….sol de justiça….


O artigo que segue é de autoria de Kenarik Boujikian Felippe*, publicado originalmente no jornal Juízes para a Democracia. A gravura de Goya é o ponto de partida para a crítica à criminalização dos movimentos sociais, o papel historicamente conservador dos tribunais e a excessiva concentração de poderes promovida pela reforma do Judiciário.

Kenarik exorta o papel garantista dos juízes: “não transigir com os direitos, por maiores que sejam os obstáculos”

Sol de Justiça: refazer o Judiciário

E. Lafuente Ferri comenta o desenho “Sol de Justiça”, de Goya, que esta no Museu do Prado. Diz que a luz não é somente da liberdade e da lei. Com elas devem advir a justiça simbolizada pela balança cercada de um esplendor luminoso, que dissipa a obscuridade. Do lado esquerdo do desenho vemos que a população recebe a claridade com êxtase, enquanto que aqueles que se encontram do lado direito e representam os partidários de um velho regime recebem contritos.

O desenho faz lembrar a lição do professor de ciência política, Andrei Koerner, na obra Judiciário e Cidadania: No período imperial “o objetivo da mediação judicial dos conflitos era a manutenção da estabilidade escravista, para que os magistrados atuavam em colaboração com o governo e com os proprietários”, era resolver os conflitos de modo que não se voltassem contra a própria ordem política e a estabilidade social do Império. Havia descumprimento aberto da norma de 1832 que proibia o tráfico, pois cerca de 400 mil foram escravizados após este marco. Neste período, o ministro da Justiça advertiu um juiz, que determinou a abertura de investigação sobre o ingresso de um escravo africano, pois aplicou a lei com um rigor contrário à utilidade pública e ao pensamento do governo. O magistrado deveria evitar um julgamento em prejuízo e com perigo dos interesses, que causaria alarme e exasperação aos proprietários. O governo imperial dizia: “os juízes não podem examinar estas questões sem considerar a razão do Estado, sem considerar as necessidades da ordem pública, sem considerar os imperativos de manutenção da ordem e da segurança” (Direitos Humanos – Visões Contemporâneas, Associação Juízes para a Democracia).

As coisas não são tão diferentes em 2010, pois os donos do poder continuam a achar que o Poder Judiciário deve atuar para atender os seus interesses, com todos os instrumentos disponíveis e dentre estes temos a utilização do Judiciário no processo de criminalização dos movimentos sociais, no qual a luta pelos direitos sociais é transformada em delito e os sujeitos que a promovem, transmudam-se em delinquentes, com o intuito de reprimir o exercício de luta por transformações sociais e transmitir, falsamente, a ideia de solução de um problema.

Os movimentos sociais foram eleitos como o “inimigo” e segundo E. Raúl Zaffaroni “a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa“, portanto desprovido de dignidade.

Não estamos mais no tempo imperial e os povos do mundo estabeleceram o valor da dignidade humana como primazia e referencial ética.

Nos dias de hoje, a expectativa é que o Poder Judiciário cumpra a finalidade-função do Estado-Juiz, que é o de ser garantidor dos direitos humanos. Entretanto, a estrutura do Poder Judiciário reforça a ideia do juiz burocrata.

Muito antes da reforma do Judiciário, introduzida pela emenda 45/2004, o Banco Mundial apontava a necessidade de um Judiciário que atendesse os donos do poder, como se verifica no documento técnico 319, “O setor judiciário na América Latina e no Caribe – elementos para reforma”, que tinha como tônica: o desenvolvimento econômico do setor privado e a melhor garantia do direito de propriedade, com indicação de alguns institutos para alcançar o objetivo: súmulas com efeito vinculante, ações de inconstitucionalidade centradas, com redução do controle de constitucionalidade nas primeiras instâncias, concentração de poder nas cúpulas do Judiciário, com ação para a disciplina interna.

A reforma introduzida pela emenda referida atende esta política neoliberal, na medida que teve como traço marcante a verticalização do Poder Judiciário, com incalculável concentração de poder no Supremo Tribunal Federal, com a instituição de vários institutos e ações como as súmulas vinculantes.

Entretanto, a própria Constituição atribui ao juiz o papel de garantidor dos direitos fundamentais e para tanto ele deve exercitar a resistência de ser mero aplicador e apreender os fatos que lhe são postos em cada processo, na perspectiva de uma República em que a pobreza seja erradicada, reduzida as desigualdades, construída uma sociedade livre, justa e solidária, desenvolvendo uma sociedade nacional, com a promoção do bem de todos, tal como determinado na Constituição.

Não desistir e não transigir com os direitos, por maiores que sejam os obstáculos e as contingências históricas, de pensar e agir para transformar o mundo num lugar digno para viver, em que todos os seres humanos possam usufruir igualmente dos direitos e, principalmente, possam ter igual acesso aos bens econômicos, culturais e sociais. Uma sentença, com esta perspectiva reinventa a vida.

Que o sol de justiça entre com toda a sua luminosidade para dentro dos fóruns deste país!

* Kenarik Boujikian Felippe é juíza de direito em São Paulo, ex-presidente e atual secretária do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia.

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