….joga pedra na Geni….

La ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos

A sentença que segue é do juiz André Luiz Nicolitt, de São Gonçalo (RJ) e aborda uma questão atual e controversa: a tipicidade do delito de casa de prostituição sem exploração de crianças e adolescentes.

Citando abalizada doutrina, Nicolitt denuncia a hipocrisia e conclui: “o direito penal não pode considerar crime condutas que mais se aproximam do pecado e tampouco pode considerar crime condutas socialmente adequadas”.

Conheça a íntegra da decisão:

De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
(…)
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
(Chico Buarque de Holanda)

RELATÓRIO

Trata-se de Ação Penal proposta pelo Ministério Público em face de A.M.L e outros, imputando aos quatro primeiros acusados os crimes dos artigos 288, 229 e 230 do CP, ao quinto denunciado o crime do art. 229 do CP e ao sexto denunciado o crime do art. 342 do CP.

Recebimento da denúncia às fls. 313 (segundo volume) com decreto de prisão preventiva do acusado A.M.L e D.L.S.L. Citação … às fls. 364. Defesa prévia … às fls. 411 (segundo volume). Requerimento de revogação de prisão às fls. 415. É o relatório.

FUNDAMENTAÇÃO

Da Imputação

Trata-se de denúncia por formação de quadrilha (art. 288 do CP) para fins de práticas de crimes contra os costumes, notadamente a manutenção de casa de prostituição e rufianismo. Consta, ainda, na denúncia a prática dos crimes do art. 229, 230 do CP e, por um dos acusados, o crime do art. 342 do CP.

A inicial acusatória não relata, concretamente, qualquer outro crime visado pela suposta quadrilha, tampouco o inquérito policial traz qualquer prova mínima do cometimento ou desígnio de cometimento de crimes diversos da casa de prostituição e rufianismo.

Com efeito, impende analisar a tipicidade dos seguintes fatos: casa de prostituição, rufianismo e formação de quadrilha. Por outro lado, o lastro probatório relativamente à casa de prostituição e ao rufianismo é farto.

Cumpre destacar de início que não há imputação, tampouco registro, de exploração de criança ou adolescente, tampouco de aliciamento de trabalhadoras. A imputação cuida da suposta exploração sexual de pessoas adultas e capazes que exercem como atividade profissional a venda de sexo.

Do Juízo de Tipicidade

A doutrina abalizada vem reconhecendo a fragmentariedade do direito penal. Para Figueiredo Dias, a função do direito penal radica na proteção das condições indispensáveis da vida comunitária. Desta forma, só deve incidir sobre os comportamentos ilícitos que sejam dignos de uma sanção de natureza criminal (1).

Nilo Batista (2) nos dá conta de que Binding foi o primeiro a registrar, em seu Tratado de Direito Penal, em 1896, o caráter fragmentário do Direito Penal. O direito penal deve pautar-se, então, por uma intervenção mínima, como ultima ratio.

Além do mais, Hanz Welszel reconheceu no Direito Penal o princípio da adequação social. O professor Francisco de Assis Toledo bem delimita referido princípio afirmando que se o tipo delitivo é um modelo de conduta proibida, não é possível interpretá-lo, em certas situações aparentes, como se estivesse também alcançando condutas lícitas, isto é, socialmente aceitas e adequadas. (3)

Conforme lição de Cesar Roberto Bitencourt (4) o tipo penal envolve uma
seleção de comportamentos e, também, uma valoração, sendo o típico já
penalmente relevante. Todavia, determinados comportamentos típicos
não têm relevância por serem condutas habitualmente sociais. Não
poderia ser de outra forma: se o fato é adequado e admitido socialmente,
não pode ser definido como crime, ainda que na aparência se ajuste ao
tipo.

Com a modernidade, busca-se intensificar o princípio da secularização, segundo o qual se produz uma ruptura entre direito e moral (ou moralidade), destacadamente a moral eclesiástica.

