….Vistos etc (memórias do crime)….

 

Um pouco de crime para matar a saudade

 

 

 

 

Traduzir mais de duas décadas de judicatura
criminal em um post é impossível.

 

A maioria das decisões já se perdeu na poeira
do tempo.

 

Nunca as achei individualmente relevantes
para inserir na seção “Fazendo Justiça” aqui do Sem Juízo –como tenho feito com
peças que merecem registro histórico, por seu potencial de qualidade ou
inovação.

 

Mas até porque ficarei temporariamente
afastado da jurisdição criminal, resolvi disponibilizar excertos de algumas decisões.

 

Não é um apanhado exaustivo, nem um
repertório com funções instrumentais. Estão subtraídos nome de partes e, quando
não indispensável para expor a questão suscitada, também relatórios ou
dispositivos, para não tornar a leitura alongada. Números do processo permitem,
a quem se dispuser, a busca pelas decisões sobre as quais não paire sigilo.

 

Vai aí uma pequena mostra da visão com que
tenho, ao longo desses anos, encarado o Direito penal: um instrumento invasivo,
violento e pouco reparador, que somente se legitima no Estado Democrático de
Direito, com a paradoxal função de construir limites ao poder punitivo.

 

Na maioria dos casos, os feitos correram pela
15ª Vara Criminal, da Capital (SP)

 

 

 

Insignificância no furto: rejeição da denúncia

Substitutiva para o tráfico antes da decisão
do STF


Aplicação
do redutor no tráfico para réu reincidente


Crime impossível no furto: a vigilância desde
o início


Crime impossível no roubo: a falta de valores

Fraude contra seguradora como crime
antecedente da receptação?


Falsidade
de atestado médico: excesso de denúncia


Porte de arma desmuniciada: rejeição de
denúncia


Furto de talonário: rejeição da denúncia

Rejeição tardia: receptação de coisa sem
valor econômico


Primeira Lei Seca:
bafômetro, rejeição da denúncia


Comunicação
a consulado na prisão de estrangeiro


Art.
28, CPP: denúncia por abuso de autoridade ao invés de tortura


Contradição
entre testemunhas de acusação, defesa e réu: dúvida razoável


Pedido mentiroso de doação não caracteriza
vantagem indevida


Dúvida
fundada quanto ao estado de necessidade em roubo: absolvição


Roubo
impróprio e insignificância


Veículo
adulterado não é produto de crime para os fins do art. 180


Internação com prazo máximo definido na pena em
concreto

 

 

 

 

 

Insignificância no furto:
rejeição da denúncia

 

VISTOS.

 

Trata-se de denúncia formulada pelo
representante do Ministério Público contra DB,
imputando-lhe a prática do delito capitulado no art. 155, caput , c.c. artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal, porque
teria, em 30/11/12, por volta das 08h50, no supermercado Walmart Brasil Ltda,
situado na Rua X, nesta Capital, tentado subtrair, para si, seis loções
hidratantes da marca Johnson’s e quatro desodorantes da marca Rexona.

 

É o caso de rejeição liminar da denúncia, no
entanto.

 

Observe-se que tratou a denúncia, de imputar
o delito praticado pelo denunciado, que traria 
um prejuízo potencial de R$ 108,00 à empresa-vítima.

 

O desfalque patrimonial pretendido é
irrisório em termos absolutos, de modo a não significar, materialmente, uma
lesão ao patrimônio.

 

Trata-se aqui da
inafastável aplicação do princípio da insignificância, segundo o qual a ação
não é materialmente típica, ainda que formalmente corresponda à descrição
legal, por falta de potencial ofensivo a atingir, de maneira minimamente
significante, o bem jurídico protegido pela norma penal.

 

Assim, o juízo de
tipicidade, para que tenha efetiva significância, e não atinja fatos que devam
ser estranhos ao Direito penal, por sua aceitação pela sociedade ou dano social
irrelevante, deve entender o tipo em sua concepção material, como algo dotado
de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho
eminentemente diretivo
(Carlos Vico Mañas, “O princípio da insignificância
como excludente da tipicidade no Direito penal”, Ed. Saraiva, SP, 1994, p. 53).

 

No caso em tela, a
despeito de corresponder formalmente a um delito patrimonial, a ação do
denunciado não atingiu, de forma relevante, a integridade do patrimônio da
vítima. Como excludente de tipicidade que é, o princípio da insignificância
opera a descriminalização de condutas cujo potencial ofensivo não atinja o bem
jurídico, objeto último da tutela pena.

 

Ademais, nem a
existência atual de crimes de menor potencial ofensivo — e de outros como o
furto que admitem formas de exclusão do processo — atinge o status
jurídico que já adquiriu na ciência penal moderna o princípio da
insignificância. A especificação legal descreve os tipos — de forma abstrata —
que sejam de menor potencial ofensivo, não excluindo a possibilidade de que
condutas concretas correspondentes a esses tipos — ou a outros, como no caso em
comento — não tragam qualquer lesão apreciável ao bem jurídico em proteção.

 

Ao contrário, ao
prever a criação de tipos de menor potencial ofensivo a Constituição da
República incorpora o princípio da ofensividade, rejeitando o âmbito do Direito
penal a condutas que não tenham nem sequer um mínimo de ofensividade. A
atividade penal é de tal monta grave, causando em última instância a privação
da liberdade, que não pode ser utilizada sem que exista um bem jurídico sendo
lesionado.

 

O entendimento de que
o princípio não foi recepcionado no ordenamento pátrio porque não
explicitado, com todo o respeito por seus defensores, não merece prestígio.

 

Os princípios, por
seu alto grau de abstração, não necessitam de explicitação legal. Os
princípios, como ensina Fábio Konder Comparato, estão no ápice da pirâmide
normativa
, são eles que não podem ser infringidos pelas leis, e não o
reverso.

 

Imaginar ser possível
suprimir a liberdade de qualquer indivíduo por algo que não lesione nem exponha
a perigo o bem jurídico, é utilizar o direito penal para algo a que não foi
concebido.

 

A dignidade humana,
que é desprezada nas hipóteses como a dos presentes autos, é mais do que
princípio constitucional — é fundamento da República (art. 1º, inciso III, da
Carta Magna). Não é possível, como decorrência da prevalência da dignidade humana,
que a liberdade do indivíduo possa ser sacrificada por insignificâncias como
essas. Definir crime nestas circunstâncias, furto de valor irrisório, lesões
ínfimas ou quase imperceptíveis aos bens jurídicos tutelados, no caso o
patrimônio da vítima, é exercitar a atuação repressiva sem lastro na
preservação da dignidade humana, fim último do próprio direito penal.

 

Só o mais aferrado
positivismo jurídico é que nos permitiria chegar a essa conclusão, como se fora
o ordenamento a peça de uma engrenagem mecânica, não derivado das necessidades
do homem e em seu sentido interpretado.

 

Tem-se, pois, que a
conduta em tese imputada ao denunciado não é típica, pela excludente do
princípio da insignificância.

 

Nem chega a ser
novidade a aplicação do princípio da insignificância no direito penal, tanto
nos tribunais estaduais, como nos superiores (No E. STJ cita-se, por exemplo,
os HCs 23904, 41638, 34895, 41115, em que a ação penal foi trancada pelo mesmo
motivo).

 

E, ainda, no Supremo
Tribunal Federal:

 

[PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS
VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA
CRIMINAL – CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO
MATERIAL – DELITO DE FURTO – CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM
APENAS 19 ANOS DE IDADE – “RES FURTIVA” NO VALOR DE R$ 25,00
(EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) – DOUTRINA –
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF – PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO
DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA
TIPICIDADE PENAL. – O princípio da insignificância – que deve ser analisado em
conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado
em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade
penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal
postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da
tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima
ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação,
(c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a
inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de
formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema
penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a
intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO
DO DIREITO PENAL: “DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR”. – O sistema
jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da
liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando
estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de
outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em
que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial,
impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de
condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão
significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo,
prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à
integridade da própria ordem social”
(HC 84412 / SP, Relator(a): 
Min. CELSO DE MELLO, Julgamento:  19/10/2004, Segunda Turma).

 

Acompanhado pelo Egrégio Tribunal de Justiça
de São Paulo:

 

Vê-se,
destarte, que, hodiernamente, entende-se deva haver uma diminuição do campo
próprio de incidência do Direito Penal. A cada momento, o Juiz, como o último
operador do direito a se manifestar em certa causa criminal, há de fazer uma
reflexão exaustiva acerca da necessidade da imposição de determinada sanção. Já
é chegada a hora de dar vida à exata proporcionalidade entre a pena criminal e
a significância do bem jurídico vilipendiado. E, nos casos em que a afetação
deste for de grandeza diminuta, sem consequências maiores para a ordem social
estabelecida, deve-se entender ausente a razão para a imposição de reprimenda
penal, diante da pequenez da significação social do fato cometido. Essa
intelecção não destoa do direito posto. Pelo contrário, faz vivificar os
princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade. Logo, não é
um juízo ‘contra legem’, como pode parecer, lamentavelmente, para não poucos
menos avisados, mas segundo estrito indicativo da Lei Maior do País (cf. artigo
1º, caput, e inciso III, artigo, 3º, incisos III e IV, e, ainda, artigo 5º,
§2º, da Constituição Federal). Com essas considerações, nega-se provimento ao
recurso em sentido estrito
” (Recurso em sentido estrito nº 990.10.210834-1,
Relator: Des. SYDNEI DE OLIVEIRA JR., 7ª Câmara de Direito Criminal, j.
21/10/10).

 

Tratando-se de ato coberto pela
insignificância, não subsiste justa causa para a instauração da ação penal.

                       

Por este fundamento, rejeito a denúncia
oferecida, nos termos do art. 395, inciso III, do Código de Processo Penal, na
redação que lhe deu a Lei 11.719/08.

                       

(P.
011.2244-96.2012.8.26.0050)

 

 

 

Substitutiva para o tráfico antes da decisão
do STF

 

[…]

 

Pena resultante em 1 ano e oito meses de
reclusão. Sanção pecuniária, na proporção, em 166 diárias, no menor patamar.

 

Não se justifica, por outro lado, que uma
pena de um ano e oito meses seja indistintamente cumprida em regime fechado, ou
seja, em todas as circunstâncias e em relação a todos os condenados,
obrigatoriamente, violando a indeclinável individualização da pena,
pressuposto constitucional de sua aplicação.

 

Não há dúvidas que o espírito da nova lei é o
de distinguir entre os diversos tipos de traficantes, proporcionando um
tratamento diferenciado entre o grande e o pequeno traficante, superando a
identidade das leis anteriores, fundada no risco que o traficante, qualquer que
fosse, causasse à sociedade. Claramente, esta nova lei preocupa-se mais ainda
(com penas bem superiores) com a conduta do grande traficante, impulsionar de
uma criminalidade urbana organizada e outros tantos delitos consequentes; mas
não se despreocupar, todavia, com o risco que a excessiva prisionalização causa
ao pequeno traficante.

 

Respeitar a lei, no caso, significa respeitar
essa distinção de tratamento que é, teleologicamente, o coração do novo diploma
legal: para os grandes traficantes, que envolvam grandes quantidades de
entorpecente, que façam parte de organizações criminosas, que estejam em postos
de comando, portanto, de decisão, sobre distribuição comercial de
entorpecentes, a lei aumentou dois terços em sua pena mínima em relação à
anterior; para o pequeno traficante, aquele que envolve distribuição de
pequenas quantias de entorpecente, não raro para sustentar seu próprio vício,
que esteja em uma situação de fragilidade na cadeia de distribuição (e, em
regra, é facilmente substituído por outro tão logo venha a ser preso), sendo
ainda primário e sem vinculações outras com o mundo do crime, a lei reduziu a
pena a quase a metade dos patamares então vigentes.

           

Não faz sentido, portanto, tratar os novos
beneficiados, os pequenos traficantes a quem a lei reduziu drasticamente as
sanções, inclusive para evitar que superlotem as prisões transformando-se em
soldados para líderes de facções criminosas, como se fossem grandes criminosos,
sem direito aos benefícios legais que estão ao alcance de todos os outros réus.
Isto significaria aplicar a lei em sua letra ao mesmo tempo em que negar vigência
a seu espírito.

