….Uma sentença humana….

Juiz reconhece o direito à moradia e nega reintegração: “Entre o direito de reaver a posse do imóvel e o direito à moradia e à dignidade, o primeiro deve ser sacrificado”

A sentença que negou a reintegração de posse movida pelo Estado de São Paulo, foi prolatada dia 19 de abril último, na cidade de Atibaia, pelo juiz estadual Marcos Cosme Porto.

Conheça a decisão:

A autora ajuizou a presente ação sem especificar os nomes e as qualificações dos requeridos e alegou que o imóvel descrito na inicial, com área de 30.000 m², foi adquirido por ela junto ao IPESP por meio de instrumento particular de compromisso de compra e venda, em agosto de 1969. Após parcial descrição da área ocupada registrou que os requeridos estão na posse irregular do imóvel, o que caracteriza esbulho a ser corrigido por meio dessa ação possessória.
Mencionou dispositivos legais e lembrou que os bens públicos não estão sujeitos à usucapião, requerendo a reintegração de posse, com a desocupação de todos.
(…)
Resumidamente, resistem à pretensão com argumentos que passam pela carência de ação até a longeva ocupação; falam alguns dos fins sociais do processo e do direito de retenção e indenização pelas benfeitorias; outros tratam de temas como prescrição aquisitiva e ausência de prova da posse ou da propriedade da área por parte da Fazenda Estadual.
(…)
DECIDO.
O Estado de São Paulo ingressou com essa ação em junho de 2006 para desalojar dezenas de famílias que, em sua maioria, estão estabelecidas no local há mais de uma década; algumas, há mais de duas décadas e ali mantém todo o patrimônio que possuem, produzido por investimentos de toda uma vida.
O Estado de São Paulo sustenta sua pretensão nos comandos legais aplicáveis à espécie:
O art. 1.210, do CC, reza:
“O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado”.
O art. 1.208 do mesmo Estatuto:
“Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”.
Dispõe o art. 927, do CPC:
“Incumbe ao autor provar:
I – a sua posse; II – a turbação ou o esbulho praticado pelo réu; a data da turbação ou do esbulho; IV – a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção; a perda da posse, na ação de reintegração”.
Por sua vez, dispõe o art. 102, do CC:
“Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.
O Estado de São Paulo não tem a propriedade do imóvel, mas um contrato de compromisso de compra e venda, celebrado em setembro de 1969 e, além disso, nunca exerceu um ato de posse, mas ainda assim insiste em sua pretensão porque “bem público não pode ser objeto de posse por particular”.
Talvez uma decisão de procedência tenha mais chance de prevalecer, pois o Poder Judiciário Brasileiro ainda não se deu conta da sua efetiva missão, subordinando-se, muitas vezes, a um positivismo estéril.
Entretanto, diante desse conflito, não há como optar pela lei em prejuízo da justiça, cujo valor é o norte do julgador.
Não quer isso dizer que vai aqui uma decisão viciada por posicionamento político ou subjetivista do juiz, pois basta indagar ao homem comum qual o destino justo desse conflito.
O Estado de São Paulo se compromissou em adquirir uma área de 30.000 m² no ano de 1969 e quase quarenta anos depois, sem antes tomar uma só providência para impedir a ocupação sobre o imóvel, pretende tomar a posse do bem, retirando dali dezenas de famílias que estão estabelecidas no local há 15, 20, 25 anos; famílias essas que, legitimamente ou não, ao menos algumas delas, pagaram pelo bem e, pouco importa, para os limites desse raciocínio, se pagaram a quem não era dono.
O fato é que ali se estabeleceram e a pretensão de retirá-los, sem direito de retenção e sem qualquer indenização, após quarenta anos de inércia, lembra muito as intervenções do Estado nazista.
Não há mais espaço jurídico e ético para o positivismo vazio e foi nesse contexto que Jean Paul Sartre lançou: “O Racionalismo expulsou Deus da Terra”.
Como nos ensina Dalmo de Abreu Dallari:
“Essa atitude de apego exagerado às formalidades legais, sem preocupação com a justiça, é uma herança do positivismo jurídico desenvolvido no século dezenove e que, por sua vez, foi uma aplicação degenerada de um preceito muito antigo, enunciado por Platão e desenvolvido por Aristóteles, segundo o qual ‘um governo de leis é melhor do que um governo de homens’. Quando as revoluções burguesas dos séculos dezessete e dezoito enterraram o absolutismo, trouxeram a bandeira do legalismo, que foi exaltada como a garantia da justiça contra o arbítrio. Na obra consagrada de Montesquieu, Do espírito das leis, está presente a ideia de que todos os seres humanos estão sujeitos a leis, que são expressões da razão. Há uma lei política e uma lei civil, não sendo admissível um relacionamento humano fora da lei.
A lei sendo igual para todos e todos ficando subordinados à lei, deve ser o princípio da igualdade e a garantia da liberdade.
Entretanto, a lei de que falavam Montesquieu e os primeiros liberais era a lei natural numa concepção racional, entendida como ‘a relação necessária que deriva da natureza das coisas’. E o que acabou prevalecendo foi a lei apenas formal, fabricada artificialmente pelos Legislativos, sem qualquer preocupação com a justiça, os direitos humanos fundamentais e os interesses sociais”.
Após mencionar a frase de Sartre acima transcrita, prossegue o autor:
“…a subordinação das relações humanas exclusivamente à razão significou também a expulsão dos imperativos éticos…”
