Condenação antiga pelo uso gera consequências prisionais
O título pode parecer apenas provocativo. Mas não é.
É verdade que desde a edição da lei 11343/06, o porte de entorpecentes para uso próprio foi desprisionalizado, ou seja, não mais comporta pena de prisão.
O art. 28, da Lei 11.343/06 disciplina que a conduta pode ser punida com as seguintes penas: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Ou seja, não mais prevê a pena de detenção, como anteriormente.
O problema está além. O usuário não pode ser preso pela posse pelo uso –mas o que vai acontecer se tiver um processo pelo tráfico depois?
O art. 33 da mesma lei, que tipifica o tráfico de entorpecentes, previu uma significativa causa de redução de pena (de um montante que vai até 2/3) para quem: seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
Integrar organização criminosa é algo que raramente se prova em um processo penal (excluídas as honrosas exceções, que representam processos contra grande traficantes); a “dedicação às atividades criminosas” é ainda mais incomensurável (porque se houver condenações, teríamos reincidência e maus antecedentes e se não tiver, nada que possa ser atribuído sem ofender a presunção de inocência).
No frigir dos ovos, o que em regra define a aplicação do redutor é a primariedade, ou seja, ausência de reincidência.
Pessoalmente, divirjo do entendimento tradicional, por concluir que ao imputar um valor excessivo à reincidência, a lei infringiu um princípio básico do direito penal -que é valorar mais o autor do que o fato- e por isso deve ser tido por inconstitucional (quem quiser conhecer os argumentos, continue aqui).
Mas, à parte deste pensamento ainda minoritário, a reincidência tem servido como forma de distinguir entre aquele que pode receber o redutor (e assim ter sua pena fixada em até 1 ano e 8 meses) e aquele que não recebe o redutor e tem pena de cinco anos de reclusão.
Recentemente, veio-me às mãos um acórdão que, na linha do entendimento aparentemente majoritário (não há súmulas sobre o assunto ainda), negou o redutor ao réu pelo fato de ser reincidente. Reincidente em que delito? Porte para uso pessoal –pela lei anterior.
Os desembargadores não apenas deixaram de aplicar o redutor (de até 2/3 de pena) como ainda aplicaram a reincidência como circunstância agravante. Ao final, saiu-se o réu condenado a cinco anos e dez meses de reclusão.
Resumo da ópera: o crime de porte para uso próprio não é mais prisionalizado.
Ninguém pode ser recolhido à prisão apenas por estar com droga para uso pessoal.
Mas, seguindo a linha do acórdão, quem tem contra si uma condenação anterior ainda pode perder, em eventual futuro processo por tráfico de entorpecentes, o direito ao redutor.
Se um primário poderia ter a pena de 1 ano e 8 meses de reclusão, o reincidente (por este simples fato), mesmo sendo reincidente em porte de entorpecentes (pela lei anterior), acabou suportando pena de 5 anos e 10 meses de reclusão.
O que provocou estes 4 anos e 2 meses de diferença? Apenas a condenação anterior por porte de entorpecente.
Quem pode dizer, então, que não há mais nenhuma pena de prisão para o usuário?
Dos cinco anos e dez meses aplicados ao réu, nada menos do que 70% são provenientes de uma condenação anterior por porte de entorpecentes para uso pessoal!
Isso sem contar que certas condutas são limítrofes entre uma e outra tipificação –como o caso que levou à condenação, de posse de apenas quatorze porções do entorpecente.
Será essa questão mais um daqueles paradoxos penais de que menciona o colega Rosivaldo Toscano em suas deliciosas crônicas?
Ou um condimento para que os juízes avaliem a desproporção da consideração da reincidência na nova Lei de Tóxicos?
Tenho um caso desses em nosso escritório. Apelamos da decisão e o TJ manteve a pena de 5 anos e 10 meses. Impetramos em 14 de agosto de 2009 um hc no STJ -HC 144834- buscando rever essa desproporção, sendo até hoje, quase 2 anos, ainda não foi julgado. Outro absurdo. Quando julgarem, sei lá quando, se me permitir lhe mando uma cópia do Acórdão.
Marcelo, o problema maior que vejo quanto a Lei de Drogas, é que não existe a possibilidade de penalizar o uso de entorpecentes, mas o que vejo corriqueiramente, especificamente nos interiores desse Brasil, é a criminalização do uso de drogas da seguinte maneira: preso com duas pedras de Crack = traficante. Cheguei a pegar um absurdo caso de um cidadão "noiado" que foi preso por portar 0.8gr de Crack, e não havia contra si nenhuma denúncia de que alguém havia comprado a droga. O que os agentes estatais tem feito, e o Estado (os tres poderes) tem aceito é essa praticado corriqueira praticado por policiais para dar uma falsa resposta à sociedade. O problema maior que vejo é que mais uma vez o Estado brasileiro não enfrenta seus maiores problemas de frente, sempre arrumando um jeitinho para tudo. Certa feita fui numa cidade em que 70% da cadeia era composta por traficantes, dentre eles presos por portarem a singela quantoa de 01 pedra. A questão do uso tem e há de ser tratada pela política de saude pública, e não pela política criminal. Tratar o usuário como traficante não atinge os objetivos idealizados, pois em nada atinge o grande traficante.
JACK COLE – Tenente aposentado da divisão de narcóticos da polícia americana. Tem 71 anos. É casado e tem três filhos.
Trabalhou por 14 anos como agente infiltrado para combater o tráfico de drogas em Nova Jersey.
.
Uma das bandeiras de Richard Nixon para se eleger (à Presidência dos Estados Unidos, em 1968) foi a guerra total ao tráfico.
.
"Quando eu entrei para a polícia, em 1964, meu departamento tinha 1.700 policiais e só sete deles trabalhavam na divisão de narcóticos. Em 1970, eram 76. Eles multiplicaram por 11 o número de policiais nas divisões de narcóticos.
.
Só que não havia tanto tráfico assim. Naquela época, só 2% dos americanos usavam drogas. Hoje, são 16%.
Era difícil mesmo achar traficantes, principalmente em cidades como Nova Jersey. Transformaram um terço dos policiais em infiltrados, para prender pequenos traficantes de bairros menores e justificar a verba. ( na maioria usuários que vendiam pra sustentar o vício, sequer usavam armas )
.
Então começamos a prender, prender e prender. Policiais mentiam sobre a quantidade de droga apreendida, porque quanto mais você apreendia maior o salário.
.
A chefia de polícia chamava a imprensa, mostrava os presos e dizia: “Seu bairro está cheio de traficantes”. Assim conseguiam verba.
.
O pior é que hoje vejo que nosso trabalho na década de 70 acabou provocando mais tráfico e bandidagem."
Dr Marcelo, vc poderia postar aqui nos comentários o número desse acórdão? Ele é do TJSP? Estamos fazendo um trabalho sobre a inconstitucionalidade da reincidência e gostaria de ter em mãos esse acórdão.
Att
Daniel.
Daniel: Acórdão 990.10.072.886-5, TJ-SP
sou policial em SP e a ordem do SSP é operação na Cracolândia pra prender todo os "nóias", esses números apresentados nas estatísticas são todas falseadas com essas operações ou em nossa gíria, com essas "lousas", pois muitos são afastados se não apresentarem essas flagrantes com "uma pedra e um fedido"… política do faz de conta em SP. A Cracolândia é um problema de saúde pública, onde quem ali frequenta, deve ser interditado e internado em locais para tratamento, contudo lhes pergunto, há quantas clínicas públicas para esse tipo de tratamento? isso não dá voto, logo dificilmente algum governo irá resolver definitivamente o problema…