           

Para uma interpretação conforme a
Constituição, que prestigie fundamentalmente, o princípio da
proporcionalidade
, e respeite teleologicamente a política criminal dirigida
pelo próprio legislador aos crimes de tráfico de entorpecentes, é de se afastar
a vedação automática da aplicação substitutiva da pena restritiva de direitos
para os agentes primários e mercadores de pequenas quantidades de entorpecente
(sem vinculação com organizações criminosas e em posição de subordinação na escala
de distribuição), como é a hipótese presente. Observando, ademais, tratar-se de
pena privativa de liberdade inferior a quatro anos de reclusão e de delito
cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa, cumpridora em tese, pois, dos
requisitos gerais de substituição previstos no art. 44, do Código Penal,
indicando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade
do réu ser a substituição suficiente para a reprovação penal.

           

 

Substituo, pois, a pena privativa de
liberdade pela restritiva de direitos consistente na prestação de serviços à
comunidade ou a entidades estatais, pelo mesmo prazo da pena originalmente
fixada, e outra sanção pecuniária na mesma proporção.

           

(P. 050.09.077159-1)

 

 

 

Aplicação
do redutor no tráfico para réu reincidente

 

 

[…]

 

Não se trata de volume excessivo de
entorpecente, nada indicando esteja o acusado em posição superior na cadeia de
venda de drogas, não havendo motivos, portanto, para fixar a pena acima do
mínimo legal, observando, ademais, que os dados referentes à vida pregressa,
por fazerem parte da fixação da pena como causa de diminuição (e não mais como
circunstância atenuante), não mais integram a segunda-fase da fixação da pena,
no delito de tráfico de entorpecente.

 

Não há prova de que o acusado se dedique às atividades criminosas –tem
contra si uma condenação por roubo tentado (fls. 44).

 

Tampouco há elementos nos autos que
comprovem, ou sequer indiciem, que o acusado integre organização criminosa.

 

Assim, apenas a circunstância de ser o réu reincidente
seria obstáculo à aplicação da causa de diminuição prevista no art. 33, §4º. A
falta de aplicação desta causa de diminuição, todavia, como se demonstrará,
atinge o princípio da proporcionalidade, e,  in casu, projeta inconstitucionalidade.

 

Quanto a incorporação do princípio da
proporcionalidade no direito brasileiro, preleciona Paulo Bonavides: “No
Brasil, a proporcionalidade pode não existir enquanto norma geral de direito
escrito, mas existe como norma esparsa no texto constitucional. A noção mesmo
se infere de outros princípios que lhe são afins, entre os quais se avulta, em
primeiro lugar, o princípio da igualdade, sobretudo em se atentando para a
passagem da igualdade-identidade à igualdade-proporcionalidade, tão
característica da derradeira fase do Estado de direito (…) O princípio da
proporcionalidade é, por conseguinte, direito positivo em nosso ordenamento
constitucional (Curso de Direito Constitucional – Ed. Malheiros, p. 395/6).

 

A proporcionalidade estaria, incluída,
portanto, na vedação de excessos,
ínsita ao art. 37 da Constituição Federal e flui do espírito que anima em toda
a sua extensão e profundidade o §2º, do art. 5º, o qual abrange a parte
não-escrita ou não expressa dos direitos e garantias da Constituição. Conclui,
assim, Bonavides: admitir a interpretação
de que o legislador pode a seu livre alvedrio legislar sem limites, seria por
abaixo todo o edifício jurídico e ignorar, por inteiro, a eficácia e a
majestade dos princípios constitucionais. A Constituição estaria despedaçada
pelo arbítrio do legislador
(op. cit., p. 396).

 

Acrescenta Alberto Silva Franco, quanto à
aplicabilidade do princípio da proporcionalidade no âmbito penal:

 

“Num modelo de Estado (Social) e Democrático
de Direito, sustentado por um princípio antropocêntrico, não teria sentido, nem
cabimento, a cominação ou aplicação de pena flagrantemente desproporcionada à
gravidade do fato. Pena desse teor representa ofensa à condição humana,
atingindo-a de modo contundente, na sua dignidade de pessoa. O princípio da
proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação
existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e
o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa
relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se em consequência, uma
inaceitável desproporção” (Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial,
Ed. RT, 6ª ed., p. 39).

 

No caso em questão, a proporcionalidade está
vulnerada.

 

Senão, vejamos.                     

 

A lei, ao fixar como pena mínima para o
delito cinco anos de reclusão, prevendo, ainda, causa de diminuição de 1/6 a
2/3 para primários, acabou por valorizar, em demasia, o critério da
reincidência. Desde, portanto, que presentes os outros requisitos para a
aplicação da causa de diminuição (ou seja, não havendo elementos probatórios de
que o réu se dedique ao crime, praticando-o com contumácia, e sem provas de que
integre organização criminosa), como é o caso dos autos, é de se considerar que
o peso atribuído à reincidência é superdimensionado em relação ao apenamento do
agente primário, ofendendo, assim, o princípio da proporcionalidade, implícito
no ordenamento constitucional do Estado Democrático de Direito, que tem como
fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF).

 

A aplicação de pena ao réu primário,
presentes os demais requisitos legais, ensejaria redução no patamar de 2/3,
implicando sanção de 1 ano e 8 meses de reclusão. Ao réu reincidente, o mesmo fato representaria, pela não
aplicação da causa de diminuição, pena de 5 anos. O peso da reincidência é
claramente desproporcional, pois o valor do fato praticado é de aproximadamente
1/3 da pena, sendo dois terços dela aplicada em função da reincidência (ou
seja, por fato anterior).

 

Esta desproporção é inconstitucional, ainda,
porque aprecia para a dosagem da pena valor maior aos fatos pretéritos do que à
própria acusação em questão. Aceitar-se como válida a ampliação ao infinito do peso da reincidência, estaríamos
admitindo a aplicação do direito penal
do autor
e não do fato –punição fundada preponderamente em quem o agente é
(em face de seus antecedentes) e não em razão do que o agente faz.

 

Conforme Muñoz Conde, “A distinção entre
Direito Penal do ato e Direito Penal do autor não é só uma questão sistemática,
mas, também, e fundamentalmente, política e ideológica. Só o Direito Penal
baseado no ato cometido pode ser controlado e limitado democraticamente (…) o
Direito Penal do autor não permite limitar o poder punitivo do Estado e
favorece sua concepção totalitária” (Teoria Geral do Delito – SAFe, p. 09/10).

 

O direito penal do autor não se coaduna com o
Estado Democrático de Direito e por isso suas expressões devem ser descartadas,
inclusive pelo juiz.

 

No mesmo sentido: “O direito penal de autor não encontra guarida
em nenhum sistema penal fincado no Estado de Direito, comprometido, que é, com
a dignidade da pessoa humana e com a garantia de seus direitos fundamentais, e,
sobretudo, em nosso ordenamento, onde a presunção vigente é, ao reverso do que
se propugna com a referência a tal condenação, a de inocência.” (Min.
Cezar Peluso em Voto Vista no RHC 81.057-8-SP).

 

Tenho que tal dimensão de acréscimo da pena
(a que corresponde à negativa de aplicação da causa de diminuição) ofende a
proporcionalidade, na medida em que possibilita aplicação de pena a maior pelos
fatos pretéritos do que por aquele a que está sendo imputado ao agente.

 

Nem se diga da impropriedade de afastar-se
regra legal (proibição da redução ao reincidente) em face de um princípio não
explícito.

 

Como afirma Fábio Konder Comparato, apesar de seu alto grau de abstração, os
princípios são normas jurídicas e não simples recomendações programáticas, ou
exortações políticas. Mais ainda: trata-se de normas jurídicas de eficácia
plena e imediata, a dispensar a intermediação de regras concretizadoras.
Provocado ou não pelas partes, o juiz está sempre autorizado a aplicar
diretamente um princípio ao caso trazido ao eu julgamento, por força do
disposto no §1º do art. 5º, da Constituição
(“O papel do juiz na efetivação
dos direitos humanos”, in Direitos
Humanos – Visões Contemporâneas, edição de Associação Juízes para a Democracia,
2001).

 

No mesmo sentido, o ensinamento de Paulo
Bonavides:

 

“A lesão ao princípio é indubitavelmente a
mais grave das inconstitucionalidades porque sem princípio não há ordem
constitucional e sem ordem constitucional não há garantia para as liberdades
cujo exercício somente se faz possível fora do reino do arbítrio e dos poderes
absolutos.” (Op. cit., p. 396).

 

Por este motivo, e para possibilitar uma
interpretação do dispositivo penal conforme as regras constitucionais, aplico,
ainda que caracterizada a reincidência, a causa de diminuição do art. 33, §4º,
da nova Lei de Tóxicos, em 1/2 (menor do que a redução máxima de 2/3, em face
da reincidência) à pena originalmente fixada de 5 anos.

 

Pena final em 2 anos e 6 meses de reclusão,
que deverá ser iniciada em regime fechado, não apenas pela lesividade
intrínseca da conduta do acusado, com quantidade não desprezível de
entorpecente para efetiva comercialização, bem como pela circunstância de já
ter sido o réu condenado anteriormente, sem que a sanção em regime mais brando
pudesse ter obtido o êxito de exercer, com suficiência, a reprovação penal.

 

Multa, na proporção, em 250 diárias, na menor
proporção.

(P. 050.09.067092-2)

 

 

 

Crime impossível no furto: a vigilância desde
o início

 

 

[…]

 

A ação penal é improcedente.

 

A acusada, ouvida em juízo, confirma a
intenção de furtar, acompanhada da adolescente. Disse ter colocado os secadores
no carrinho e, porque imaginou estar sendo seguida, os colocou na sacola dentro
de um provador, tentando sair do supermercado sem pagá-los (fls. 90).

 

O funcionário Rodrigo confirmou a apreensão
dos secadores na posse da acusada, no interior de uma sacola (fls. 95).

 

Embora admitida a intenção de subtrair os
secadores, a conduta da acusada é atípica.

 

Operou-se a hipótese do crime impossível.

 

O relato do fiscal de prevenção de perdas
deixa claro que a acusada estava sendo observada desde antes do início da
execução:

 

(N)O
dia dos fatos estava no corredor dos produtos têxteis e o colega Diego no
corredor dos produtos elétricos. Diego percebeu duas moças que estavam com um
carrinho e que a sacola com o lacre que receberam na entrada do supermercado
estava aberta. Por isso acompanhou as duas e percebeu quando elas colocaram no
carrinho dois secadores. Avisou pelo rádio ao depoente para que continuasse o
acompanhamento. O depoente viu que as duas se dirigiram ao provador. Dentro do
provador, entrou a acusada maior com duas peças de roupa e a sacola com o
lacre. Do lado de fora ficou a adolescente. O depoente acompanhou por todo o
tempo e percebeu que a adolescente passou para a maior os dois secadores. A
acusada saiu do provador com a sacola de papelão na mão. O depoente entrou no
provador e conferiu que os secadores não estavam lá. Continuou a acompanhar as
duas e aguardou que elas passassem pelo caixa para fazer a abordagem. Os
secadores estavam na sacola e foram apreendidos
” (fls. 95).

 

Tendo sido as agentes acompanhadas durante
todo o percurso, por funcionários do estabelecimento, tornou-se inviável a
consumação do delito.

 

O meio eleito pelas agentes, a
clandestinidade da captura dos objetos, demonstrou-se inidôneo para a prática
do furto, uma vez que, por suspeitas, seus passos foram observados desde que
ingressaram. E a consumação se torna impossível, e por isso a conduta é
atípica, a teor do art. 17, do Código Penal, quando o meio é inidôneo. No caso,
a vigilância que se realiza no estabelecimento de modo a acompanhar suspeitos, antes
do início de execução
, torna a conduta atípica. O que ocorre, em
verdade, é apenas o diferimento da ação policial, ou no caso, daquela
empreendida pelos seguranças do supermercado.

