….terrorismo e oportunismo legislativo….

Um projeto de lei inserido na mesma lógica da supressão de direitos da
ditadura

 

O artigo que segue é de autoria dos defensores públicos Bruno Shimizu e
Patrick Cacicedo e critica, de forma contundente, o projeto de lei que pretende
tipificar o terrorismo –a começar pela violenta ofensa ao princípio da
legalidade.

A transição à brasileira, dizem os autores, fez com que, o período histórico
sob a égide da Constituição da República de 1988, tenha se caracterizado,
de forma paradoxal,  “pelo aumento do
estado policial, com um avançado processo de encarceramento em massa, além da
crescente prática de tortura e mortes por agentes estatais”.

O chamado entulho autoritário não
é apenas um resquício, mas base das violências cotidianas, porque “a superação
das mazelas ditatoriais está ainda muito distante da realidade brasileira”.

Aprovar um projeto como esse da lei de terrorismo, significa editar uma nova lei de segurança nacional, ainda
mais severa que a anterior dos tempos da ditadura.

 

 

Tipificação do terrorismo e o PLS nº 499/2013: oportunismo legislativo na
contramão do processo de democratização brasileiro.

 

Bruno Shimizu e Patrick Cacicedo  

 

O período histórico de mais de duas décadas no qual o Brasil foi submetido a
uma ditadura civil-militar foi caracterizado pela forte presença de um estado
policial aliado à supressão de liberdades civis. De fato, a censura fazia ruir
as liberdades de expressão e de imprensa e a repressão impedia a liberdade de
reunião e as manifestações políticas de oposição ao regime de exceção. A
atuação do estado policial tinha contornos repressivos cruéis, com a utilização
em larga escala da tortura, além da morte e desaparecimento forçado de pessoas
por ação do Estado.  

O fim do período ditatorial, sob o aspecto formal, só foi possível por meio
da ação política de diversos setores da sociedade brasileira, com o exercício
daquelas liberdades civis que próprio regime militar negava, mas que as
circunstâncias históricas tornaram inevitável. Do ponto de vista institucional,
todavia, a transição do regime de exceção para um Estado de Direito foi
obscuramente negociada, não sendo possível afirmar que se tratou de uma
verdadeira ruptura.

O processo de democratização teve seu ponto de destaque com a elaboração da
Constituição da República de 1988. A enunciação de direito fundamentais, dentre
os quais destacam-se os direitos civis e políticos outrora cerceados, bem como
diversas garantias de limitação do poder punitivo do Estado, representaram uma
clara manifestação de repúdio ao passado recente de regime de exceção e uma
esperança para o futuro democrático que se desenhava. 

Não obstante, por mais paradoxal que possa parecer, o período histórico sob
a égide da Constituição da República de 1988 caracterizou-se pelo aumento
do estado policial, com um avançado processo de encarceramento em massa, além
da crescente prática de tortura e mortes por agentes estatais.

A transição à brasileira que também foi fincada no texto constitucional, por
exemplo, com a previsão de um aparato policial de caráter militar, deixa
dolorosas marcas no cotidiano da população, principalmente aquela mais pobre,
que convive de forma cada vez mais intensa com a violência policial, a
seletividade discriminatória do aparato judicial e outras práticas típicas da
ditadura militar, como as prisões para averiguação, vedadas pela Constituição,
mas presentes no dia-a-dia das ações policiais e, normalmente, referendadas
pelo Poder Judiciário.

A superação das mazelas ditatoriais está ainda muito distante da realidade
brasileira. Somente depois de mais de duas décadas do fim do regime de exceção
foi possível a instituição da Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de
apurar as graves violações de direitos humanos do período.

A resistência dos setores mais conservadores da sociedade em reconhecer os
horrores da ditadura civil-militar e a permanência das mesmas práticas na atual
quadra histórica demonstram que o que permanece de autoritarismo na sociedade
brasileira não pode ser denominado apenas de “resquício”; o chamado “entulho
autoritário”, muito mais que um resto indesejável de um período sombrio,
constitui efetivamente a base sobre a qual se erigiu nossa “democracia” dos
massacres.

Se o autoritarismo característico do regime militar sempre se mostrou
presente sob o regime constitucional contemporâneo, por exemplo, nos
assassinatos em massa por meio de ações policiais, que chegaram a gerar uma
recomendação do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas
com o objetivo de suprimir a Polícia Militar e combater a atividade de grupos
de extermínio no Brasil, foi a partir das manifestações de junho de 2013 que
ficou clara a incapacidade do Estado brasileiro em lidar com o exercício da
manifestação política de caráter contestatório da ordem vigente. 

