….STF deve autorizar interrupção da gravidez na anencefalia…

Decidir de forma contrária é condenar milhares de mulheres a um sofrimento inútil

Depois de quase oito anos de espera, o Supremo inicia, hoje, o julgamento da autorização para interrupção da gestação do feto com anencefalia.

O processo começou em 2004, quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde ajuizou ação no STF (ADPF 54) pretendendo uniformizar a interpretação judicial nos casos em que se descobre antecipadamente que o feto nascerá sem cérebro.

Houve concessão da liminar pelo ministro Marco Aurélio, mas a decisão foi cassada no mesmo ano, por maioria no Plenário.

Desde a liminar, a composição do Supremo se alterou bastante, havendo nos meios jurídicos a expectativa do julgamento de procedência da ação: em outras palavras, que o tribunal finalmente repute como legal a autorização judicial para a interrupção da gestação nestes casos.

Decidir de forma contrária significaria condenar milhares de mulheres a um sofrimento inútil.

A evolução do pensamento jurídico já pôde ser sentida pela inclusão expressa da hipótese nos trabalhos da comissão de elaboração do novo Código Penal.

Na maioria dos casos até agora julgados nas instâncias inferiores, a autorização vem sendo concedida por juízes e tribunais estaduais, com base em dois bons argumentos.
O primeiro é que em se tratando de anencefalia, não há propriamente aborto.

O aborto pressupõe expectativa de vida, o que não ocorre quando há ausência de cérebro.

Fazendo um paralelismo com a lei que autoriza a doação de órgãos, o diagnóstico de morte encefálica já caracteriza legalmente a situação post mortem, exigida para a retirada dos tecidos.

Os juízes também tem se ancorado no princípio da dignidade humana.

Seria uma ofensa à dignidade exigir de uma mãe que suporte por nove meses a gestação de um filho que nascerá sem cérebro e, portanto, sem vida. Tem-se entendido que o Estado não pode impor tal sofrimento à gestante.

Na plateia do julgamento de hoje, deve estar a agricultora pernambucana retratada no documentário “Uma história Severina”, que estava prestes a interromper a gravidez quando o STF cassou a liminar em 2004. Depois de um périplo entre médicos e juízes, acabou dando luz a uma criança natimorta que só veio a conhecer nas imagens do próprio documentário.

Há quem defenda a proibição da conduta pela ausência de regra expressa no Código Penal.

Como se sabe, nossa lei criminaliza o aborto, punindo tanto o médico que o realiza, quanto a gestante que o autoriza, com apenas duas exceções: gestação resultado de violência sexual e aquela que põe em risco a vida da mulher.

Existe uma circunstância jurídica que milita em prol dos defensores da autorização judicial: o Código Penal de 1940 não podia estipular a legalidade desta interrupção, pois não era imaginável quando editado, que a medicina pudesse prever a má formação fetal com tamanha antecedência.

E para os que se aferram na letra fria da lei, ou no caso, da ausência dela, uma lição de recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que enfrentou a questão e autorizou a interrupção da gravidez: “É a vida que faz o direito, não o direito que faz a vida”.

A falta de uma norma específica não pode ser álibi para fugir à aplicação de um princípio tão fundamental quanto o da dignidade da pessoa humana, elencado, aliás, na Constituição Federal, como um dos objetivos da República.

Espera-se, sobretudo, que o STF resista à tentação de se embrenhar na questão religiosa e não ceda à forte pressão das Igrejas quando assuntos como esses chegam às pautas, seja do Congresso, seja dos tribunais.

A CNBB, por exemplo, está prometendo uma vigília de religiosos pelo ‘direito à vida’, ainda que, no caso, esta não se exerça nem mesmo por instantes.

Sem desmerecer ou menoscabar os fundamentos e o direito dos religiosos de expô-los, certo é que os princípios morais tutelados pelos diversos credos só dizem respeito a seus próprios fiéis e, diante da centenária separação Igreja-Estado, não podem ser impostos ao conjunto dos cidadãos.

No âmbito político, a potência dos lobbies religiosos tem demonstrado força incomum –o abandono da política anti-homofobia nas escolas é um deles. Espera-se que a violação aos princípios do Estado laico não contamine o Judiciário.

Nunca é demais lembrar que a criminalização do aborto é uma das principais causas de morte de mulheres no país.

E que a defesa abstrata de um conceito moral, contraditoriamente, tem se mostrado uma das mais frágeis formas de proteção da vida.

3 Comentários sobre ….STF deve autorizar interrupção da gravidez na anencefalia…

  1. Dra.Carmem Zenir Fagundes 13 de abril de 2012 - 02:35 #

    Adolf Hitler era à favor da eliminação de deficientes. Certamente aplaudiria o STF.

  2. C Sidney 13 de abril de 2012 - 11:42 #

    Opinião, cada um tem a sua. Mas a decisão do STF já deveria ter sido decretada há mais de cem anos. Na questão do aborto, nossa sociedade é um atraso. Aborto não é assunto para religiosos, moralistas e leigos. Aborto é questão de saúde. Todos os fundamentos assinalados pelo senhor tem razão de ser. E nem há motivo para dizer outros mais, porque poderia ofender quem construiu a própria vida em torno de paradigmas onde se entrincheiram e defendem de corpo e alma, sem estudar mais profundamente a questão e, conhecendo melhor, ter opinião melhor, mais de acordo com a razão humana. O mundo de alguns, é um mundo muito claro. Muito positivista. E há o resto, um resto real, que não se rege pelo positivismo, mas pela realidade, pelo amor, pelo sofrimento, pelos fatos e que se constrói por si, independente da nossa vontade. E o máximo que dessas pessoas obtusas se pode esperar é que aqueles que vêem o mundo de outro modo, um dia se convertam para sua visão correta do mundo, embora tacanha. Um abraço e obrigado pelo texto esclarecedor. Ainda há um longo caminho pela frente.

  3. C Sidney 13 de abril de 2012 - 11:44 #

    Dr ! Como é complicado provar que não sou robô!