Especificamente no que tange o direito penal, distinguindo crime e pecado.

Com efeito, o moderno direito penal não pode considerar crime condutas que mais se aproximam do pecado, tampouco pode considerar crime condutas socialmente adequadas, como o caso da casa de prostituição e do rufianismo.

Segundo Owen Fiss: the function of a judge is to give concrete meaning and
application to our constitutional values (5) -a jurisdição tem por função atribuir
significado e aplicação aos valores constitucionais(6). Sendo assim, cabe ao
juiz, concretizar valores constitucionais e não consagrar moralidades
eventuais ou mesmo a hipocrisia.

La ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos

Como é sabido, as casas desta natureza estão espalhadas pelas principais capitais do Brasil. No Rio de Janeiro, a famosa “4 por 4” tornou-se até música. As termas Aeroporto distam poucos metros da Ordem dos Advogados, da Defensoria Pública e do Ministério Público, e lógico, do aeroporto Santos Dumont, isto é, próxima de lugares por onde todos do mundo jurídico trafegam cotidianamente .

A Centauros, em lugar privilegiado de Ipanema, é o palco das despedidas de solteiros do high society.

O que distingue estes conhecidos e referidos estabelecimentos do “Club 488” de Alcântara, Bairro de São Gonçalo? O preço dos serviços e o status dos freqüentadores.

Como destaca o ilustre membro do Ministério Público e Professor Lenio Streck citando um camponês salvadorenho: la ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos.

Ademais, a prostituição é uma das profissões mais antigas do mundo e os movimentos sociais (destacamos as ONGs Daspu e Davida) lutam para o reconhecimento e melhoramento das condições de trabalhos destas profissionais, o que, a nosso ver, encontra eco em princípios fundamentais da República, como a livre iniciativa e os valores sociais do trabalho (art. 1º da CRF/88).

O fato é que os supostos crimes para os quais a suposta quadrilha se formou, são condutas socialmente adequadas e toleradas pela sociedade. Desaparecendo os crimes fins (casa de prostituição e rufianismo) desaparece o crime meio (formação de quadrilha).

A matéria não é inédita em nossos tribunais. Da pena do eminente membro do Ministério Público Lenio Streck se extrai primoroso parecer cuja transcrição parcial não se pode abrir mão (parecer emitido na Apelação nº 70.016.475.980 – TJRS):

…o Direito Penal deve ser visto, hoje, sob um novo perfil. Vivemos sob um Estado Democrático de Direito, que estabeleceu um novo modo de produção de Direito. Como bem assinala Márcia Dometila de Carvalho, posição com a qual comungo e que desenvolvi na obra Tribunal do Júri – Símbolos e Rituais, editado pela Livraria do Advogado, o Estado Democrático de Direito, como conceito constitucionalmente
caracterizado, traduz-se em uma forma de racionalização de uma estrutura estadual-constitucional, dotada de um ‘mínimo normativo’, capaz de fundamentar direitos e pretensões. E, se a Constituição e esse Estado Democrático de Direito abrem-se
para transformações políticas, econômicas e sociais, a lei, inclusive a penal, como expressão do direito positivo, deve apresentar-se como corolário necessário deste conteúdo constitucional. Portanto, o redimensionamento do Direito faz-se premente a fim de que o delito venha a corresponder à concepção própria do Estado Social e Democrático que a nova Constituição sanciona, o que significa, ao mesmo tempo, um
processo de penalização de crimes que põem em risco a cidadania, como a sonegação de impostos e de contribuições sociais, o contrabando, o crime organizado, as agressões ao meio-ambiente, etc., mas também um processo inverso de
despenalização e de atenuação de penas bem evidente.

