares.
Um juiz de primeiro grau pode considerar inconstitucional um plano econômico do governo federal e não aplicá-lo ou sustar uma licitação importante por ato de improbidade do governador.
Mas não pode julgar criminalmente o prefeito de sua cidade, nem que se trate de um simples acidente de trânsito. Este tem foro privilegiado, só podendo ser julgado no Tribunal de Justiça, como os governadores que são julgados no Superior Tribunal de Justiça ou parlamentares, submetidos ao STF em razão de qualquer tipo de infração.
Até a pouco tempo, mesmo os aposentados ou os que já haviam deixado o exercício dos cargos públicos, portanto dissociados de qualquer função do Estado, mantinham o foro privilegiado em relação a fatos pretéritos. O STF avançou e retificou seu entendimento anterior: quem já deixou o cargo não tem mais o privilégio.
A idéia da extensão do foro privilegiado não vingou na Câmara quando suscitada pela primeira vez, mas vira e mexe retorna com força à discussão. Além de devolver a aposentados e ex-ocupantes de cargos públicos o foro privilegiado nas lides criminais (para fatos ocorridos durante seus mandatos), a competência por prerrogativa de função seria também estendida a ações de improbidade, que tramitam no juízo cível.
No fundo, esse movimento para a extensão do foro privilegiado é uma reação análoga àquela que se formou para tolher a ação fiscalizatória dos promotores de Justiça, responsáveis pelo ajuizamento das ações de improbidade, com a proposta da chamada Lei da Mordaça. A lógica é a mesma: deslocar para as cúpulas das instituições (mais submetidas ao contato com o Executivo), o controle da legalidade de atos dos membros do poder.
O foro privilegiado, tal qual a prisão especial, é herança de uma legislação elitista, que muito se compatibilizou com regimes baseados na força e no prestígio da autoridade.
Casa como uma luva em uma sociedade fundada na desigualdade, que privilegia o apadrinhamento para provimento de cargos públicos e se habitua ao “você sabe com quem está falando” típico das autoridades flagradas no ilícito.
A hora é justamente a de retirarmos estes e outros entulhos autoritários e corporativistas que ainda permeiam nossa legislação, como a jurisdição especial dos militares e PMs e a imunidade processual dos parlamentares.
Remover a síndrome dos desiguais seria muito importante para revigorar na população o bom conceito da justiça. Mostrar que todos, inclusive os membros do poder, se submetem às mesmas regras, às mesmas sanções e aos mesmos juízes que os homens do povo. Sem privilégios. Isso é democracia.
(leia também: Desaforo privilegiado)
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