….uma (quase) defesa da PEC 33 (por Reginaldo Melhado)….

 

Para
juiz, proposta não é antidemocrática nem macula a separação dos poderes

 

 

Para
alimentar o debate, uma opinião divergente –inclusive da minha.

 

O
juiz do Trabalho Reginaldo Melhado escreve criticando a satanização da PEC 33,
mesmo que não defenda sua aprovação.

 

Para
ele, a mídia impediu um debate sem preconceitos de uma proposta que não seria antessala
do totalitarismo nem embrião do fim da separação dos poderes: “a maneira como o
projeto e seu debate foram banidos peremptoriamente pelos meios de comunicação revela
como a mídia se tornou um poder visceralmente totalitário e monolítico”.

 

Ao
revés, a proposta traria a oportunidade de rediscutir a conveniência das
Súmulas Vinculantes, o estreito quórum de declaração de inconstitucionalidade e
a participação popular no dissenso entre os poderes.

 

Enfim:
“Não é um projeto maravilhoso, mas sua originalidade e a relevância do tema sugerem
que ele não deveria ser discutido com tamanha superficialidade”.

 

 

(Quase) em defesa da PEC
nº 33: as curiosas relações entre os poderes da República, a mídia e um ilustre
penetra,

por Reginaldo Melhado*

 
 
 
A votação inicial da
proposta de emenda constitucional que submete ao Congresso Nacional algumas
decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) gerou virulenta reação dos meios de
comunicação. Juízes manifestaram-se em notas oficiais, sustentando que a emenda
violaria o princípio da separação dos poderes e amordaçaria o judiciário. Os
meios de comunicação apressaram-se em ver na aprovação da PEC uma espécie de
reação emulatória: a revanche do parlamento contra a condenação de parlamentares
no famoso processo do mensalão. Totalitarismo, tirania, repristinação da
ditadura do Estado Novo. Falou-se o diabo.

 

Diante dessa estridência toda,
e já sabedor de que nem tudo que se vê nos jornais e na TV traduz a realidade,
resolvi dar uma olhada na tal PEC nº 33/2011. Qual não foi minha surpresa ao
ver que muitos juristas e magistrados talvez nem mesmo tenham lido a proposta,
que parece bastante razoável e deveria ser debatida seriamente, sem
preconceitos. Se fosse dado a este escrevinhador bissexto votar, como membro do
que já se chamou de centro de picaretagem – o excelso parlamento brasileiro –,
ele não aprovaria a emenda, pois ela, com o perdão do lugar comum, talvez seja
pior do que o soneto. Mas a proposta não tem nada de antidemocrático, não
ofende a separação dos Poderes, não macula o STF e nem tem qualquer relação,
direta ou indireta, com os processos criminais que passam na televisão. Ao
diante, algumas impressões sobre seus três núcleos.

1. A emenda institui quórum
qualificado para a declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais. Com a PEC
nº 33, seriam necessários quatro quintos dos membros da Corte. Hoje, a Carta
impõe apenas a maioria absoluta. No Supremo, a declaração de
inconstitucionalidade de uma lei pode ser decidida por seis a cinco. No
controle concentrado de constitucionalidade, isso significa, por exemplo, que
uma emenda constitucional aprovada por três quintos dos votos dos deputados e
senadores cai por terra com o voto de um juiz (ou seis juízes, se se quiser).  O atual sistema, portanto, deveria mesmo ser
aprimorado. Quatro quintos talvez seja muito (não no STF, mas nos tribunais ou
nos seus órgãos especiais). Mas a maioria absoluta, no STF, é questionável.

2. A proposta de emenda
constitucional também trata da súmula vinculante. Estabelece que só depois de
aprovação pelo Congresso Nacional ela entra em vigor. Aqui se levantam vozes
vociferadoras: estaria o parlamento interferindo na atividade jurisdicional,
conspurcando o princípio da separação dos Poderes da República! Com todo
respeito, não há nada disso.

A proposta está coerente com
o que muitos juristas sempre sustentaram (inclusive os juízes da AMB, Ajufe e
Anamatra): na realidade, é a súmula vinculante quem viola a separação dos
poderes, amesquinhando o Legislativo: ela tem caráter normativo e não
jurisdicional. Embora se refira à validade, interpretação e eficácia de normas
jurídicas, a súmula vinculante caracteriza-se pela abstratividade,
generalidade, imperatividade e coercibilidade. Do ponto de vista ontológico,
ela não tem natureza jurisdicional. A súmula vinculante é norma jurídica, pois produz efeitos erga omnis (“eficácia contra todos e efeito vinculante”).
Melhor seria acabar com ela. Dificultar sua aprovação não resolve o problema,
mas a PEC cria modelo insinuante. Infundir a legitimação do parlamento (mesmo o
congresso-picareta) na aprovação da súmula vinculante talvez corrija o pecado original
(no sentido de que o STF legisla, não
sendo poder legislativo). A proposta, aliás, devolve ao palco da política a aprovação
por decurso de prazo: não sendo apreciada pelo Congresso, em 90 dias, a súmula
vinculante entraria em vigor, sem mais delongas nem milongas.

