….documentário revela drama de mulheres presas por pequenos furtos….

Documentário retrata drama de mulheres presas por pequenos furtos e escancara a seletividade do Direito Penal

Para ver o documentário, clique aqui

Sueli ficou presa por furtar um queijo branco; ao final da confusão, diz ela, de tanto ser levado de um lado a outro, o produto se esfarelou.

Várias peças de picanha tiradas de supermercados levaram Vânia à cadeia.

Maria Aparecida ficou cega de uma vista, após agressões sofridas durante sua custódia pelo furto de cosméticos.

As histórias reais, ou quem sabe surreais, dessas três mulheres, foram reconstituídas em “Bagatela”, documentário da cineasta Clara Ramos, um dos escolhidos para o projeto DocTV, da TV Cultura.

A partir dos casos que lhe foram trazidos pela advogada Sônia Drigo, Clara cria um interessante painel a respeito das mulheres presas por pequenos furtos, abrindo espaço para uma importante e atual discussão dentro do direito.

O excesso de punição por atos assim singelos, diante da falta de vigilância e fiscalização de condutas mais nocivas, bem explicita o caráter de seletividade do sistema penal. Justifica ainda, em grande parte, a pecha de criminalização da pobreza que se faz ao Estado.

Bagatela, para o direito penal, é o mesmo que insignificância.

Para muitos doutrinadores e juízes, furtos irrisórios estão fora da proteção do direito penal. Embora a lei tutele o patrimônio, quando sua violação é ínfima, não há sentido em utilizar as normas penais que contêm as sanções mais invasivas.

A tese está longe de ser unânime, todavia. Muitas prisões em flagrante ainda são feitas diariamente. Pessoas são processadas e, dependendo de seus antecedentes, condenadas à prisão por esses diminutos atos.

Embora a jurisprudência dos tribunais superiores, incluindo-se o STF, venha acolhendo a insignificância para excluir a bagatela do direito penal, boa parte dos juízes ainda entende que a ausência de uma norma explícita impede a aplicação do princípio.

A maioria dos crimes é cometida por mulheres e, por isso, o retrato que Clara Ramos traça é de uma pertinência perturbadora.

Com suavidade e leveza, o documentário viaja alternadamente pelos dramas das três mulheres e ainda encontra espaço para expor opiniões especializadas. Tive a oportunidade de oferecer a minha, lembrando processo no qual um pintor de parede foi preso pela tentativa de furto de um rolinho que custava R$ 1,67. Foram três anos e meio e duzentas páginas de papel, até que o jovem fosse definitivamente absolvido.

Mas o retrato autêntico por intermédio dos olhos de Clara foge das armadilhas do maniqueísmo.

O documentário aponta as opiniões divergentes sobre o mesmo tema, tanto dos juristas, quanto das próprias envolvidas. Enquanto Sueli e Maria Aparecida se mostram indignadas com a prisão e o processo por tão pouco, Vânia, ainda detrás das grades, admite sua reincidência e demonstra resignação pela consequência dos atos.

Comidas simples, roupas baratas e cosméticos populares são os objetos preferidos dos furtos. Em regra, ocorrem em lojas de auto-serviço, aquelas que contam com inúmeros produtos em prateleiras, à disposição, mas com vigilância disfarçada que, quase sempre, impede a consumação dos crimes. O resultado são acusações por tentativas de furto.

O documentário não julga, mas traz uma preciosa contribuição para quem tem essa tarefa. Descreve quem são, como vivem e o que pensam algumas das destinatárias das decisões judiciais.

As entrevistas contam mais do que os processos conseguem revelar e resgatam o sentido humano que não se alcança facilmente em um julgamento.

Apesar de tratar de situações sempre dramáticas, o filme mergulha de forma delicada nas intimidades de suas mulheres, compondo retratos tocantes e até engraçados. Vê-se uma Maria Aparecida apaixonada pela música da italiana Laura Pausini, a divertida Vânia e o amor que já lhe fez se cortar por seu ‘baixinho’ e a implicante Sueli, que se revolta até mesmo com a advogada voluntária que lhe atende.

O documentário, exibido periodicamente na TV Cultura, vem sendo mostrado a estudantes universitários e outros profissionais do direito, que quase sempre se emocionam nas sessões, sucedidas de um debate. Cumpre, assim, uma relevante função de fazer pensar, além de trazer a vida para dentro das salas de aula e de audiência, mostrando o quanto o direito tem a aprender com a realidade.

Quanto ao tema de fundo, é possível resumir numa única frase a indignação pela movimentação da máquina policial e judicial por coisas de bagatela: é um absurdo que a liberdade ainda valha tão pouco.