 

A colocação do bem jurídico em perigo é o que
caracteriza a tentativa para o nosso Direito penal –de cunho objetivo. Se os
meios empregados são inidôneos, ou seja, absolutamente ineficazes para alcançar
a consumação, exclui-se a tipicidade do crime tentado. Dá-se assim a
caracterização do crime impossível: a vigilância ab initio torna absolutamente ineficaz o meio utilizado para tentar
subtrair os bens (nesse sentido, RT 731/614, julgando hipótese de tentativa de
furto em loja de roupas, na qual o acusado fora observado todo o tempo pelos
agentes de segurança do estabelecimento).

 

E a idoneidade da conduta deve ser apreciada
em concreto (ou ex post), ou seja, em
face das circunstâncias existente no momento do início de sua execução (no
caso, considerando que ao entrarem já despertaram suspeitas), uma vez que o
juízo da tipicidade é atributo de condutas concretas.

 

É que, como dizia Ruperto Nuñez Barbero, a idoneidade é um atributo da conduta concreta
(El delito imposible, Salamanca
[Universidade], 1973), p. 85). Deve ser o juízo de idoneidade, assim, de
caráter objetivo e realizado ex post,
como aponta Miguel Reale Júnior, reportando-se ao jurista italiano Neppi Modena
(Parte Geral do Código Penal. Nova
Interpretação. Ed. RT, 1988, p. 82).

 

Atípica a conduta, é caso de improcedência da
ação penal.

(P. 050.06.058090-9)

 

 

 

Crime impossível no roubo: a falta de valores

 

 

[…]

 

A ação penal é improcedente.

 

Não há segurança quanto à autoria do delito.

 

A acusada nega os fatos, afirmando que
trabalhava no momento do crime (fls. 40).

 

Não foi presa na posse da res furtiva –que foi encontrada metros
do local da subtração ou de arma de fogo.

 

Não houve testemunha presencial do fato.

 

Presa posteriormente, por outro delito, a
vítima a teria reconhecido na delegacia de polícia.

 

Segundo o relato da vítima, quando de sua
oitiva policial, teria sabido da prisão da acusada e procurado espontaneamente a delegacia de polícia
(fls. 05); o policial Marcelo, ao revés, relatou que a acusada fora presa em
flagrante e foram chamadas à delegacia outras vítimas da terceira idade que
haviam sofrido roubos à mão armada pela região (fls. 58).

 

Toda a prova se estriba no reconhecimento
pessoal da acusada. É de se observar, entretanto, que o reconhecimento foi
feito meses após os fatos; que os dados fornecidos pela vítima na lavratura do
Boletim de Ocorrência guardam contradições com dados pessoais da acusada (como
a idade, cor da pele e tipo de cabelo, fls. 03 e 09); e que a própria vítima
admitiu, no reconhecimento em juízo, que na data dos fatos a acusada estava mais magra (fls. 52).

 

Não se pode, nestas condições, afastar a
hipótese de engano por parte da vítima, mais ainda, de sugestionamento, uma vez
chamada à delegacia para reconhecer a pessoa
presa por prática de fatos similares
. E como a prova se restringe ao
reconhecimento pessoal, a precisão deste se faria imprescindível para o suporte
da decisão condenatória.

 

Ocorre, entretanto, que, a despeito da
fragilidade probatória quanto à autoria, estamos diante de uma conduta atípica.

 

A própria vítima informou ao juízo que não
tinha nada de valor em sua bolsa –fato, aliás, constante da própria denúncia. A
bolsa, em si mesmo, não era o intuito da subtração, eis que recuperada intacta,
pela vítima, metros adiante. Embora a agente tenha apontado uma arma para a
vítima e obtido dela a bolsa (que se desfez momentos depois), a conduta de
roubo é atípica porque a vítima não trazia valores consigo e, portanto, o objeto da subtração era impróprio,
caracterizando-se, destarte, o crime impossível.

 

Neste sentido:

 

Se o
crime de roubo, de acordo com o verbo que serve de núcleo ao tipo delituoso,
tem por objeto precípuo a subtração de coisa alheia, jamais os atos executados
pelo agente poderão encaminhar-se para o aperfeiçoamento da figura típica
desenhada no art. 157 da lei repressiva, já que não havendo dinheiro com a
vítima, ou qualquer outro valor, coisa alheia não haverá, e inexistindo o
alheio, por certo que impossível se torna a subtração
(RT 531/357).”

 

Portanto, seja pela fragilidade do
instrumental probatório, seja pela atipicidade da tentativa inidônea, a
absolvição é medida que se impõe.

(P. 050.05.088576-6)

 

 

 

Fraude contra seguradora como crime
antecedente da receptação?

 

 

[…]

 

A ação penal é improcedente.

 

De fato, não há elementos para apurar se o
acusado sabia ou não que o proprietário do veículo praticava fraude contra
seguros. O simples fato por ele admitido, que concordara em conduzir o veículo
até o Mato Grosso do Sul (fls. 328), não prova, por si só, que o acusado tinha
ciência do estelionato ou dele tomasse parte, ajudando a ocultar o veículo.

 

De toda a forma, a acusação contra o réu é de
receptação, não de estelionato.

 

Em relação à suposta receptação, o fato
atribuído ao acusado é atípico.

 

Isto porque o veículo que teria recebido ou
ocultado não era produto de crime.

 

O veículo pertencia a seu legítimo
proprietário, co-réu P. Não consta que ele tenha sido efetivamente roubado –até
pelo teor da denúncia, imputando a falsa notícia de roubo como ato de execução
do estelionato. Ora, se o veículo não fora produto de crime, recebê-lo ou
ocultá-lo não corresponde à receptação.

 

O tal crime
antecedente
, no caso, é a fraude à seguradora. O veículo, no máximo,
poderia ser caracterizado como o instrumento
do crime, nunca o produto. Produto do crime de estelionato seria a indenização
do seguro que, conforme o relato da advogada C., nem chegou a ser paga (fls.
373). Não foi, ela explicou, porque o pedido de indenização com base no roubo
chegou à empresa seguradora depois da apreensão do veículo em outro Estado
–razão pela qual, alega a Defesa, que, existindo crime (fraude à seguradora),
este não teria sido anterior ao
recebimento do veículo por I e G,  mas
posterior a ele.

 

Ao acusado não foi imputada a participação no
estelionato; tampouco há nos autos elementos para provocar aditamento. Em
relação aos fatos a ele atribuídos, não há infração típica a ser apurada.

 

De rigor, portanto, a absolvição.

(P. 050.99.087877-9)

 

 

 

 

Falsidade
de atestado médico: excesso de denúncia

 

 

Trata-se de denúncia formulada pelo
representante do Ministério Público contra AC, imputando-lhe a prática do
delito capitulado no art. 304, c.c. art. 297, ambos do Código Penal, porque
teria ele, em 29/03/05, feito uso de atestado médico falso, supostamente
expedido pelo HGVP, para justificar dia não trabalhado na empresa HPS.

 

Uma vez que a hipótese dos autos se
identificava com a conduta descrita no art. 301, §1º, c.c. art. 304, ambos do
Código Penal, que, em tese, admite a transação penal, foram os autos ao
Ministério Público para eventual aditamento de denúncia.

 

Retornaram os autos do Ministério Público sem
emenda, divergindo-se ademais da adequação do fato à hipótese indicada, pois não existe prova de que o falso tenha
sido praticado em detrimento de função pública, condição elementar do caput do
artigo 301, e sim no âmbito privado
.

 

Há evidente excesso de denúncia, que impede o
seu recebimento.

 

Não porque o fato, em si, não caracterize
infração penal, mas porque entre as infrações penais que admitem, em tese, o
oferecimento de transação penal (pena máxima inferior a dois anos de reclusão,
como a hipótese combinada dos artigos 301, §1º, e 304, ambos do Código Penal),
faz-se necessário, primeiro, o oferecimento de proposta de transação penal.

 

A questão é de direito, não de fato.

 

O uso de documento falso (art. 304, CP) não
tem pena própria, sendo a ele cominada a mesma pena atribuída ao delito de
falsificação, a que o uso se remete. Tratando-se de atestado médico, remete-se o delito do art. 304 às sanções do art.
301, §1º, CP.

 

Conquanto o caput do artigo faça menção à conduta praticada em razão de função pública, seu §1º não
faz nenhuma referência a esta condição, tratando-se, por óbvio, de tipos
distintos, embora englobados no mesmo artigo penal. O art. 301 tipifica a
“certidão ou atestado ideologicamente falso”; o parágrafo 1º, de outra parte,
pune a falsidade material de atestado ou certidão –seu uso se adequa, portanto,
à combinação dos arts. 301, §1º e 304, CP.

 

Nesse sentido:

 

A
jurisprudência já se pacificou no sentido e que aquele que usa o documento
escolar falsificado, objetivando matricular-se em escola superior, pratica o
crime do art. 304, com remissão ao §1º, do art. 301 do CP
(TJSP – rel. Cid
Vieira, RT 579/300).”

A
falsificação ou uso de certificado escolar falso não caracteriza o crime do
art. 304 do CP de 1940, mas o previsto no art. 301, §1º, do mesmo diploma
legal, sendo portanto imperiosa sua desclassificação
(TJSP – HC 44.403,
rel. Djalma Lofrano, RJTJSP 101/499)”, extraídos de Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva
Franco e outros, ed. RT.

 

Tratasse a questão simplesmente de avaliar a
presença ou não de requisitos subjetivos para a transação penal (não se
vislumbrando na hipótese qualquer impedimento, sem registro o denunciado de
condenações ou transações anteriores), seria ela apreciada junto ao Juizado
Especial Criminal.

 

Como a capitulação indicada pela promotoria,
todavia, que define a competência do Juízo e a aplicabilidade dos benefícios
previstos na Lei 9.099/95, é excessiva, inviabiliza, no entanto, o procedimento
preliminar indicado no referido diploma.

 

Por este motivo, a denúncia não pode ser
recebida, razão pela qual a rejeito, nos termos do art. 43, inciso III, por faltar condição exigida pela lei para o
exercício da ação penal
.

(P. 050.05.086947-7)

 

 

 

Porte de arma desmuniciada rejeição de
denúncia

 

 

[…]

 

Não há justa causa para o recebimento da
denúncia.

 

Os dois policiais que efetuaram a prisão em
flagrante apontam que a arma trazida pelo indiciado estava sem munições. Auto
de apreensão confirma que a arma estava desmuniciada (fls. 12). Não foram
apreendidos cartuchos em poder do indiciado.

 

Tratando-se de arma desmuniciada, não há
infração penal típica.

 

A infração que vulnera a paz pública, bem
jurídico em risco em comento, reside no fato de o agente poder a qualquer
momento fazer uso dessa arma, pondo em risco outros bens jurídicos.

 

Não havendo munição na arma, nem com o
agente, para pronta utilização, não há que se falar em risco para a paz
pública. É evidente que mesmo a arma desmuniciada pode servir para intimidar
vítima, em um roubo por exemplo. Mas a simulação do emprego da arma também pode
e nem por isso é punida isoladamente. A ratio
júris
da punição repousa na lesividade que o instrumento causa à segurança
da coletividade; por este motivo, arma ineficaz ou arma desmuniciada (sem
munição à disposição), não estão incluídas no tipo penal.

 

Sem porte de instrumento lesivo e controlado,
capaz de malferir a integridade física de outrem, não há vulneração de bem
jurídico, sem o quê a conduta se torna atípica, como também já entendeu a 1ª
Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Ordinário em Habeas Corpus
81.057-SP.