3. O ponto mais polêmico são
as decisões do STF nas ações diretas de inconstitucionalidade: a PEC também
aqui cria um modelo curioso e sugestivo, que nada tem de autoritário e haveria
de ser ponderado de forma judiciosa. Ela estabelece que a decisão declaratória
de inconstitucionalidade do STF deve ser submetida de imediato à chancela do
Congresso. Se o parlamento (por 3/5 dos seus votos, em reunião unicameral) se
manifestar contra a decisão do STF, a matéria então seria submetida à consulta
popular. O eleitor, o povo, apareceria na cena política. Novamente, aqui,
bradam os juristas e jornalistas contra esse suposto ataque à independência e à
autonomia do Judiciário.

De novo, também nesse ponto,
a reflexão carece de análise crítica e profunda. Do ponto de vista da filosofia
jurídica, a proposta remete a uma discussão instigante: a natureza da decisão
do STF na declaração de inconstitucionalidade da lei. Para Hans Kelsen –
jurista insuspeito de militar a favor da esquerda totalitária e corrupta –, o
tribunal constitucional não exerce jurisdição, em sentido técnico, ou
ontológico, ao declarar a lei inconstitucional. Ele atua como “legislador
negativo”. Tanto que, para o filósofo austríaco – pai do positivismo
jurídico –, o Tribunal Constitucional sequer integra o Poder Judiciário e é
formado por representantes da sociedade. Esse conceito, que não é defendido
apenas por Kelsen, influenciou o que muita gente chama de “modelo europeu”
(segundo o qual, a decisão da corte constitucional não é declaratória e sim
constitutiva. A lei tem vigência plena até ser considerada inconstitucional,
com efeitos ex nunc).

Com efeito, ao ser a matéria
“devolvida” ao Congresso, não há conflito entre poderes, e tampouco
intervenção de um na esfera de domínio do outro. Na realidade, o modelo criado
na PEC nº 33 cria um sistema original, distinto dos paradigmas norte-americano,
europeu ou francês. Montesquieu provavelmente se retorceu no túmulo, ao saber dessa
ideia do legislador negativo devolver a bola para o legislador positivo. Entretanto,
se o problema é pensado sob a ótica do sistema jurídico europeu, é o STF quem, ao
declarar a inconstitucionalidade da lei, refoge às suas funções típicas de
jurisdição e invade competência alheia. É o judiciário interferindo no
legislativo. A proposta de emenda constitucional cria uma ferramenta curiosa e democrática
de solução de eventual confronto entre os dois poderes, ao remeter a questão à
consulta do eleitor: a catálise da soberania popular. Enquanto Montesquieu
torceria o nariz, Locke e Rousseau bateriam palmas.

Os juristas conservadores,
não. Um deles, aliás, chegou a sustentar que o povo não deve se intrometer em
discussões sobre a inconstitucionalidade das leis, por ser um problema de
higidez da tecnicalidade. Como se o sistema de direito positivo fosse algo
estranho ao mundo real, asséptico, infenso às inflexões políticas. Como se a
constituição não fosse um documento político. Como se na festa dos juristas a consulta
popular fosse um penetra, sempre obliterado na relação dos convidados ao debate.
Dos argumentos contrários à proposta, esse é sem dúvida o mais simplista e
condenável.

Como se vê, não há na PEC nº
33 algo de totalitário, invasivo, canhestro. Não é um projeto maravilhoso, mas
sua originalidade e a relevância do tema sugerem que ele não deveria ser
discutido com tamanha superficialidade. Parodiando Dworkin, as pessoas deveriam
falar de direito seriamente. Ou, agora parodiando Habermas, o processo comunicativo
haveria de ser sincero e honesto.

De novo, cabe sublinhar: o
autor destes mal traçados rabiscos eletrônicos não emprestaria seu apoio às ideias
da PEC nº 33. Não sem antes um profundo diálogo democrático e um sério aperfeiçoamento.
Mas a maneira como o projeto e seu debate foram banidos peremptoriamente pelos
meios de comunicação revela como a mídia se tornou um poder visceralmente
totalitário e monolítico, para a infelicidade da nossa claudicante construção
democrática.