3 Comentários sobre ….documentário revela drama de mulheres presas por pequenos furtos….

  1. Daniel 15 de dezembro de 2010 - 16:03 #

    Dr, excelente blog, li todas as matérias da página inicial. Blogs como o seu são verdadeiros achados, continue sempre escrevendo.

  2. Anônimo 15 de dezembro de 2010 - 23:28 #

    De fato, blog como este é verdadeiro achado. No geral reina a mesma coisa, mesmas ideias, (se permite divagar, como na música "Litle Boxes" – tema de Xurupita's Farm – do Pânico na TV: "uma caixa, bem na praça, uma caixa, bem quadradinha, uma caixa, outra caixa, todas elas, iguaizinhas,… as pessoas, destas caixas, vão todas para a universidade, onde entram em caixas, quadradinhas, iguaizinhas, saem doutores, advogados, banqueiros de bom negócios, todos eles feitos de tic-tac, todos eles iguaizinhos…" – música de Pete Seeger, músico, cantor, dos anos 60, comunista até as orelhas… ou melhor, até o banjo). Onde eu estava mesmo? Um blog como este é uma caixa diferente, longe das iguaizinhas que impera em todo lugar, em especial, hoje, no judiciário, que funciona quase que exclusivamente, com estudantes de direitos que leram somente os Mirabettes da vida – não que Mirabette seja ruim, é que é o ponto de vista exclusivo dos promotores de justiça, todos eles iguaizinhos, como caixinhas, tic-tac.
    Ler aqui, é sair do lugar comum, respirar um pouco de vida.
    Veja bem, a gente costuma dizer que hoje a vida não vale nada. Que qualquer marginal está matando por dez reais. Mas esquece que o Estado também pratica as suas violências contra a pessoa humana, muitas vezes, por menos de dez reais… muito menos. A vida, o valor da vida, tá sim valendo mariolas. Basta lembrar que lesões corporiais (graves ou não) só são penalizadas se houver representação da vitima. Coisa desnecessária no furto de uma peça de R$1,67. Basta a tentativa da merreca, pro Estado se movimentar, pro ministério público sair da toca, e os funcionários do judiciário juntarem papéis, papéis e mais papéis.
    É, já lhe ocorreu que os juizes hoje em dia julgam papéis? Julgam palavras? E não pessoas. É uma linha de montagem a construção de processos, um atrás do outro, todos eles, iguaizinhos, quadradinhos, arrumadinhos, tic tac…
    Quando o homem aprendeu a escrita ele transferiu o seu pensamento, o seu sentimento, a sua experiência, para simbolos convencionais. Foi um grande avanço. Aquilo que estava só na sua cabeça, passou a fazer parte do exterior, saiu pra rua, e se estabeleceu em papel, depois em caixas, todos eles, iguaizinhos.
    A escrita permitiu que se partilhassem experiência com uma infinidade de pessoas, e que esta experiência não estava mais limitada no tempo e no espaço, uma vez colocado no papel, a palavra, a letra, o simbolo, pode ser lido por pessoas distantes, por pessoas que ainda não nasceram, por futuras gerações.
    Mas, perdeu-se algo pelo caminho, que hoje até nem damos conta de perguntar. Perdeu-se a humanidade. Perdeu-se, com o simbolo, o rosto da pessoa, o sorriso, o cheiro, as maos calosas, coisas que transformadas em palavras, simbolos, nunca são exatamente como na verdadeiramente são – isso faz uma enorme diferença.
    É fácil pra gente esbravejar e despejar todo ódio nas palavras, no papel, todos eles iguaizinhos.
    Dificil é conviver fisicamente, face-a-face… E, acho eu, será coisa cada vez mais impossível uma vez que as pessoas agora ficam só alojadas em suas casas, todas elas quadradinhas, e vêm televisão ou internet, todos eles iguaizinhos, no conforto e segurança de nossos lares, todos eles tic-tac, enquanto a vida rola e se esvai lá fora, nas ruas, nos quintais, onde o bebê chora e a mamãe não ouve.
    Um abraço a vc e a todos, perdoando-me pelas divagações que me abatem sempre que termino a leitura dos teus textos (Sidney)

  3. Marcelo Semer 16 de dezembro de 2010 - 02:42 #

    Daniel, seja bem-vindo, e permaneça.
    Sidney, grato por me ajudar a construir um blog menos "encaixado". Há uma passagem do Bagatela que me comoveu. A mulher conta que ouviu a notícia da advogada que ia sair o "alvará". Alvará, alvará, e eu lá sei o que é alvará… Aí me dei conta do abismo que existe entre aquele mundo em que nós vivemos e aquele em que as pessoas que julgamos vivem. E o fato de "julgar papéis" representa bem isso. Valeu pelo comentário.