 

EMENTA: Arma de fogo: porte consigo de
arma de fogo, no entanto, desmuniciada e sem que o agente tivesse, nas
circunstâncias, a pronta disponibilidade de munição: inteligência do art. 10 da
L. 9437/97: atipicidade do fato: 1. Para a teoria moderna – que dá realce
primacial aos princípios da necessidade da incriminação e da lesividade do fato
criminoso – o cuidar-se de crime de mera conduta – no sentido de não se exigir
à sua configuração um resultado material exterior à ação – não implica admitir
sua existência independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico
tutelado pela incriminação da hipótese de fato. 2. É raciocínio que se funda em
axiomas da moderna teoria geral do Direito Penal; para o seu acolhimento,
convém frisar, não é necessário, de logo, acatar a tese mais radical que erige
a exigência da ofensividade a limitação de raiz constitucional ao legislador,
de forma a proscrever a legitimidade da criação por lei de crimes de perigo
abstrato ou presumido: basta, por ora, aceitá-los como princípios gerais
contemporâneos da interpretação da lei penal, que hão de prevalecer sempre que
a regra incriminadora os comporte. 3. Na figura criminal cogitada, os
princípios bastam, de logo, para elidir a incriminação do porte da arma de fogo
inidônea para a produção de disparos: aqui, falta à incriminação da conduta o
objeto material do tipo. 4. Não importa que a arma verdadeira, mas incapaz de
disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de intimidação
para a prática de outros crimes, particularmente, os comissíveis mediante
ameaça – pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros objetos –
da faca à pedra e ao caco de vidro -, cujo porte não constitui crime autônomo e
cuja utilização não se erigiu em causa especial de aumento de pena. 5. No porte
de arma de fogo desmuniciada, é preciso distinguir duas situações, à luz do
princípio de disponibilidade: (1) se o agente traz consigo a arma desmuniciada,
mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa
o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e
o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe ou está em
lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma
de fogo, como tal – isto é, como artefato idôneo a produzir disparo – e, por
isso, não se realiza a figura típica
.

                       

Por este fundamento, rejeito a denúncia
oferecida, nos termos do art. 43, inciso I, do Código de Processo Penal.

(P.
050.07.066136-7)

 

 

 

Furto de talonário: rejeição da denúncia

 

 

 

Trata-se de denúncia formulada pelo
representante do Ministério Público contra MESL,
imputando-lhe a prática do delito capitulado no art. 155, caput, do Código Penal, porque teria, em 07/11/02, por volta das
23h00, na rua D, nesta Capital, subtraído três folhas de cheque pertencentes a
CS. O denunciado teria preenchido uma das folhas e pedido a um conhecido para
depositar, porém a cártula retornara sem compensação em razão de sustação.

 

É o caso de rejeição da denúncia, no entanto.

 

Não há indicação da avaliação da res furtiva, inclusive porque não há
significativo valor econômico na folha de cheque em branco. Tendo sido
denunciado pelo furto consumado das folhas de cheque, aplica-se integralmente à
hipótese o princípio da insignificância.

 

Neste sentido:

 

“O talonário de cheques, dada a
insignificância de valor econômico, não se presta a ser objeto material do
crime de furto ou de receptação (STJ, Resp 150.908-SP)”, jurisprudência
extraída de Código Penal Comentado,
Guilherme de Souza Nucci, Ed. RT, 5ª ed., p. 621.

 

O direito penal não pune a qualquer conduta,
mas se dirige a condutas típicas (subsunção fato-norma) que lesionem ou
exponham a perigo bem jurídico relevante, dado o seu caráter fragmentário.

 

No caso concreto, há de se utilizar a
bagatela como excludente de tipicidade, uma vez que a lesão ao patrimônio é
mesmo insignificante, incapaz de afetar o bem jurídico em questão.

 

Apreciação similar foi recentemente
prestigiada, no HC 34.895-STJ, que julgava a ação penal em relação a furto de
frangos no valor de R$ 21,00 – “O acontecimento é tão irrelevante que não chega
nem a causar risco ao bem jurídico tutelado a ponto de se fazer necessário o
uso da máquina estatal de repressão a delitos”, a teor do acórdão relatado pelo
ministro Hamilton Carvalhido.

 

É, pois, além da falta de materialidade
(avaliação) também caso de atipicidade, pela aplicação do princípio da
insignificância e, por conseqüência, de rejeição da denúncia.

 

No que atine à possível absorção do
delito-meio para futuro crime de estelionato, temos que ao crime-fim ainda se
aplicaria a hipótese do crime impossível, uma vez que a indicação da própria
exordial (que fixa o limite da acusação) é de que o cheque já estaria sustado
quando da tentativa de depósito (inidôneo, pois, de toda a forma, o meio eleito
para obtenção de vantagem patrimonial).

 

Por estes fundamentos, rejeito a denúncia
oferecida, nos termos do art. 43, inciso I, do Código de Processo Penal.

(P. 050.05.045080-8)

 

 

 

Rejeição tardia: receptação de coisa sem
valor econômico

 

 

 

Trata-se de denúncia formulada pelo
representante do Ministério Público contra DAS,
imputando-lhe a prática do delito capitulado no art. 180, caput, do Código Penal, porque entre os dias 14 de julho e 03 de
agosto de 2010, na Rua LM, 1800, nesta Capital, recebido em proveito próprio,
diversos documentos, entre eles uma carteira nacional de habilitação, um
certificado de registro e licenciamento de veículo, referente ao veículo
FORD/Fiesta, as chaves desse mesmo veículo e uma agenda, todos pertencentes à
vítima DGD, sabendo serem produtos de crime.

                       

Ultrapassada a fase de rejeição liminar, pela
Defensora do acusada, foi apresentada resposta à acusação, postulando a
rejeição desta por falta de justa causa.

 

Cotejando os elementos indiciários existentes
nos autos, provenientes do inquérito policial, com a resposta escrita à
acusação (fls. 77/83), de rigor o acolhimento de seu pleito.

 

Para a caracterização do delito em tela, é
necessário que a res possua algum
valor econômico, para que se justifique a ocorrência de um delito contra o
patrimônio, como o é a receptação.

 

No caso concreto, foram apreendidos apenas os
objetos descritos no auto de apreensão (fls. 14/5), os quais não possuem
qualquer valor econômico, tanto que nem avaliação destes foi realizada (o que
seria indispensável para delitos patrimoniais).

 

Documentos como a carteira de habilitação,
certificado de registro e licenciamento de veículo, agenda com anotações
pessoais, não possuem valores patrimoniais relevantes. Que nem mesmo poderia
ser auferido, dada a natureza dos objetos.

 

É caso semelhante ao da receptação de talão de
cheques, pois que, por si, o cheque, ou qualquer outro título cambiário, não
possui valor econômico. Apenas assim podem ser considerados, se forem
preenchidos, caso em que restaria caracterizado o estelionato.

 

Assim já decidiu o Egrégio Superior Tribunal
de Justiça:

 

“RESP - PENAL - FURTO - RECEPTAÇÃO - TALONÁRIO DE CHEQUES – OBJETO MATERIAL - POSSIBILIDADE - O delito, no estágio atual do Estado de Direito Democrático, encerra sempre a conduta. Ação ou omissão, pouco importa. Fundamental, indispensável, porém, o comportamento do homem. Além disso, reclama-se para efeito de tipicidade, configurar o evento. Não é exaustivo o impacto no plano físico. O conceito, insista-se, é normativo: reclama, por isso, dano, ou perigo ao bem juridicamente tutelado, ao lado do objeto material e do sujeito passivo, entendido como titular do objeto jurídico. O dano pode ser material, ou moral. O perigo, por sua vez, probabilidade (não se confunde com a possibilidade) de dano. Não obedecido esse esquema, o raciocínio passa a ser próprio do mundo da natureza, que não se coaduna, na espécie, com os requisitos jurídicos. O Direito tem seu método. Se não observado, a conclusão, com certeza, será equivocada. O homicídio é crime porque elimina a vida do homem. A calúnia afeta a honra. O furto diminui o patrimônio. A literatura alemã, por influência jurisprudencial, construiu a doutrina da insignificância, cuja divergência é restrita ao seu efeito, ou seja, se elimina a culpabilidade, ou repercute na própria tipicidade. Aliás, a sensibilidade dos romanos consagrou - de "minimis non curat praetor". O prejuízo não é qualquer dano material, de que são exemplos o ligeiro corte na cutícula provocado pela manicure, ou o queimar, sem maior importância, as pontas dos cabelos da cliente. Nessa linha, "BETTIOL, ANIBAL BRUNO, MANTOVANI, MAURACH". O talonário de cheques, dada a insignificância de valor econômico, não se presta a ser objeto material do crime de furto, ou de receptação. Esta conclusão não se confunde com a conduta que se vale do talonário para praticar crime, de que o estelionato e o falso são ilustração.” (RESP. 150.908-SP, Relator Ministro Anselmo Santiago, Julgado em 18/08/98) 

                       

É verdade que a falta de justa causa seria
hipótese para a rejeição liminar, antes mesmo do oferecimento da resposta
escrita (art. 395, III, CPP). Mas isto não inviabiliza a rejeição tardia, ou
seja, após o recebimento da resposta escrita, tanto mais que o legislador
estipulou que Na resposta, o acusado
poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa
(art.
396-A). Ora, se a ausência de justa causa é fundamento para a rejeição liminar
da denúncia, antes mesmo de ouvida a defesa, com mais fundamento deve ser para
a rejeição da denúncia, após o cotejo da alegada justa causa com a resposta escrita,
podendo o acusado alegar tudo o que
interesse á sua defesa
. Se o legislador previu a possibilidade de uma
rejeição liminar, por óbvio que implicitamente não vedou a rejeição
não-liminar, ou seja, a rejeição após a apresentação da resposta, sem o quê a
possibilidade de o réu alegar tudo que
interesse à defesa
, estaria destituída de qualquer finalidade.

 

Por fim, sendo razão de ordem pública a
rejeição de denúncia por falta de justa causa para o exercício da ação penal,
indiferente seja a decisão tomada liminarmente, antes da resposta escrita, ou
fundamentadamente após o estabelecimento do contraditório. Afinal, o exercício
do contraditório não pode servir de empecilho à análise da justa causa, sendo,
ao revés, seu impulsionador.

 

Por este fundamento, rejeito a denúncia
oferecida, nos termos do art. 395, inciso III, do Código de Processo Penal, na
redação que lhe deu a Lei 11.719/08.

(P. 050.10.080086-6)

 

 

 

Primeira Lei seca:
bafômetro, rejeição da denúncia

 

[…]

 

É o caso de rejeição liminar da denúncia,
pois não há justa causa para a instauração da ação penal.

 

A conduta típica em questão, como dispõe o
art. 306, do Código de Trânsito Brasileiro, com a nova redação que lhe deu a
lei 11.705/08, é a de conduzir veículo
automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de
sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer
outra substância psicoativa que determine dependência.

 

Falece justa causa para a ação penal, em
razão da ausência de prova da materialidade do delito, ou seja, exame de sangue
apto a comprovar se o agente estaria ou não com a concentração de sangue igual
ou superior ao limite legal.

 

Isto porque, não há no corpo do inquérito
policial, qualquer exame de sangue, não sendo, de outra parte, viável sua
realização posteriormente à data do evento.

 

O teste de etilômetro –conhecido como bafômetro– não supre a necessidade do
exame de sangue para comprovar a materialidade, em razão da alteração
legislativa que incorporou ao tipo penal a quantidade de álcool no sangue.
Pelas redações anteriores, da Lei das Contravenções Penais e a original do
Código de Trânsito Brasileiro, a condição de alcoolizado poderia ser
demonstrada por todos os meios de prova em direito admitidos, inclusive o exame
clínico ou apenas a prova testemunhal. Todavia, em razão da alteração
legislativa e da incorporação do quantum
de álcool presente no sangue para a configuração do tipo penal, não há como
comprovar a materialidade sem o respectivo exame de sangue.

 

A situação não se altera em face da
existência do parágrafo único ao art. 306, do CTB, também com redação pelo novo
diploma legal: O Poder Executivo federal
estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de
caracterização do crime tipificado neste artigo
–regulamentado pelo Decreto
6488/08 que, em seu inciso II, estabelece que para fins criminais, o teste em
aparelho alveolar pulmonar deverá acusar concentração de álcool igual ou
superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido.

 

Por certo, o decreto proveniente do Poder
Executivo não pode criar condutas típicas, por intermédio de equivalência de
situações. A tanto, a idéia de norma penal em branco não pode alcançar. A
conduta típica, de conduzir veículo automotor com seis ou mais decigramas de
álcool no sangue, não pode ser simplesmente equiparada a outras condutas que
não estejam previstas na norma penal, com o quê se estaria infringindo o
princípio da reserva legal, estampado no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição
Federal. Permitir que o decreto possa criar figuras equiparadas àquela
estampada no tipo penal significa esvaziar o princípio da legalidade, pilar de
sustentação de qualquer direito penal de estado democrático de direito.

