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Defensoria Pública ainda é a prima pobre das carreiras jurídicas

Dentre os significativos avanços da Constituição da República está a relevância concedida aos direitos fundamentais, verdadeiro estandarte que abre a Carta Cidadã, e o amplo leque de direitos sociais que a partir dela foram incorporados em nosso ordenamento.
A ênfase nos direitos fundamentais não se dá apenas pela sua amplitude, isto é, pelo rol dos direitos assegurados, mas também pelas garantias às garantias, a consolidação através das cláusulas pétreas, que impedem sua redução ou supressão, e a incorporação contínua de novas normas de proteção aos direitos humanos. O sistema é uma porta aberta permanentemente para os novos direitos e fechada para o retrocesso.
A incorporação dos direitos sociais, a seu turno, segue a lógica do constitucionalismo do pós-guerra europeu, que agrega os direitos humanos de segunda geração, em um caminho típico de um Estado Social-Democrático em direção à igualdade, sem abrir mão das liberdades civis do Estado de Direito, conquistas de primeira geração dos direitos humanos.
Mas, se é verdade que além desta superestrutura de direitos, a Constituição Federal também desenhou uma estrutura jurídica compatível com seu exercício, em especial a formatação de um Judiciário independente e de um Ministério Público autônomo e prenhe de novas competências, também é inequívoco que um dos pilares desta estrutura ainda permanece bamba, duas décadas depois. Refiro-me à Defensoria Pública, instrumento indispensável para o efetivo gozo dos direitos fundamentais de muitos, e porta de entrada para os direitos sociais para aqueles que mais deles necessitam.
As omissões de governantes e dos legisladores têm transformado o Judiciário em órgão ativo na efetivação dos direitos explicitados na Constituição Federal. Cada vez mais, temos nos convencido de que os princípios constitucionais não são letras mortas de pura poesia. Vimos superando, de forma ainda hesitante, mas gradual, os obstáculos impostos pelo positivismo, inclusive a idéia de que a maioria das normas constitucionais não passam de programáticas, de mera intenção. O Judiciário engatinha no sentido de trazer para si a tarefa de tornar vivos os direitos consagrados, mesmo à custa de determinar ao Executivo a realização de políticas públicas, quando indispensáveis à fruição dos direitos.
No entanto, enquanto os direitos fundamentais foram agigantados pela Constituição Cidadã e os direitos sociais passam a ser matéria constante de ações judiciais, eis que a Defensoria Pública ainda é tratada de forma assistencialista, alijando uma plêiade gigantesca de carentes das questões mais emergenciais. Assim tem ocorrido como regra que os mais necessitados são aqueles que menos transformam suas carências (que não são poucas) em ações judiciais. É mais fácil encontrar nos nossos tribunais litígios que os abarrotam envolvendo os consumidores de classe média, como usuários de linhas telefônicas móveis, associados de planos de saúde, pagadores de mensalidades escolares, ou mesmo vítimas de atrasos aéreos, do que questões atinentes aos direitos sociais em sua essência, como à educação pública, atendimento integral na saúde ou acesso a um transporte coletivo em condições aceitáveis.
Tudo isso decorre do pouco caso que os governantes têm dado às Defensorias Públicas, veículos da população carente de acesso à justiça e, por conseqüência, à garantia de seus direitos fundamentais.
O exemplo de São Paulo talvez seja o mais impactante. Criada depois de 18 anos da determinação constitucional, a Defensoria Pública ainda é a prima pobre das carreiras jurídicas. É essencial à função jurisdicional do Estado, diz a Constituição Federal em seu artigo 134, mas, como se vê, não tão essencial assim, pois na maioria das comarcas e em grande parte dos juízos, a função jurisdicional se desenvolve mesmo sem a participação da Defensoria Pública. O número de defensores no estado não atinge 1/3 do de juízes ou promotores (estes estabelecidos em todas as comarcas e varas distritais), para uma população carente na casa de alguns milhões. E a remuneração de seus defensores é incompatível com os similares em outras carreiras, inviabilizando o recrutamento de profissionais da mesma proficiência que juízes, promotores ou procuradores do Estado — a tendência será de um eterno esvaziar, transformando-se em mera etapa de passagem para outras instituições, sem criar em si mesmo e em seus servidores a noção perene de carreira. Como se não bastasse, é compelida, inclusive judicialmente, a manter convênio para contratar advogados terceirizados para cumprir justamente sua atividade-fim, ou seja, advogar para os carentes. Comemoramos a Constituição que mais positivou direitos fundamentais, que mais incorporou direitos sociais, e ao mesmo tempo relegamos para o assistencialismo e a improvisação, o descaso e o desprezo, a instituição fundamental para que tais direitos possam ser exigidos.
Diz o artigo 5, inciso XXXV, da Constituição Federal, que nenhuma lesão ou ameaça de lesão de direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. Mas a inafastabilidade da jurisdição não pode funcionar apenas como norma retórica. A ausência de uma Defensoria Pública autônoma, ou seja não conduzida pelos interesses do Poder Executivo, e estruturada em compatibilidade com seus encargos, exclui da apreciação pelo Judiciário de lesões de direito de um incontável número de pessoas.
Fazer cumprir a Constituição e a ampla gama de direitos nela assegurada, 20 anos depois, também é criar, ou recriar, a Defensoria Pública como instituição que não seja tratada como de segunda divisão apenas porque cuida de pobres. Isso ofende o espírito do constituinte que hoje se homenageia.

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