Daí que, diz Márcia Dometila de Carvalho, por esse processo de despenalização, devem ser expungidos do Código Penal, por exemplo, tipos penais como o da casa de prostituição, rufianismo, adultério, etc., não condizentes com o princípio da
tolerância existente no Estado Democrático de Direito, o qual, pondo o Direito Penal a serviço de um marco mínimo de convivência, não se compraz em sancionar penalmente fatos mais afetos à moral. Dito de outro modo, o novo modo de
produção de Direito estabelecido pelo Estado Democrático de Direito produz o fenômeno da secularização do Direito, afastando-se os delitos ligados à moral (ou ao moralismo).

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – TJMG também já decidiu o tema deixando assentado:

CASA DE PROSTITUIÇÃO – ADEQUAÇÃO SOCIAL –
ABSOLVIÇÃO – MEDIDA QUE SE IMPÕE – TRÁFICO
INTERNO DE PESSOAS – PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO
– APLICAÇÃO – ABSOLVIÇÃO – NECESSIDADE –
REFORMATIO IN MELLIUS – POSSIBILIDADE. I – O
Direito penal moderno não atua sobre todas as condutas
moralmente reprováveis, mas seleciona aquelas que efetivamente
ameaçam a convivência harmônica da sociedade para puni-las
com a sanção mais grave do ordenamento jurídico que é – por
enquanto – a sanção penal. II – O princípio da adequação social
assevera que as condutas proibidas sob a ameaça de uma sanção
penal não podem abraçar aquelas socialmente aceitas e
consideradas adeqüadas pela sociedade. III – A prática do crime
de tráfico interno de pessoas destinava-se a ”abastecer” a casa de
prostituição, em tese, mantida pela apelante. Ou seja, o primeiro
encontra-se umbilicalmente ligado ao segundo, sendo que
reconhecida a impossibilidade de se punir o mais abrangente,
deve ser o mesmo procedido quanto ao outro, já consumido. IV
– É plenamente possível a reforma da sentença em benefício do
réu, ainda que se trate de recurso exclusivo da acusação, em
virtude do princípio da reformatio in mellius. APELAÇÃO
CRIMINAL N° 1.0051.05.014713-4/001

Com efeito, impende absolver os acusados, sumariamente, dos crimes de formação de quadrilha, casa de prostituição e rufianismo. Mantém-se o feito tão somente em relação ao crime do art. 342 do CP, imputado ao acusado C.E.

DISPOSITIVO

Isto posto, ABOSOLVO OS ACUSADOS …. dos crimes dos artigos 288, 229 e 230
do CP, com fulcro no artigo 397, inciso III do CPP. Renove-se o ato citatório do acusado C.E.C.G. para responder pelo crime do art. 342 do CP.

Por conseguinte, revogo as prisões preventivas. Expeçam-se alvarás de soltura. Anote-se e comunique-se, sem custas.

PRI. Após o trânsito, deixe baixa em relação aos acusados absolvidos.

São Gonçalo, 06 de abril 2011.

ANDRÉ LUIZ NICOLITT
Juiz de Direito

Acontece que a donzela
– e isso era segredo dela –
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni
(Chico Buarque de Holanda)

(1) DIAS, Jorge de Figueiredo. Direitos Penal Parte Geral Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 16.
2 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, s/d, p. 84-90.
3 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.
131.
4 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, v.1. 11. ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p.19.
5 FISS, Owen. The forms of justice. Harvard Law Review, Cambridge, Harvard University Press, v.93, p.
04.
6 No Brasil temos a lição de: MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT,
2006, p. 105 e no processo penal: NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2010, p. 11-24.

Um comentário sobre ….joga pedra na Geni….

  1. Tiago Felipe 7 de junho de 2011 - 20:29 #

    Excelente Decisão!

    Alguns dias atrás, no Estado de Goiás, um magistrado extinguiu uma ação de cobrança movida por uma mulher face a um homem. Disse que a dívida seria oriunda de prostituição e portanto o pedido seria impossível, posto que imoral.

    Ele acabou escravizando a jurisdicionada, pois a obrigou a trabalhar gratuitamente. Um absurdo!