 

É verdade que se criou, com a edição da lei,
uma situação que beira o absurdo, pois, se de um lado a ação penal não pode ser
intentada sem a prova da materialidade (no caso, o exame de sangue), de outro,
em atenção ao princípio nemo tenetur se
detegere
, nenhum cidadão pode ser compelido a produzir prova contra si
mesmo, a persecução penal dependeria da submissão do agente a exame não
obrigatório. Mas é preciso compreender que a situação, que não existia
anteriormente, foi criada pelo legislador, e somente a ele cabe a tarefa de
resolver o paradoxo. Ao juiz, garante dos direitos fundamentais do cidadão, e
por conseqüência, tutor do princípio da legalidade, não incumbe a missão de
consertar os equívocos da lei, nem, por óbvio, fazer vista grossa à vulneração
dos princípios constitucionais.

 

A persecução penal nestas condições,
portanto, é inviável, como, aliás, já se decidiu em aresto do e. Tribunal de
Justiça deste Estado, concedendo-se habeas corpus para o trancamento da ação
penal nestes mesmos termos lançada, porque: a-) não é possível aferir
alcoolemia (estado de sangue no álcool), sem exame de sangue; b-) o referido
decreto não pode contrariar exigência do art. 158 do CPP, quanto à necessidade
de exame pericial (que inexiste no caso do etilômetro). Habeas Corpus 990.08.152617-4
(rel. Francisco Orlando).

 

A entrada em vigor da nova Lei 12.760/12 não
pode ser justificativa para aplicação da mesma no caso, pois é vedada a
aplicação de lei posterior em fato anterior, pela proibição da retroação da lei
penal mais grave.

 

Por estes fundamentos, rejeito liminarmente a
denúncia oferecida, nos termos do art. 395, inciso III, do Código de Processo
Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei 11.719/08.

 

 

 

Comunicação
a consulado na prisão de estrangeiro

 

[…]

 

Consoante requerimento da defesa pública, é
mesmo o caso de revogar a prisão preventiva, considerando que já transcorreram
mais de cinco meses da prisão em flagrante, sem que nem sequer tenha se
iniciado a instrução do processo (excesso de prazo na formação da culpa),
ademais de não se ter cumprido minimamente os requisitos de garantias de
informação ao preso, consoante determinado no art. 5º, inciso LXII, da
Constituição Federal, e ainda no artigo 36 da Convenção de Viena sobre Relações
Consulares: a-) não há comunicação à consulado ou missão diplomática acerca de
prisão dos estrangeiros (cuja necessidade foi afirmada pelo STF, no acórdão
Ext. 1126) a despeito de já ultrapassados cinco meses de prisão; b-) não houve
ciência aos próprios presos do direito à assistência consular no auto de prisão
em flagrante; c-) não houve regular habilitação de intérprete, havendo
indicação de que um indiciado irregularmente tenha suprido deficiência
linguística de outro.

 

A respeito da importância da informação
consular, registrem-se as palavras do ministro Celso de Mello, no julgamento
referido:

 

“Torna-se imprescindível que as autoridades
brasileiras, na esfera de procedimentos penais instaurados em nosso País e em
cujo âmbito tinha sido decretada a prisão de súditos estrangeiros, respeitem o
que determina o Artigo 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, sob
pena de a transgressão a esse dever jurídico, imposto por tratado multilateral,
de âmbito global, configurar ilícito internacional e traduzir ato de ofensa à
garantia do “due process of law”.

 

“O fato, Senhor Presidente, é que o
estrangeiro, preso no Brasil, tem direito de ser cientificado, pelas
autoridades brasileiras (policiais ou judiciárias), de que lhe assiste a
faculdade de comunicar-se com o respectivo agente consular, como, ainda, dispõe
da prerrogativa de ver notificado o seu próprio Consulado, “without delay”,
de que se acha submetido a prisão em nosso País.”

 

“Vale destacar, neste ponto, tal como
assinalado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua resposta dada
em sede de consulta (Opinião Consultiva nº 16/1999), que a cláusula “without
delay
” (“sem demora”) inscrita no Artigo 36, 1, (b), da Convenção de
Viena sobre Relações Consulares, deve ser interpretada no sentido de que a
notificação consular há de ser efetivada no exato momento em que se realizar a
prisão do súdito estrangeiro, “e, em qualquer caso, antes que o mesmo preste
a sua primeira declaração perante a autoridade competente
” (grifei).

 

“A essencialidade dessa notificação
consular
resulta do fato de permitir, desde que formalmente efetivada, que
se assegure, a qualquer pessoa estrangeira que se encontre presa, a
possibilidade de receber auxílio consular de seu próprio país,
viabilizando-se-lhe, desse modo, o pleno exercício de todas as prerrogativas e
direitos que se compreendem na cláusula constitucional do devido processo.”

 

Como se viu, no caso em tela, o atraso da
comunicação não é apenas considerável (como o da própria instrução), como ainda
agregado à ausência de informação sobre o direito à assessoria consular e à
própria intelecção do auto de prisão em flagrante, por meio de intérprete.

 

Fixo aos acusados as medidas cautelares de
comparecimento periódico em juízo (a se iniciar nos atos processuais), a
proibição de deixar o território nacional, e a obrigação de entrega em Cartório
dos passaportes não apreendidos.

 

Expeçam-se alvarás de soltura, com as cautelas de
praxe.

 

Comunique-se a ocorrência da prisão e da
soltura e as restrições impostas aos respectivos consulados ou missões
diplomáticas, bem ainda à Polícia Federal e ao Ministério da Justiça.

(P. 0081572.08.2012.8.26.0050)

 

 

                                              

Art.
28, CPP: denúncia por abuso de autoridade ao invés de tortura

 

 

 

Trata-se de denúncia formulada pelo
Ministério Público dando como incursos nas sanções do art. 3º, parágrafo único,
alínea i, da lei 4.898/65, c.c. o
art. 29, caput, do Código Penal, os policiais
civis MS e UO. São os dois acusados de terem abusado da autoridade e atentado
contra a integridade física de GT, quando do cumprimento de um mandado de
prisão temporária e demais diligências de apuração de um crime, do qual a
vítima veio a ser absolvida.

 

A denúncia relatou que a vítima foi derrubada
da bicicleta que pilotava, foi pisoteada no chão e recebeu socos, no local onde
se deu sua prisão. Narrou, ainda, a exordial, que o ofendido recebeu
borrachadas nas costas no 2º Distrito Policial e ainda outras agressões físicas
por parte dos denunciados para assinar o Boletim de Ocorrência. Posteriormente,
ainda teriam levado a vítima à sua casa, desferindo-lhe um soco e a jogando
para dentro do imóvel, do qual saiu aos empurrões dos policiais denunciados.

 

A denúncia é embasada em procedimento
administrativo realizado na Corregedoria da Polícia Judiciária, do Departamento
de Inquéritos Policiais. Apresenta, entre os documentos que encaminha, relato
da própria vítima, narrando ter sido agredido para assinar o Boletim de
Ocorrência, inclusive com choques elétricos, o depoimento de três testemunhas
presenciais de parte da agressões, e o exame de corpo de delito do ofendido,
constatando “equimose frontal a esquerda.
Ferimento não suturado no ângulo orbitário-externo esquerdo. Escoriação de
região malar e bucinadora, tipo abrasão
”.

 

Os elementos dos autos, à primeira vista, dão
conta da realização, por parte dos denunciados, das condutas típicas, descritas
no art. 1º, inciso I, alínea a (constranger alguém com o emprego de
violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com o fim
de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa
)
e art. 1º, inciso II, parágrafo 1º (quem
submete pessoa presa ou sujeita à medida de segurança a sofrimento físico ou
mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou resultante de
medida legal
), ambos da Lei 9.455/97.

 

Para este fim, determinei que os autos fossem
com vistas ao Ministério Público para aditamento da denúncia. A i.
representante do parquet entendeu,
todavia, que a ação dos denunciados não se enquadra nas hipóteses típicas de
tortura, isto porque: a) a tortura caracteriza-se pela inflição de tormentos e
suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se
projetam seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária,
abusiva e inaceitável crueldade e; b) a lesão por si só não é suficiente e
bastante para a caracterização do crime de tortura, pois esta deve estar
acompanhada de determinadas formas de execução que levem ao sofrimento, ou
seja, uma exasperação da gravidade daquela conduta. Sugeriu que, em caso de
discordância, este Magistrado remetesse os autos ao D. Procurador Geral de
Justiça, para os fins do art. 28, do Código de Processo Penal.

 

E é, de fato, o que se faz nesta
oportunidade.

 

Em tese, a conduta dos denunciados, pelo que
descrita na inicial, bem ainda pelos elementos trazidos no corpo do inquérito,
indicam a prática de um crime de tortura, porque, segundo se aventa nos autos:
a) teriam constrangido a vítima, com emprego de violência a obter declaração ou
confissão (é da própria denúncia que os
indiciados agrediram a vítima para assinar Boletim de Ocorrência, embora não se
tenha mencionado a alegada submissão do ofendido a choques elétricos
); b)
teriam submetido pessoa presa a sofrimento físico por ato não previsto em lei (referindo-se a exordial a várias agressões
sofridas pelos executores do mandado de prisão dentro e fora da delegacia
).

 

Não se indica, ademais, que qualquer destas
condutas pretensamente realizadas possa fugir quer à distinção de desnecessária crueldade, quer a uma forma de execução que leve ao sofrimento
(em face dos socos, pontapés, borrachadas e choques elétricos aduzidos nos
autos), elementos do crime de tortura segundo a i. representante do MP.

 

Se os denunciados efetivamente cometeram ou
não os crimes é fato que se deve avaliar no recebimento da denúncia (em um
primeiro juízo de admissibilidade) e na sentença, após a colheita da instrução criminal.
A  acusação formulada pelo representante
do Ministério Público, é, no entanto, 
menor do que os fatos constantes da apuração da sindicância (nas quais
se apóia o próprio parquet para dar
sustentáculo à denúncia), e a capitulação da acusação é diversa daquela
juridicamente apropriada à hipótese.

 

A correção de denúncia, negada pela
representante do Ministério Público de primeira instância, deve pois, ser
submetida ao crivo da Procuradoria Geral de Justiça, até porque a inicial
baliza o procedimento penal a ser imprimido ao feito, bem como a possibilidade
ou não da aplicação da suspensão condicional do processo.

 

Para eventual aditamento ou oferecimento de
nova denúncia, portanto, remeto estes autos ao D. Procurador Geral de Justiça,
nos termos do art. 28, do Código de Processo Penal.

(16VC-
P. 1251-00 – publicado em Boletim do IBCCrim, Dez-2000)

 

 

 

Contradição
entre testemunhas de acusação, defesa e réu: dúvida razoável

 

 

[…]

 

A ação penal é improcedente.

 

A materialidade do delito se comprovou com
apreensão e perícia na arma de fogo, tratando-se de arma de uso restrito e apta
para a produção de disparos (fls. 58/60); teria sido apreendida em via pública
e municiada (auto de apreensão a fls. 17/19), portanto presente a
potencialidade lesiva.

 

Não há segurança, todavia, quanto à autoria.

 

Existem duas versões nos autos e os elementos
colhidos não permitem afastar a dúvida razoável, que impede a condenação.

 

A acusação reconheceu a existência de duas
versões contrapostas, optando pelos relatos dos policiais e, por consequência,
sugerindo que a testemunha de defesa fosse processada pelo falso testemunho.

 

Creio, todavia, que, dadas as circunstâncias
dos autos, não é possível fazer a opção, sem um certo exercício de presunção
–ou partindo-se do princípio de que os agentes da lei tem sempre fé pública e a
Defesa interesse direto na mentira. Ainda que isso possa acontecer em muitas
circunstâncias –é fato que não ocorre em todas elas, razão pela qual a análise
não pode partir desse dogma.

 

Os relatos dos policiais dão conta de que
teriam sido avisados pelo serviço do Copom que havia pessoas armadas no
interior de um veículo Fiat Uno –segundo LN, um vigilante teria visto
indivíduos descerem armados do veículo. Encontrado o veículo, fechado e com
proteção de filme nos vidros, os policiais se aproximaram para fazer a
abordagem.

