….O STF e a anistia….

Jurista afirma: não há razão do Estado que permita negociar a dignidade humana.

O artigo que segue é do Procurador do Estado, Marcio Sotelo Felippe*, uma crítica contundente à decisão do Supremo que julgou improcedente a ação ajuizada pela OAB. Segundo ele “Não é possível denominar isto de acordo de transição sem violentar a História”.

O STF e a anistia: o nome da rosa

O Ministro Eros Grau iniciou seu voto condutor no julgamento sobre a lei de anistia com uma concepção doutrinária que lhe é cara: a distinção entre texto normativo e norma. Se o texto normativo diz que “é proibido o trânsito de veículos no parque”, o juiz pode extrair deste enunciado várias normas. Pode dizer que uma bicicleta é um veículo ou pode dizer que uma bicicleta não é bem um veículo. De plano, neste singelo exemplo, já extraímos duas normas de um só texto. O que o juiz faz é optar por uma delas, com base em razões assentadas em valores sociais (que tendem a reproduzir valores expressivos ou dominantes na sociedade), conceitos jurídicos formas, culturais, mas também em sua visão do mundo, concepções filosóficas, formação cultural e – sim, prezado leitor, lamento dar a má notícia – com base também em meras escolhas políticas. Simplesmente opções políticas, que podem determinar (tratando-se de julgamento do STF) tanto o rumo da República quanto o destino de nosso patrimônio, de nossa liberdade, de nossa integridade física, espiritual e cultural como indivíduos ou como povo.

Vamos então dar um salto para a parte final do voto do Ministro Eros. Disse ele: somente o Congresso pode rever a lei de anistia e estabelecer aquilo que a OAB pedia ao Judiciário. Somente o Congresso pode afirmar que os crimes contra a humanidade – torturas, homicídios, desaparecimentos forçados, crimes sexuais, etc. – cometidos pelos agentes do Estado ao longo da ditadura militar não tinham conexão com os crimes políticos e não foram anistiados. O que nos leva a concluir que o Ministro Eros recusou-se a fazer o que o Professor Eros ensina que os juízes fazem: extrair uma norma do texto normativo e julgar. Não há contradição entre as duas pontas do voto. Eros Grau, ao fim e ao cabo, decidiu não decidir. Fechou as portas do Judiciário e nos remeteu ao bispo – no caso, o Legislativo.

Na verdade, isto não seria nenhuma anomalia teórica. Tem um nome e uma longa tradição na história das ideias. O nome da rosa é Razão de Estado, e o leitor logo compreenderá do que estou falando: Maquiavel foi um de seus formuladores. Em determinados momentos da vida de um Estado, as circunstâncias exigem que normas jurídicas, regras morais e preceitos importantes para a convivência social sejam deixados de lado a bem da segurança política. Em suma, o que é central e o que realmente interessa no voto de Eros, deixando de lado razões subsidiárias e recursos retóricos, é este ponto: fez-se um acordo político para a transição para a democracia e, como em todo acordo, as partes entregam uma coisa para conseguir outra. O Judiciário não desfará esse acordo. Ponto final.

Sou amigo do Ministro Eros e sei de sua trajetória e bagagem intelectual como professor e juiz. Mas pessoas honestas e razoáveis podem ter divergências honestas e razoáveis, ainda que profundas e irreconciliáveis, e parte indissociável da ideia de amizade é o respeito às convicções do outro. Sei a força que tem a ideia de Razão de Estado e as razões teóricas que levam alguns a entender que às vezes pode ser justificada, ainda que na imensa maioria dos casos eu tenda a discordar. Intuo como isso pesou em seu voto. No entanto, se vivesse até o final dos tempos não mudaria de ideia sobre duas coisas relativas à ordem de considerações que motivou o Ministro. Uma fática, outra moral.

A fática: a Lei de Anistia não tem absolutamente nenhum resquício deste contexto de transição política e acordo para a democracia, que só teríamos cinco anos depois, quando milhões de brasileiros foram às ruas exigindo eleições diretas (que o regime não deu…). Foi apenas produto de uma estratégia política da ditadura. Jamais de transição para a democracia. Ditada pelo regime militar a um Congresso ilegítimo e impotente, desprovido da elementar condição necessária para pactuar -a liberdade política- sabem até as pedras da rua que o regime militar a promulgou como e quando lhe interessava, visando não a segurança jurídica e política da República, mas a segurança política e jurídica de seus agentes criminosos e a sua própria sobrevivência, para a qual convinha naquele momento um certo afrouxamento diante da resistência e clamor social contra o arbítrio. Não é possível denominar isto de acordo de transição sem violentar a História.

A moral: a partir do Iluminismo, tudo que se construiu para chegar a um estágio mínimo de civilização teve o sentido de impor limites à Razão de Estado. Democracia, direitos e garantias políticas e sociais e direitos humanos são formas normativas de exercer poder junto ao Poder, seja em modo negativo, seja em modo positivo, determinando que o Estado faça ou deixe de fazer. Devemos aqui também dar o nome à coisa. O nome da rosa é dignidade humana. Segundo o conceito filosófico clássico, que devemos a Kant, significa que há formas de tratar um homem que são inadmissíveis em qualquer hipótese. Não tem preço, não tem acordo. Não há Razão de Estado que permita negociar a dignidade humana. O Estado não pode torturar, aviltando no mais alto grau a humanidade do outro. O Estado não pode fazer desaparecer as pessoas, condenando seus próximos a indizível sofrimento e marcando para sempre suas vidas. Se o Judiciário, chamado a dizer que isto tudo não pode omite-se, deixa de cumprir sua básica função constitucional republicana. Instrumentos jurídicos existiam.
O ponto final deve ser sempre a dignidade humana. Nunca houve aquele “acordo”. E se acordo houvesse, seria nulo de diante da cláusula pétrea da dignidade humana a partir de 5 de outubro de 1988.

* Marcio Sotelo Felippe é procurador do Estado (SP), ex-procurador geral do Estado (1995-2000) e ex-diretor da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado (2007-2008), pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo.

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