 

*Reginaldo Melhado é Doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito
(Universidade de Barcelona/USP), professor da Universidade Estadual de Londrina
e juiz titular da 6ª Vara do Trabalho de Londrina

4 Comentários sobre ….uma (quase) defesa da PEC 33 (por Reginaldo Melhado)….

  1. Irineu Tolentino 28 de abril de 2013 - 13:49 #

    O texto é bom e parece-me honesto, mas faltou analisar o contexto da famigerada PEC.
    Além de os deputados terem errado no delineamento da proposta, fizeram-no também quanto ao momento. Ou seja, nada (nem o fundo, nem a forma e nem o momento), justificam essa medida desesperada.
    Esperemos assentar a poeira, esperemos o retorno das autoridades – políticas e jurídicas – retornarem ao status quo ante, sem o deslumbramento causado pelo excesso de visibilidade dado pela imprensa, para aí sim discutirmos o assunto com mais serenidade.
    Qualquer mudança substancial nessa conjuntura atual ensejará perigosos riscos e erros, como já estamos vendo.

  2. XAD 28 de abril de 2013 - 15:19 #

    O debate sobre a PEC 33 demonstra o tamanho da manipulação de informações que existe no Brasil. O projeto surgiu no primeiro semestre de 2011, portanto, mais de um ano antes do polêmico julgamento da AP 470!

    Mesmo assim, alguns ministros do STF, instigados pela 'grande mídia' nacional, insistem nessa conversa de que o projeto seria uma 'retaliação' ao STF. Nada mais falso!

    Falso porque a PEC veio antes do julgamento, logo, não pode ser uma retaliação.

    Quanto ao mérito, a situação é ainda pior.

    Não há nenhuma previsão constitucional que permita que o STF delibere sobre o mérito de um projeto de lei antes de sua promulgação.

    Se prevalecer essa aberração, todos os projetos em tramitação na casa legislativa terão de passar pelo crivo dos "ministros-semi-deuses" antes da apreciação pelo parlamento! Seria o mesmo que fechar o Congresso Nacional!

    O correto é que o parlamento legisle, seguindo todos os trâmites regimentais, e, após a análise e promulgação dos projetos, aí sim o STF pode ser provocado a se manifestar sobre a constitucionalidade dos mesmos. Analisar depois do processo legislativo, tudo bem.

    Antes e "suspendendo liminarmente", é GOLPE puro e simples contra o Congresso Nacional e contra a soberania popular que elegeu os representantes que lá estão.

  3. Irineu Tolentino 28 de abril de 2013 - 23:56 #

    O STF não foi buscar a PEC 33 no Congressso. Desde 2011 ele permaneceu inerte, como manda a lei. Ocorre que, o PSDB, por seus membros (inclusive Deputados e Senadores), levou o assunto ao STF pela via do Mandado de Segurança, perfeitamente escorado na Constituição: Art. 5o, inciso "XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;". Ou seja, foram membros do Congresso Nacional que buscaram no STF um provimento jurisdicional para solucionar um conflito interno. E, a propósito, nem deu a decisão ainda, apenas uma liminar.

  4. XAD 30 de abril de 2013 - 02:03 #

    Irineu, seu comentário mostra que vc perdeu alguns pontos do debate (digamos assim).

    Primeiro: não tem nenhuma liminar contra a PEC 33.

    A PEC 33 foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara na semana passada.
    No mesmo dia, Gilmar Mendes concedeu liminar impedindo a votação, no Senado, do Projeto de Lei 4470, de 2012, que limita o tempo de televisão e o fundo partidário a novas legendas, o que foi interpretado como uma retaliação por parte dos parlamentares.

    Entendeu?

    Segundo: Dias Toffoli é o relator do Mandado de Segurança 32.036, impetrado na quinta-feira (25/4) pelo líder do PSDB na Câmara, deputado Carlos Sampaio (SP), que pede a suspensão imediata da tramitação da proposta. O tucano argumenta que a PEC 33 fere a cláusula pétrea da separação dos Poderes.

    Entendeu?

    Terceiro: Ainda que de forma excepcional, é possível controle preventivo de constitucionalidade (leia-se: de projeto de lei), via Mandado de Segurança impetrado por parlamentar, no STF, nos casos de inobservância do DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO CONSTITUCIONAL (por exemplo, não observância do quórum de votação).

    Ou seja. Inexiste, no nosso ordenamento, a possibilidade de controle abstrato de constitucionalidade de meras proposições normativas.

    Entendeu, Irineu?