 

Relata LN que quatro pessoas desceram do
carro correndo e, destas, três foram presas e uma quarta fugiu. O policial
teria conseguido deter, de uma só vez, a corré CL e o adolescente W. Com CL, em
sua bolsa, teria sido encontrado um revólver, calibre 38, municiado –o acusado
fora preso pelo parceiro, com uma pistola .40 na cintura (que seria,
originalmente, da Polícia Militar). Nada disseram sobre o fato, apenas que a
quarta pessoa teria a alcunha de Mineiro (fls. 156).

 

O PM RF confirma o relato do colega,
afirmando ter prendido o acusado, com uma pistola na cintura –afirma, todavia,
que a bolsa com o revólver (e ainda uma touca ninja), foi apreendida dentro do
carro (fls. 157).

 

Nos relatos de inquérito, não fica claro se a
arma atribuída a CL havia sido apreendida na bolsa com ela portanto ou dentro
do veículo –fazendo-se constar no termo a expressão ambígua durante
revista pessoal e no veículo
(fls. 04).

 

O adolescente W foi arrolado pela acusação,
que dele desistiu assim que se ultimou a oitiva dos policiais; ainda assim,
ouvido na condição de testemunha de defesa, afirmou que era amigo da acusada CL
e que com ela e Mineiro estavam no carro, onde foram encontradas duas
armas. Negou conhecer o acusado e que ele estivesse no carro. Diz que foi ao
bar junto com Mineiro e que viu CL sendo abordada e detida no carro. O
réu J teria voltado ao local dentro de outra viatura da polícia (fls. 158).

 

A essa altura, com as testemunhas arroladas
inicialmente na denúncia, a prova já não estava 100% segura, com uma contradição
entre os policiais e um testemunho do adolescente em tudo divergente a eles.

 

A partir daí, todavia, a prova ficou ainda
menos segura.

 

A testemunha de defesa EV disse que conhecia
o acusado de seus trabalhos de pintor (o acusado) e que o encontrou no ponto de
ônibus, quando policiais chegaram e o abordaram e o agrediram. Um mês depois, o
encontrou com a perna engessada (fls. 159).

 

O acusado, a seu turno, negou conhecer a
corré, que estivesse no carro, ou mesmo que estivesse armado. Disse ter trabalhado
como pintor naquele dia (e depois também) e passado no bar para tomar uma dose
de cachaça, antes de pegar o ônibus. No ponto, sem qualquer motivo, foi
abordado e agredido por policiais militares, sendo ao final preso. Pelas
fraturas na perna, ficou três meses sem conseguir trabalhar para pagar seu
aluguel (fls. 161).

 

O laudo de corpo de delito juntado a fls. 80
comprova que o acusado, dias depois do evento já estava com a perna engessada.
A acusação se bate pela ineficácia do laudo para a prova da agressão pelos
policiais porque ele é de data posterior, a foto de fls. 36 não mostra nenhuma
agressão e o acusado não teria sido encaminhado a atendimento médico.

 

A argumentação, todavia, não é de toda
correta.

 

O laudo pericial foi requisitado pela
autoridade policial, conforme documento de fls. 38. O Boletim de Ocorrência,
juntado a fls. 14, também comprova que houve atendimento médico ao acusado no
dia (P.S.M. Dr. Caetano Virgilio Netto), e informa o que não foi relatado na
lavratura do auto de prisão em flagrante, nem no depoimento judicial: Sd PM CT
declara que durante a perseguição a pé, ao segurar o suspeito, ora indiciado
JB, este
caiu na via pública, razão pela qual sofreu lesão
na perna direita
.

 

Ao acusado foi fixada fiança pela autoridade
judicial, quando da comunicação da prisão em flagrante, cumulada com a medida
cautelar de comparecimento mensal em juízo –cumprido pelo acusado, conforme as
certidões de fls. 85, 127, 142, 148, 149, 152.

 

Dadas as circunstâncias aqui descritas, não
se pode desprezar a versão do acusado e testemunha de defesa, ainda que sejam
frontalmente contrárias ao relatado pelos policiais que, na qualidade de
testemunhas, não têm fé pública –mas devem ter sua credibilidade aferida da
mesma forma que as demais compromissadas.

 

A aparente sinceridade e simplicidade do
acusado, por óbvio, não pode ser um passaporte para a improcedência, até porque
não tem a obrigação de dizer a verdade. Mas a versão se casa com a testemunha
de defesa, com o laudo pericial, com a comprovação da lesão na perna e, ainda,
com a própria testemunha arrolada na denúncia –ainda que desistida antes de ser
ouvida. Difícil crer que policiais tivessem inventado a apreensão da arma
apenas para prejudicar um inocente a qual sequer conheciam –e aqui a lógica
realmente não ajuda a defesa. No entanto, não se descarta a possibilidade de
uma confusão, eis que a testemunha W afirma que estava no bar com Mineiro,
e o acusado também alega que esteve no local para tomar uma cachaça.
Deste mesmo bar pode ter fugido Mineiro (conforme a versão de W) e
saído o acusado.

 

Aponta-se, no entanto, para dois fatos: não
há certeza suficiente para afastar qualquer uma das versões existentes nos
autos (situação que se enquadra na dúvida razoável); houve lesão provocada
na prisão do acusado que nem sequer chegou a ser investigada (se acidental,
como diz o policial RF apenas no Boletim de Ocorrência; se propositada, como
alega o acusado e afirma a testemunha de defesa).

 

Nestas condições de incerteza, de rigor o
decreto absolutório, sem prejuízo de que seja a lesão sofrida pelo acusada
apurada em inquérito policial a parte.

 

ISTO POSTO, julgo a ação penal IMPROCEDENTE
para ABSOLVER JB da imputação que lhe
move a Justiça Pública, com fundamento no art. 386, inciso VII, do Código de
Processo Penal.

 

Com cópias das principais peças dos autos,
como denúncia, auto de prisão em flagrante, Boletim de Ocorrência, laudo
pericial, termo de audiência e sentença, oficie-se à autoridade competente para
a instauração de inquérito visando apurar a lesão sofrida pelo réu no momento
da prisão.

(P.
0025852-56.2012.8.26.0050)

 

 

 

Pedido mentiroso de doação não caracteriza
vantagem ilícita

 

 

 

VISTOS.

 

Trata-se de denúncia formulada pelo
representante do Ministério Público contra EA,
imputando-lhe a prática do delito capitulado no art. 171, caput,
c.c. art. 14, inciso II, ambos do Código Penal, porque teria, em 21/08/09, por
volta das 23h00, no Terminal Rodoviário do Tietê, localizado na avenida
Cruzeiro do Sul, 1800, Carandiru, nesta Capital, tentado obter, para si,
vantagem ilícita consistente em trinta e dois reais, em prejuízo das vítimas PC
e LM, induzindo-as em erro, mediante meio fraudulento (simulando ser piloto da
Varig e ter sido assaltado necessitando de trinta e dois reais para condução),
não consumando o delito por circunstâncias alheias à sua vontade, obstado que
teria sido pela pronta ação policial.

 

É o caso de rejeição liminar da denúncia, no
entanto.

 

Observa-se que a conduta em questão não é
típica, não se amoldando à figura do estelionato.

 

Caracteriza o estelionato a utilização de
ardil para a obtenção de vantagem ilícita. No caso em questão, verifica-se a
ocorrência do ardil –o denunciado mentiu, dizendo ser um piloto da Varig
recentemente roubado, necessitando de dinheiro para sua condução a Guarulhos.

 

No entanto, a despeito dos elementos que
caracterizam o ardil, não há na hipótese vantagem ilícita a ser obtida.

 

É verdade que o denunciado, com a mentira,
tentou sensibilizar as vítimas para a necessidade temporária que passava. No
entanto, a doação é, por sua essência, uma liberalidade do donatário. Ainda que
o pretexto a que o pedido foi feito não fosse verdadeiro, o ato de liberalidade
da doação não corresponde a uma vantagem ilícita, para os efeitos penais. No
caso em questão, o denunciado nada ofereceu em troca da ajuda que pediu, não se
podendo, portanto, caracterizar o dinheiro que recebeu em vantagem indevida
–sob pena de se entender cabível perscrutar a veracidade das histórias de cada
pedinte.

 

De outra parte, tratou a denúncia, de imputar
o delito praticado pelo denunciado, que resultara em um prejuízo potencial de
trinta e dois reais (valor correspondente a menos do que a décima parte do
salário mínimo) às vítimas.

 

O desfalque patrimonial pretendido é
irrisório em termos absolutos, de modo a não significar, materialmente, uma
lesão ao patrimônio.

 

Trata-se aqui da
inafastável aplicação do princípio da insignificância […]

 

Por estes fundamentos, rejeito a denúncia
oferecida, nos termos do art. 395, inciso III, do Código de Processo Penal, na
redação que lhe deu a Lei 11.719/08.

 

Expeça-se
alvará de soltura.

(P. 050.09.066984-3)

 

 

 

Dúvida
fundada quanto ao estado de necessidade em roubo: absolvição

 

[…]

 

Imputou-se ao acusado o roubo que teria
praticado contra a dona de loja de bijouterias –a subtração do dinheiro teria
se dado mediante grave ameaça exercida com simulação do porte de arma de fogo.

 

A vítima confirmou, quando ouvida em juíza,
que o acusado efetivamente deu voz de assalto, mas não indicou
simulação. Disse que ele não estava armado, apenas com a mão no
bolso. Emendou: sabe que não deve reagir e entregou o dinheiro que tinha no caixa
(fls. 103).

 

A conduta do acusado não chega a caracterizar
grave ameaça, tanto que a vítima percebeu que ele não estava armado. Optou por
não reagir, diante do que lhe diz, acertadamente, o senso comum. Todavia, para
a caracterização do roubo, não basta que a vítima se sinta intimidada –mas que
o agente efetivamente lhe cause medo, diante de uma ameaça grave. Se a vítima
de antemão sabe que o acusado não está armado e a grave ameaça se caracteriza,
segundo a própria denúncia, com a simulação do porte de arma, não
há como considerar a hipótese típica de roubo.

 

É verdade que o acusado buscou isentar-se de
responsabilidade por outro caminho, negando a autoria. Disse que estava com sua
companheira na clínica, saiu apenas para carregar um bilhete e na volta foi
abordado, já dentro da clínica, pela polícia. Disse que tinha apenas cinco ou
seis reais consigo (fls. 114).

 

A versão não é crível.

 

A vítima reconheceu o acusado pessoalmente no
dia dos fatos, na delegacia de polícia e, em audiência, em juízo, em sala
própria no Fórum. Não houve qualquer sinal de hesitação.

 

Disse a vítima que entregou notas de dois,
cinco e dez (mas estas maiores não foram recuperadas). O policial Ricardo,
efetivamente, encontrou dinheiro trocado com o acusado (fls. 104); o
auto de apreensão deu conta de que foram R$ 49,50 (fls. 16).

 

O vigilante José Luiz não chegou a ver o
crime, mas foi quem indiretamente localizou o acusado, pelas indicações
fornecidas pela vítima e passou o local em que ele se encontrava para a polícia
(fls. 112), o que acabou por viabilizar a prisão em flagrante.

 

O acusado estava na clínica vizinha à loja,
onde levara a companheira (Simone, fls. 105) para fazer um exame. Tinha saído e
depois retornado à clínica.

 

Desde o inquérito, já se sabia que os valores
para pagamento do exame a que a companheira do acusado se submeteria eram
diversos se houvesse ou não biópsia (fls. 06), que acabou mesmo sendo
necessária (fls. 105) e até a vítima confirmou que parte do dinheiro (as notas
de cinco e dez) não foram recuperadas, justamente porque foram pagos à clínica
pelo exame (fls.103).

 

Ainda que o acusado tenha buscado, por
constrangimento ou má orientação, escusar-se de ter sido o autor da subtração,
o reconhecimento pessoal, a apreensão de parte da res em seu poder
(em valor bem superior ao que admitira) e a circunstância de ter deixado a
companheira na clínica, saído e retornado para pagar o exame com
biópsia
, tornam evidente que isso aconteceu. O acusado chega a
dizer, em sua defesa, que tinha dinheiro consigo –mas os fatos demonstram
exatamente o contrário.

