A crença na democracia racial conduz a uma sutil negação do racismo
O artigo que segue é da juíza Luiza Barros Rozas, e foi publicado originalmente no jornal Juízes para a Democracia, da qual é associada.
Toca em um ponto essencial, embora quase sempre escamoteado: “há significativas disparidades entre brancos e negros na distribuição da renda nacional e na fruição dos direitos sociais, o que nos leva a concluir que permanece um longo caminho a ser perfilhado na construção de uma sociedade democrática do ponto de vista racial”.
Luiza distingue os conceitos de tolerância e democracia racial, muito confundidos e conclui: “Democracia racial pressupõe, principalmente, igualdade racial, econômica e política.”
Um balanço sobre a questão social – Luiza Barros Rozas*
No dia 10 de dezembro de 2010, o Secretário – Geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, realizou o lançamento oficial do Ano Internacional dos Afrodescendentes – 2011. A iniciativa da ONU tem por objetivo principal cobrar da comunidade internacional políticas públicas que garantam a concretização dos direitos econômicos, sociais, políticos, civis e culturais da população negra, reafirmando as metas da Conferência de Durban, em 2011, e da Conferência de Revisão de Durban, em 2009.
Trata-se, sobretudo, de uma forma de promover a integração dos afrodescendentes em todos os seus aspectos e de reiterar o desafio da luta por uma sociedade global democrática do ponto de vista racial.
Visa, ainda, reconhecer o legado cultural e a importância histórica das pessoas
de ascendência africana. Por esta razão, diversos eventos relacionados ao tema têm sido promovidos ao longo de 2011.
Na cidade de São Paulo foram realizados, por exemplo, o I Seminário sobre os Resultados da Lei 14.187/2010, na Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, o I Prêmio Luiza Mahin, na Câmara Municipal, e o 2° Debate Sobre Crimes de Racismo e Injúria, na Escola Paulista da Magistratura, dos quais participei na qualidade de representante da Associação Juízes para a Democracia.
Sob o prisma nacional, em um país onde a escravidão vigorou por mais de 300 anos, o Ano do Afrodescendente nos traz a oportunidade de refletir e fazer um balanço mais profundo sobre a questão racial.
Não é demais lembrar que, a despeito da legislação pátria não ter previsto, de forma expressa, critérios de discriminação racial, ocorreram restrições à população negra nas leis que cuidavam da imigração. Com efeito, um decreto ratificado em 28 de junho de 1890 prescreveu que os africanos e asiáticos somente poderiam ser admitidos nos portos brasileiros mediante autorização do Congresso Nacional.
Foi apenas em 1951 que surgiu a primeira legislação anti-racista no Brasil, conhecida como “Lei Afonso Arinos”, que passou a punir a prática de discriminação racial. Contudo, embora tenha sido o primeiro estatuto jurídico a criminalizar o racismo, a referida lei produziu efeitos meramente simbólicos, pois tratou o tema como contravenção penal e com penas muito reduzidas.
Coube a Constituição Federal de 1988 a previsão de um Estado Democrático de Direito fundado na cidadania, na dignidade da pessoa humana, cujo objetivo primordial é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O legislador de 1988 não se limitou a estabelecer a isonomia, a proibir e a estabelecer punição para certos discrímenes.
Estabeleceu, em seu art. 3°, inciso IV, como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Na realidade, no tocante ao compromisso com o dogma da igualdade, a Carta de 1988 constituiu-se num verdadeiro divisor de águas.
Em 1989, atendendo às reivindicações do Movimento Negro, foi editada a Lei “Caó” (Lei n.° 7.716/89) para regulamentar o art. 5°, incisos XLI e XLII, punindo com pena de reclusão os crimes derivados de preconceito de raça e cor.
Já em 2003 foi promulgada a Lei n.° 10.639, como resposta às reivindicações e pressões históricas dos movimentos negro e anti-racista brasileiros. Este diploma normativo estabeleceu a obrigatoriedade do estudo da história do continente africano e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e do negro na formação da sociedade nacional brasileira (1)
Todavia, em que pese a evolução normativa no Brasil, dados estatísticos demonstram que brancos e negros ainda vivem em condições absolutamente desiguais.
Vejamos o indicador internacional da desigualdade racial brasileira: o IDH, que leva em consideração critérios como educação, expectativa de vida e renda per capita, ao ser desmembrado por grupo racial, demonstra que há um abismo de 61 países entre o Brasil negro e o Brasil branco. No ranking de qualidade de vida, os brancos ficam em 46º lugar e os negros em 107º lugar, pior que todos os países africanos, inclusive
a Nigéria e a África do Sul (2).
Do mesmo modo, estudo realizado pelo IPEA demonstrou que os negros não estão apenas sobre-representados entre os pobres, mas também a renda média dos brancos é superior à dos negros tanto no segmento mais pobre, quanto no intermediário e no mais rico da população, o que justificaria a afirmação de que o “Brasil branco” é duas vezes e meia mais rico do que o “Brasil negro”.
Outro dado que salta aos olhos é a desigualdade de renda entre negros e brancos. Constatou-se que, no Brasil, entre o 1% mais rico, quase 88% deles são de cor branca, enquanto que entre os 10% mais pobres quase 68% declaram-se de cor preta ou parda.
Deste modo, a população negra está sobre-representada entre os 10% mais pobres e sub-representada entre o 1% mais rico (3).
Assim, apesar dos avanços, a análise dos dados estatísticos, evidencia que, em praticamente todos os indicadores socioeconômicos, há significativas disparidades entre brancos e negros na distribuição da renda nacional e na fruição dos direitos sociais, o que nos leva a concluir que permanece um longo caminho a ser perfilhado na construção de uma sociedade democrática do ponto de vista racial.
Assim, os conceitos de tolerância racial e democracia racial são distintos e não devem ser confundidos. Para que haja democracia racial não basta que exista alguma harmonia nas relações raciais de pessoas pertencentes a etnias diferentes. Democracia pressupõe, principalmente, igualdade racial, econômica e política.
A crença na democracia racial conduz a uma sutil negação do racismo e de práticas discriminatórias, o que contribui para a perpetuação do atual estado de coisas.
Portanto, é necessário assumir, de uma vez por todas, que há preconceitos derivados de raça e que negros e brancos vivem em situações desiguais. O Ano Internacional do Afrodescendente veio em boa hora e que esta homenagem nos traga a oportunidade para a formulação de novas propostas de inclusão étnica e racial.
E esse desafio é de todos nós!
Notas
(1-) SANTOS, Sales Augusto. Contextualização da Lei n. 10.639/03: a Lei n. 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do movimento negro. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal n. 10.639/03. Brasília: Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 34.
(2-) CARVALHO, José Jorge de. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior. São Paulo: Attae Ed., 2005. p. 29. 3 Id. Ibid., p. 155.
(3) Id. Ibid., p. 155
*Luiza Barros Rozas, juíza de direito em SP e mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP
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