A liberdade de manifestação suprimida pela ditadura militar ainda não
consegue ser plenamente exercida no período de vigência da Constituição que
estabeleceu o Estado Democrático de Direito, sendo reprimida precisamente por
ação do aparato policial de caráter militar presente no texto constitucional em
virtude da transição (mal) negociada da ditadura para a democracia formal.

Liberdade e autoritarismo convivem no Brasil contemporâneo de forma
particularmente conflituosa e sem grandes perspectivas de uma superação em nome
da primeira.

Não é por acaso que, às vésperas do aniversário de cinquenta anos do golpe
militar que instituiu o regime de exceção por mais de duas décadas no Brasil, a
grande discussão no Congresso Nacional gira em torno do Projeto de Lei do
Senado nº 499 de 2013, que define os crimes de terrorismo. Trata-se de um
projeto de lei inserido na mesma lógica de restrição de liberdades, típica de
períodos ditatoriais.

O Projeto em questão foi claramente proposto como resposta estatal às
manifestações políticas que emergiram após junho de 2013, demonstrando a
incapacidade do Estado brasileiro em lidar com o exercício de liberdades civis
e políticas. Ao invés de fomentar o exercício de direitos fundamentais de cunho
político, o Estado apresenta a criminalização como a resposta já comum e
característica da política criminal brasileira, expansionista e emergencial.

O Projeto de Lei do Senado nº 499 de 2013 não peca apenas pela falta de
oportunidade e necessidade, senão que viola frontalmente a Constituição da
República, especialmente o princípio da legalidade em seu aspecto da
taxatividade.

A característica mais marcante de legislação penal de regimes autoritários é
a vagueza e generalidade, de modo a que uma ampla gama de condutas nela possa
ser abarcada. E essa é a principal característica do PLS nº 499/2013, que, sob
o pretexto de criminalizar o terrorismo, certamente servirá de instrumento de
limitação de direitos fundamentais civis e políticos.

Afinal, poucos tipos poderiam ser tão vagos quanto “provocar ou infundir
terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à
integridade física ou à saúde ou à privação de liberdade da pessoa”.

Não bastasse a imprecisão dos elementos constitutivos do tipo em questão, é
importante notar que a gravidade da pena (reclusão de 15 a 30 anos ou de 24 a
30 anos, se resultar morte) supera a dos tipos penais previstos na draconiana
Lei de Segurança Nacional, símbolo do direito penal da ditadura militar
brasileira. 

Note-se, aliás, que a Lei de Segurança Nacional é expressamente citada na
exposição de motivos do projeto de lei, sendo reputada como insuficiente para a
realidade atual. O artigo correlato da LSN trazia pena de 3 a 10 anos para
aquele que cometesse o ato de saquear, depredar, devastar, extorquir, dentre
outros núcleos típicos, com a finalidade de manifestar inconformismo político.

A “nova lei de Segurança Nacional”, consubstanciada na tipificação do
terrorismo, quintuplica a pena mínima, bem como propõe uma tipificação
extremamente aberta, entregando-se ao arbítrio judicial a subsunção do fato à
descrição normativa, o que viola o basilar princípio da legalidade em matéria
penal, que exige que a incriminação seja sempre certa e precisa.

O projeto de lei, portanto, parece confirmar a suspeita de que o próprio
poder legiferante brasileiro, por várias vezes, vê no texto da Constituição
Federal um mero entrave a anseios políticos continuístas de elites dominantes.
Nesse sentido, é de todo sintomática a evocação da Lei de Segurança Nacional
para justificar a propositura de um dispositivo de incriminação generalizada
contra os “inconformados políticos”.

Se o exercício de liberdades civis é enfrentado pelos poderes instituídos
como ataque à segurança nacional, parece incontornável a conclusão de que as
elites políticas brasileiras lançarão mão de todos os recursos que estiverem ao
seu alcance para sufocar a efetivação dos direitos fundamentais. É justamente
nesses momentos de tensionamento político, contudo, que a resistência torna-se
mais urgente. 

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Bruno Shimizu é Defensor Público
do Estado de São Paulo, coordenador do Núcleo Especializado de Situação
Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo. Mestre e Doutorando em Direito
Penal e Criminologia pela USP. 

Patrick Cacicedo é Defensor
Público do Estado de São Paulo, coordenador do Núcleo Especializado de Situação
Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo. Mestrando em Direito Penal e
Criminologia pela USP.

 
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