 

Mas, enfim, se os fatos se passaram desta
forma, para o qual a prova converge, é o caso de reconhecer, diante do caráter
absolutamente excepcional dos fatos, a existência de dúvida fundada quanto à
ocorrência do estado de necessidade.

 

O acusado teria praticado a subtração no
diminuto intervalo entre a recepção de sua companheira na clínica e a
necessidade de pagamento a maior pelo exame com biópsia; voltou a clínica,
vizinha à loja subtraída, justamente para pagá-la, onde veio a ser preso em
flagrante. Não estava armado, nada indica que estivesse premeditamente
preparando-se para roubar (com a companhia da esposa que sofria dores e
necessitava de exame delicado) e que, enfim, de acordo com o relato da própria
vítima, sequer chegou a produzir uma grave ameaça, limitando-se a deixar a
mão no bolso.

 

Nestas peculiares circunstâncias, condenar o
acusado pelo roubo seria evidente desproporção. O desespero pela necessidade
premente de resolver a situação (considerando, ademais, a situação de
desemprego do réu) tornaria o ato lícito, pela excludente de antijuridicidade.
Ainda que a prova do estado de necessidade não seja extreme de dúvidas (até
porque o acusado não a alegou, negando a prática), é certo que, indiretamente,
pelo conjunto das circunstâncias (inclusive o relato da vítima e os das
testemunhas) permitiram o estabelecimento de uma situação de dúvida razoável.

 

Nem o fato de que a questão não tenha sido
suscitada pela defesa técnica impede que seja considerada pelo juízo, que não
pode fechar os olhos para fatos que se erguem do conjunto probatório.

 

Nestas condições, considerando que o roubo
não ficou caracterizado, e que há dúvida razoável da ocorrência do estado de
necessidade, tenho que a improcedência é a melhor solução.

 

(P.0025358-94.2012.8.26.0050)



 

 

Roubo
impróprio e insignificância

 

 

VISTOS.

 

sD,
qualificado nos autos, foi denunciado como incurso nas sanções do artigo 157,
§1º, c.c. artigo 14, inciso II e artigo 163, parágrafo único, inciso III, na
forma do artigo 69, caput, todos do Código Penal, porque no
dia 20 de janeiro de 2011, por volta das 12h50, no Posto de Atendimento Médico
– AMA, situado na Rua…, nesta Capital, teria tentado subtrair, para si, um
guarda chuva de propriedade da vítima MJ, mediante o emprego de violência
física e grave ameaça exercida contra as vítimas SM e SN, a fim de assegurar a
impunidade do crime, somente não se consumando o delito por circunstâncias
alheias a sua vontade.

 

Consta, ainda, que logo após a prática do
delito supramencionado, o acusado teria deteriorado e inutilizado coisa alheia,
consistente em aparelhos médicos e o aparelho de telefone, ambos pertencentes à
Prefeitura Municipal de São Paulo.

 

[…]

 

Em debates, o representante do Ministério
Público requereu a procedência da ação penal, porque provadas a materialidade e
a autoria do delito. Pela Defesa, em memoriais, foi requerida a absolvição do
réu por insuficiência de provas e, ainda: a) a absolvição de SD por atipicidade
de conduta, arguindo a desistência voluntária; b) a aplicação do princípio da
insignificância e, com relação à agressão, a desclassificação para a lesão
corporal; e c) a desclassificação para o furto, em concurso material com o
crime de lesões corporais leves.

 

É o
relatório.

           

DECIDO.

 

A ação penal é procedente, em parte.

 

Duas foram as imputações movidas contra o
acusado: a prática de um roubo impróprio (cumulando a tentativa de furto com
lesões para assegurar a impunidade do crime anterior) e dano ao patrimônio
público.

 

A autoria da subtração e da violência estão
perfeitamente caracterizadas, ainda que não se deva dar a elas a configuração
jurídica explicitada na denúncia, como mais tarde se verá.

 

O médico MJ revelou ter estranhado que havia
um senhor, antes do horário, sentado defronte seu gabinete. Quando retornou,
não o viu mais e, estranhando a atitude, foi conferir seus pertences, dando-se
conta, então, do sumiço de seu guarda-chuva. Comunicou o fato a seguranças e
pôde-se constatar que seu guarda-chuva estava no interior da pasta do acusado
(a quem reconheceu em audiência), fls. 94.

 

O policial Daniel, chamado pela segurança do
estabelecimento, também chegou a constatar que o guarda-chuva estava na mala do
acusado (fls. 95), como descobriram as duas seguranças femininas que o
abordaram, estranhando a conduta de vagar pela recepção do hospital sem
qualquer atendimento médico (fls. 92/3).

 

O próprio acusado, por fim, admitiu ter pego
o guarda-chuva e se propôs a devolvê-lo, tão logo foi descoberto (fls. 97)
–fato controverso pelos relatos precisos das agentes de segurança no sentido de
que foram agredidas neste momento.

 

Mas, como se verá, a hipótese não é de roubo
impróprio.

 

É certo, todavia, que antes de sair do hospital, o acusado foi abordado
pelas seguranças –segundo elas, porque ele próprio demonstrava comportamento
estranho ao vagar pelo estabelecimento. Em face desta abordagem, quando
descoberto o guarda-chuva no interior de sua sacola, o acusado agrediu as
vítimas, provocando-lhe lesões corporais de natureza leve a ambas (fls. 79/80).

 

O furto só se transmudaria em roubo impróprio se ainda não houvesse se
consumado.

 

A dúvida, todavia, está presente nos autos.

 

A vítima fala apenas que “comunicou os fatos a seguranças e foi possível
ver que o acusado estava com o guarda-chuva dentro da pasta” (fls. 94); as
seguranças informam que o acusado já tinha sido abordado por outro motivo
–entrava e saía de várias salas (fls. 92/3).

 

Como não houve perseguição imediata, a vítima perdeu o acusado de vista,
não havendo indicativo de quanto tempo passou entre a subtração e a detenção,
não há como afirmar-se que o furto ainda não se consumara, no momento das
agressões –única hipótese em que se caracterizaria o roubo impróprio. Tendo
havido furto e em seguida lesões (praticadas contra as seguranças que abordaram
o acusado por comportamento suspeito efetuado após a subtração), a hipótese não
caracterizaria o roubo impróprio.

 

Por outro lado, ainda que se concluísse que o furto estava em execução,
mesmo assim a violência posterior não o transformaria em roubo, justamente por
ter se tratado, desde o início, de conduta atípica –eis que abrigada pelo
princípio da insignificância.

 

O desfalque patrimonial pretendido, não mais
do que quinze reais, é irrisório em termos absolutos (e também em proporção ao
patrimônio da vítima, médico), de modo a não significar, materialmente, uma
lesão ao patrimônio.

 

Trata-se aqui da
inafastável aplicação do princípio da insignificância, segundo o qual a ação
não é materialmente típica, ainda que formalmente corresponda à descrição
legal, por falta de potencial ofensivo a atingir, de maneira minimamente
significante, o bem jurídico protegido pela norma penal.

 

[…]

 

Assim, se a subtração do bem era por si só irrisória, ou seja, abrangida
pelo princípio da insignificância, não há como considerar que uma conduta
inicialmente atípica se torne violadora do patrimônio apenas porque, após a
subtração, tenha sido empregada violência física. Ora se a conduta nasceu
atípica, enquanto crime contra o patrimônio, a posterior violência física deve
ser punida como autônomo crime contra a pessoa.

 

Até porque, pelo que se vislumbrou dos autos, a reação destemperada do
acusado (notadamente sob efeito de drogas, como afirmam as testemunhas), tem
muito mais o colorido da ira do que propriamente da intenção de assegurar
impunidade de qualquer crime, o que se pode constatar pelo restante da ação do
acusado, consistente em jogar aparelhos e revirar a sala de segurança.

 

Assim, seja pela existência de dúvida razoável quanto à consumação do
crime (que deve ser resolvida em benefício do réu, que no caso é a prática de
agressões
após
a consumação), seja pela impossibilidade de que uma subtração atípica pela
irrisória infringência ao patrimônio (bagatela) possa se transformar apenas
pela lesão corporal em outro crime contra o mesmo patrimônio, seja pela
ausência do elemento subjetivo do delito (intuito de garantir a impunidade do
crime), não está caracterizada a conduta de roubo impróprio.

 

Estando, pois, a subtração atingida pela insignificância, remanescem, na
hipótese, a punibilidade das lesões corporais praticadas pelo acusado e
comprovadas testemunhal e pericialmente.

 

Inversamente do que propugna a defesa pública, no entanto, prossegue-se
no julgamento do feito neste juízo, dada a competência pela conexão com o
delito de dano qualificado que também integra a denúncia e impede a remessa dos
autos para o juizado especial.

 

Embora o acusado tenha afirmado que apenas se defendeu (jogando um remédio sobre uma pessoa que não identificou), a prova é
segura do que cometeu lesões corporais.

 

SN disse que o acusado lhe deu um murro (fls. 92); SM relata agressão por
socos (fls. 93).

 

Exames de corpo de delito comprovam lesões compatíveis com os relatos das
vítimas: SN, com edema de antebraço direito (fls. 79); SM com escoriação em
cotovelo direito (fls. 80).

 

O comportamento do acusado, relatado pelas vítimas, é compatível,
inclusive, com o que informou o policial militar que o prendeu: o acusado
demonstrava agressivo e foi preciso algemá-lo (fls. 95).

 

Observe-se, ademais, que apesar da afirmação de que apenas se defendeu,
nenhuma lesão foi constatada no exame de corpo de delito realizado no próprio
acusado (fls. 78).

 

Duas foram as pessoas atingidas, em momentos subseqüentes, com intenções
de ferir ambas. Crime continuado com violência em face de vítimas distintas, a
qual se aplica, pelas circunstâncias que envolveram o delito, a regra do art.
71, §único, nos mesmos limites do concurso material.

 

Com relação ao dano, todavia, a prova não é conclusiva.

 

S disse que o acusado jogou vários objetos da sala de enfermagem no chão,
para que elas não entrassem no local, chegando a quebrar um aparelho de pressão
e um telefônico (fls. 92); Simone disse que ele quebrou vários aparelhos,
acrescentando teclado e computador (fls. 93).

 

No entanto, laudo pericial juntado aos autos (depois do oferecimento da
denúncia), constatou que
ausência de danos nas vias de acesso á sala de enfermagem; estado de
desordem, com objetos ao chão

(fls. 68/9), mas sem apurar dano em qualquer deles. Dano é crime material,
depende de perícia para sua apuração e esta não pode ser suprida pela prova
testemunhal. No caso, realizada a perícia, constatou-se desordem e aparelhos
jogados ao chão, mas não se comprovou dano a qualquer bem do hospital.

 

Assim, diante da insuficiência de provas, o dano qualificado também deve
ser afastado.

 

É o caso, portanto, de condenar o acusado pelas lesões corporais
impingidas as duas vítimas.

 

Sem razões para acréscimos, fixo a pena-base, respeitando os limites
anteriormente fixados da continuidade agravada, em seis meses de detenção, sem
motivos para acréscimos.

 

Crime praticado mediante violência ou grave ameaça, pena não passível de
substituição por restritivas de direito.

 

Diante da primariedade e do cumprimento de parte significativa da sanção
imposta em custódia cautelar, fixo o regime aberto para início do cumprimento
da pena, sendo viável a concessão de
sursis bienal condicionado.

 

[…]

 

Transitada em julgado a decisão para a
acusação, tornem os autos ao MP para a apreciação do cabimento de benefícios
existentes na lei 9.099/95, inviáveis até então, em face do excesso de
denúncia.

(P.
050.11.006022-9)

 

 

 

Veículo
adulterado não é “produto de crime” para os fins do art. 180

 

 

VISTOS.

 

Trata-se de denúncia formulada pelo
representante do Ministério Público contra LE,
imputando-lhe a prática do delito capitulado no art. 180, caput,
do Código Penal, c.c. art. 28, caput, da Lei 11.343/06, porque teria, em
13 de dezembro de 2009, por volta das 19h30, na Rua X, nesta Capital, estaria
conduzindo o veículo GM/Corsa, o sabendo ser produto de crime. Na mesma
oportunidade, estaria trazendo consigo, para consumo próprio, um papelote de maconha,
totalizando 3,6g, sem autorização e em desacordo com a determinação legal ou
regulamentar.

