Que Chico continue a se reinventar e a nos provocar todo o sentimento
Um compositor consagrado sempre tem muitos sucessos que agradam incondicionalmente seus fãs. Chico Buarque certamente tem o dobro.
Seu público sabe de cor mais de uma centena de músicas e fica inebriado pela possibilidade de ouvi-lo cantar qualquer uma daquelas que conhece bem. Ele podia até se aposentar viajando pelo país apenas repetindo seus grandes hits. Repertório não ia lhe faltar. Nem audiência.
Mas, paradoxalmente, é a renovação que o mantém em forma e próximo a seu público mais cativo. Seus fãs já sabem que a vitalidade dos shows depende, e muito, da felicidade de compor. E poucas vezes isso ficou tão claro quanto nessa nova temporada.
Um Chico renovado e exultante vem fazendo a alegria de seus milhares de admiradores. Não sem razão. Seu show empolga naquilo que inova e emociona no que resgata.
Do blues ao baião, passando pela valsa e o rock, com um mergulho no rap. Chico espalha versos geniais em melodias dissonantes e no auge do sucesso relembra um jovem experimentando passos que ainda não conhece muito bem.
Não é modéstia, é pura ousadia.
O balanço no dueto com o percussionista Wilson das Neves é um primor e relembra os bons tempos da parceria com o malandro Moreira da Silva.
“Sou eu”, aliás, funciona como uma releitura de “Sem Compromisso”, que Chico cantou como ninguém. Se na primeira, o ciumento ameaça a mulher que só dança com outro, para não haver bate-boca, nesta, seguro, ele apenas se gaba: quem sabe dela sou eu, depois que espalha seu fogo de palha no salão.
Chico é lírico e lógico, como as letras que, ao longo dos anos, mesclaram com engenho e arte, o sentimento e a simetria. Entre o anúncio do sambista que voltou e o do artista que se vai, na carreira, esbanjou do amor, em todas as suas vertentes.
Foi um show romântico, feliz e, sobretudo, apaixonado. Tanto no palco, quanto na plateia.
Não faltaram as mulheres de Chico.
Nem falo sobre aquelas que aproveitam os mínimos instantes de intervalo para as gritantes e fugidias declarações de amor, outra das tradições de seus shows. Mas aquelas em que Chico se transforma, dando voz aos sentidos e aos desejos mais íntimos, que compreende e traduz como poucos.
A fêmea, de Sob Medida. A sedutora, de Meu Amor. Ana de Amsterdan, dos diques e das docas. A virginal Teresinha.
Estavam todas lá, regurgitando os fragmentos de amor de suas entranhas, nas mais variadas formas. Sem pudores ou limites.
Mas de todas elas, a que mais me emocionou foi justamente Geni.
Em novo arranjo, que se destaca por um tom acima do conjunto intimista da apresentação, a estrela da festa foi sabiamente escolhida.
No momento em que violência e preconceito se entrelaçam com tanta frequência, agressões homofóbicas se multiplicam, sempre é bom lembrar, como tapa na cara de uma sociedade hipócrita e discriminatória, a história da maldita que era boa de cuspir e feita para apanhar.
Que Chico continue a se reinventar e a nos provocar todo o sentimento. Seguiremos, como encantados, ao lado dele.
Marcelo, apesar de já ter virado lugar-comum, meus parabéns! Sensacional a análise. abs