É nesse sentido a feliz abordagem feita pelo magistrado Marcelo Semer, em publicação do jornal A Folha de São Paulo, quando abordou a questão referente à obrigatoriedade do Estado financiar medicamentos de alto custo para população de baixa renda:
“Durante longo período, o dogmatismo estabeleceu limites ao Judiciário, como aplicador neutro e apolítico de normas positivas, afastando-o do questionamento sobre valores, como de resto a própria teoria de um direito puro. Não é preciso ir longe para ver o desatino. Bastam as atrocidades praticadas quando nazismo e fascismo vigoraram sob estruturas formalmente legais. No pós-guerra, germinou a idéia do novo constitucionalismo, moldado à luz da dignidade humana e com a incorporação, pelo Estado de bem-estar, de pautas econômicas e sociais.
As novas Constituições passaram a assegurar expressamente o direito à educação, saúde, cultura e outros.
A revanche do positivismo, expressão do conservadorismo jurídico, deu-se com a teoria das normas programáticas, segundo a qual esses novos direitos eram meras “cartas de intenção” e só seriam aplicáveis quando ou se transformados em leis.
Premidos pelos conflitos da vida real, com a insuficiência dos critérios propostos pela dogmática jurídica, os juízes começam a superar armadilhas do positivismo, pelas quais estariam obrigados a aplicar todas as leis, menos as fundamentais, e apreciar todos os conflitos, exceto os políticos.
Devem fazê-lo, sobretudo, por três motivos: a) princípios também são direitos, superiores às leis, pois previstos na Constituição; b) nenhuma lesão de direito pode deixar de ser apreciada, cláusula pétrea que representa o direito aos direitos; c) a função do Judiciário é impedir o abuso de poder, limitando a atuação dos demais poderes aos termos da Constituição” .
Diante desse quadro, resta indagar qual seria, de fato, a consequência prática de uma decisão de procedência para esse conflito.
As dezenas de famílias, que ali investiram tudo o que tinham e que ali residem há mais de duas décadas, seriam colocadas na rua porque ocupam área pública e não tem direito à usucapião.
Observe-se que não se está diante daquelas hipóteses de ocupação clandestina e violenta, recente e muitas vezes financiada por grupos políticos, mas de ocupação longeva, formada ao longo de décadas, sem qualquer oposição.
Por exemplo, L.T. e M.L. adquiriram o terreno por escritura pública, em 1985; G. está no local há 18 anos e A.R.O. está na posse da área desde 1995 e em 1996 construiu sua residência.
Há outra opção e só há uma entidade capaz de dirimir o conflito sem crueldade – o próprio Estado.
Não seria exigir demais que o Estado intercedesse junto às famílias que ocupam essa área, cadastrasse todos, estabelecesse cronograma para recolocação em imóveis construídos em mutirão ou, ainda, indenizasse pelas construções levantadas, tudo acompanhado por assistente social.
Aliás, tendo-se em conta as diretrizes traçadas pela Constituição Federal, seria esse o adequado procedimento, já que o Estado Democrático de Direito, por seus constituintes, se obrigou a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social…
Entre o direito de reaver a posse do imóvel e o direito dos requeridos, à moradia e à dignidade, necessário que o primeiro seja sacrificado em nome dos segundos, mesmo porque se há alguém capaz de dar solução justa ao conflito é o próprio autor; basta que cumpra as diretrizes constitucionais a ele destinadas.
Não foi sem motivo que o juízo ainda tentou, como se supunha, em vão, alertar o Município sobre a questão social aqui apresentada, mas não houve interesse algum.
É certo que os requeridos não podem adquirir a área por usucapião, pois se trata de bem público; a notificação prévia é dispensável, mas o conflito da vida real se estabelece diante de um Estado da Federação, que antes de obter a posse de imóvel que lhe pertence, deve dar destino digno às pessoas que ali estão, sobretudo porque a ocupação ultrapassa duas décadas e em quatro décadas nunca foi praticado ato algum de posse sobre o bem por parte da autora.
Nesse particular, lei por lei, registre-se que não há posse anterior a justificar a ação possessória e sem a transmissão da propriedade não se fala em exercício potencial do direito de posse.
Desprezada a sugestão lançada nessa sentença, no sentido de proteger a dignidade e o pequeno patrimônio dessas famílias, bens protegidos pela Carta Magna, que então forme a autora o título de propriedade para postular a pretensão adequada perante o Estado-Juiz.
Posto isto julgo improcedente a ação e condeno a autora ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios….
Atibaia, 19 de abril de 2010
Marcos Cosme Porto, juiz de direito

2 Comentários sobre ….Uma sentença humana….

  1. Anônimo 24 de janeiro de 2012 - 02:44 #

    Lembro-me do personagem Ivan Ilitch, de Tolstoi, um juiz "exemplar" e formalista, que não observava nada além do oficial e convencional; no fim, parece ter percebido a inconsistência da relação entre o oficial e a vida real, isto é, o primeiro não é de todo e nem sempre aplicável ao segundo, indo mais além, o primeiro é vazio e ineficaz se não considerar o segundo e suas particularidades.

    Lucas

  2. Anônimo 6 de fevereiro de 2012 - 18:36 #

    O Estado de S. Paulo deve recorrer desta decisão em nome de todos os contribuintes e cidadão que vivem no Estado. É necessário reaver a propriedade, pois a Constituição assim garante e tranformá-la num bem de uso público, uma escola, hospital ou o que for. Também é necessário que o Estado indenize estas famílias pela sua ineficiência em impedir a ocupação.