 

Das duas imputações presentes na inicial, é o
caso de rejeição liminar em relação a uma delas, de competência deste juízo.

 

A denúncia imputa a LE a receptação, condução
de veículo com ciência de crime antecedente, qual seja, a adulteração de sinais
(art. 311, caput, do Código Penal).

 

Todavia, a imputação esbarra em conduta
atípica.

 

Para que se caracterizasse a receptação,
consoante o disposto no art. 180, caput, do Código Penal, era
indispensável que o objeto (o veículo, no caso), fosse produto de
crime
. No caso em questão, não se apurou se o veículo foi produto
de crime, ou seja, auferido em razão de um crime –mas, tão-somente, que foi
objeto de um, qual seja, a adulteração.

 

Os produtos de crime são aqueles auferidos
como vantagem obtida no crime. O veículo, que eventualmente pode ter sido
obtido como vantagem em um crime (tal fato não é descrito na inicial,
supondo-se que não seja até então do conhecimento da autoridade), foi objeto de
uma adulteração. Esta, todavia, não é suficiente para transformar o veículo, objeto de
crime
, em produto deste.

 

Não havendo nos autos comprovação de delito
pressuposto em relação ao qual o bem possa ser considerado objeto de crime,
evidente a falta de justa causa para o seguimento da ação, em relação a este
delito, sendo o delito remanescente de competência do Juizado Especial
Criminal.

 

Por este fundamento, rejeito a denúncia
oferecida, nos termos do art. 395, inciso III, do Código de Processo Penal, na
redação que lhe deu a Lei 11.719/08, em relação à receptação, remetendo-se os
autos ao Juizado Especial Criminal, para apreciação do crime remanescente (art.
28, da Lei 11343/06), de sua competência.

(P. 050.09.100449-7)

……………………………………………………………………………………………………………………………………

 

 

Internação com prazo máximo definido na pena em
concreto

 

 

[…]

 

O roubo se consumou. O acusado foi preso
depois que já mantivera contato com outras pessoas e na posse de apenas parte
do dinheiro roubado.

 

Não há qualquer causa de exclusão da
antijuridicidade atuante na hipótese.

 

Sendo caso de responsabilidade penal, seria
de se fixar a pena no padrão mínimo, por ausentes motivos para seu acréscimo, e
então aplicar a circunstância agravante da reincidência, no patamar de ¼,
consideradas as certidões de fls. 103, 112, 126, 134 e 142 –com plêiade de
condenações definitivas por roubo. Pena, enfim, em cinco anos de reclusão.

 

Todavia, considerando o laudo pericial que
concluiu pela inimputabilidade, é o caso de prolatar a decisão de absolvição
imprópria –diante da ausência de culpabilidade.

 

Ainda que pertinente a tese da combativa
defensoria pública, no tocante ao padrão normativo fixado pela Lei 10261/01,
quanto à expressão da política antimaniconimal, no caso em tela é de se
registrar que o acusado já foi condenado anteriormente por cinco vezes pelo
mesmo delito de natureza violenta, tudo a indicar que torna a praticar o fato
nas circunstâncias em que se vê livre.

 

A prática sistemática de atos com violência e
grave ameaça, no caso, ainda que em caráter excepcional à política de saúde
mental acolhida pelo direito brasileiro, não invalida, na hipótese dos autos, a
legalidade da internação prevista no art. 97 do Código Penal, a ser aplicada em
Hospital de Custódia e Tratamento (art. 96, I) –como, aliás, é o parecer
psiquiátrico.

 

Nada indica, a esta altura, ser necessária a
internação por prazo superior ao mínimo legal, um ano, com exames subsequentes
de cessação de periculosidade.

 

Afasto, todavia, a consideração indeterminada
da medida de segurança, por entender que o dispositivo, neste particular, não
foi recepcionado pela Constituição Federal que proíbe, expressamente, o
cumprimento de penas em caráter perpétuo (art. 5º, inciso XLVII, b).

 

 Já faz tempo tem se consolidado na doutrina,
ganhando espaço na jurisprudência, a tese de que a duração indeterminada da
medida de segurança viola a proibição da pena de caráter perpétua, considerando
a natureza também judicial e também aflitiva da medida de segurança,
basicamente a partir do ensinamento de Zaffaroni e Pierangeli: ‘não é
constitucionalmente aceitável que, a título de tratamento, se estabeleça a
possibilidade de uma privação de liberdade perpétua, como coerção penal. Se a
lei não estabelece o limite máximo, é o intérprete quem tem a obrigação de
fazê-lo’. (Manual de Direito Penal, RT, 2004).

 

A evolução da
jurisprudência chegou à decisão do HC 84.219, 
por meio do qual o STF espancou a possibilidade de cumprimento de medida
de segurança indeterminada –prevendo, ademais, a solução de internação cível,
em analogia ao disposto no art. 682, §2º, do Código de Processo Penal.

                       

A doutrina tem
avançado, todavia. Como analisa Cezar Roberto Bittencourt, “começa-se a
sustentar, atualmente, que a medida de segurança não pode ultrapassar o limite
máximo de pena abstratamente cominada ao delito, pois esse seria “o limite
da intervenção estatal, seja a título de pena, seja a título de medida”,
na liberdade do indivíduo, embora não prevista expressamente no Código Penal,
adequando-se à proibição constitucional do uso da prisão perpétua”.

 

Tenho, no entanto,
que a aplicação da medida de segurança não pode servir como alternativa para o
acréscimo da pena, ou que seja mais gravosa do que a própria situação do
imputável que age com plena culpabilidade –seja na hipótese de sua
indeterminação (para contornar a proibição constitucional da pena de caráter
perpétuo), seja na fixação de limites bem superiores ao que, no caso concreto,
seria aplicado se com responsabilidade penal (como os limites mencionados de 30
anos ou do máximo cominado pela pena em abstrato).

 

A medida de
segurança, enquanto medida de natureza penal, também deve manter proporcionalidade
com a infração –sob pena de fazer com que o juiz criminal (que está limitado
pelo fato de natureza penal) atue como uma espécie de tutor de sanidade.

           

Tanto existe a
vinculação íntima entre a medida de segurança e o delito que a decisão que
impropriamente o absolve (mas aplica a medida, reconhecendo a inimputabilidade)
deve apreciar a ocorrência do fato típico e, ademais, a inocorrência de
qualquer causa de exclusão da antijuridicidade.

 

O juiz criminal não é
competente para internar ou manter internado, no contexto de um processo penal,
o inimputável, por mais perigoso que possa ser considerado, se não conclui pela
prática de um fato típico e antijurídico pelo agente. Repisa-se, não cabe ao
juiz criminal a tutela geral da sanidade (ou mesmo do perigo) naquilo que
extrapola ao próprio fato criminal.

 

Neste sentido, se
aplicar indefinidamente uma medida de segurança seria efetivamente uma
infringência à norma constitucional que proíbe a pena perpétua, aplicar a
medida de segurança para além do que seria a sanção do imputável, infringiria
os princípios da igualdade e da proporcionalidade.

 

Como preleciona Paulo
Queiroz “temos que a sentença que aplica medida de segurança há de exigir todos
os pressupostos da pena, devendo-se proceder, inclusive, à individualização
nos termos dos arts. 59 e 68 do Código Penal
, para, em seguida,
substituí-la pela medida por termo determinado, quanto ao tempo mínimo e máximo
de duração, ajustando-a aos princípios constitucionais (legalidade,
proporcionalidade, devido processo legal), tal como vem de proceder, aliás, o
Desembargador Amílton Bueno de Carvalho:

(PROCESSUAL PENAL.
MEDIDA DE SEGURANÇA. PRAZO INDETERMINADO. INCONSTITUCIONALIDADE. PROIBIÇÃO DE
PENAS PERPÉTUAS OU DE outro MODO ABUSIVAS. NECESSIDADE DE READEQUAÇÃO DOS
LIMITES MÁXIMO E MÍNIMO.

 

-É inconstitucional a
indeterminação de limite máximo, bem como, abusivo, prolongado e excessivo o
prazo mínimo para a verificação da cessação da periculosidade do agente,
previstos no art. 97, do Código Penal, à imposição de Medidas de Segurança.

-A Constituição
Federal veda expressamente a imposição de sanção penal que possa assumir
caráter perpétuo ou que possa ser, de qualquer forma, abusiva (art. 5, XLVII e
alíneas) – assim, ancorada nos princípios fundamentais (freios libertários ao
poder punitivo estatal) impõe a maior aproximação isonômica possível entre a
punição de imputáveis e inimputáveis que cometem delitos.

-A dignidade da
pessoa humana, isonomia e mitigação da dupla violência punitiva – dos delitos e
das penas arbitrárias (no dizer de Ferrajoli) – restam, então, aqui
contempladas da seguinte forma: fixação do limite máximo pelo total da pena
estabelecida em cada caso concreto
(igualmente ao que se dá com
imputáveis), bem como, a fixação do prazo mínimo para a verificação da cessação
da periculosidade em 01 ano (como não há dogma sobre a cura de um distúrbio
mental, melhor que se a comece a investigar no menor tempo possível), devendo,
cessada a enfermidade mental, ser o apenado posto em liberdade a qualquer
tempo.

-À unanimidade deram
parcial provimento ao apelo. (Apelação Crime Nº 70010817724, Quinta Câmara
Criminal, Comarca de Cachoeira do Sul, Jorge Eloy Nascimento Barbosa, apelante
e Ministério Público apelado) – (extraído da publicação eletrônica:

 

É o caso, pois, de aplicar-se analogicamente
o raciocínio inserto nos arts. 183, da LEP e no art. 682, §º, do Código de
Processo Penal: que a medida de segurança tenha limite na pena privativa de
liberdade (convertida, nestas hipóteses), de tal modo que eventual não-cessação
da periculosidade, por extrapolar então os limites do direito penal, seja
objeto apenas de análise na esfera cível –como, aliás, sugere o acórdão
paradigma do STF já referido, quando do término do prazo de trinta anos.

           

Mesmo Guilherme Nucci, que discorda da tese
da inconstitucionalidade assentada no STF, reconhece o exaurimento da tutela
penal, quando a questão é a de superveniência da doença mental: Assim,
tendo em vista que na época da infração penal o réu foi considerado imputável,
recebeu do Estado, por consequência disso, uma pena, fixada em montante certo.
Caso tenha havido conversão, é justo que a medida de segurança aplicada
respeite o limite estabelecido pela condenação, ou seja, cumprirá a medida de
segurança pelo prazo máximo da pena. Terminado esse prazo, continuado doente,
torna-se um caso de saúde pública, merecendo ser interditado, como aconteceria
com qualquer pessoa que sofresse de enfermidade mental, mesmo sem praticar
crime
(Código Penal Comentado, art. 97, Ed. RT).

 

Penso que o mesmo raciocínio deva ser
aplicado quando da decisão de internação por decisão originária do juízo
criminal –sendo que, como dispõe o aresto do tribunal gaúcho colacionado, o
limite máximo da tutela penal deve ser o total da pena estabelecida em cada caso concreto.

 

Assim, considerando que a reprimenda seria
fixada em cinco anos de reclusão, considerando a aplicação da pena em seu
patamar mínimo e da aplicação majorada da reincidência, fixo em cinco anos como
máximo da medida de segurança, sem prejuízo do anterior reconhecimento da
cessação de periculosidade nos exames periódicos.

 

ISTO POSTO, julgo a ação penal IMPROCEDENTE
para ABSOLVER VS
e ao mesmo tempo aplicar MEDIDA DE SEGURANÇA DE INTERNAÇÃO EM HOSPITAL DE
CUSTÓDIA E TRATAMENTO,
por PRAZO MÍNIMO DE 1 (UM) ANO E
MÁXIMO DE 5 (CINCO) ANOS,
sem prejuízo da constatação anterior
da cessação da periculosidade, nos termos do art. 386, inciso VI e art. 387,
inciso III, ambos do Código de Processo Penal.

 

[…]

 

(P.
0031473-34.2012.8.26.0050)

 

 
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