….Tribunal Popular e reforma agrária….

Tribunal Popular julga omissão do Estado na Reforma Agrária

O Diretório Acadêmico XXI de Abril (Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia) realizou em 18 de junho um Tribunal Popular em sua Jornada Jurídica. Estudantes e entidades da sociedade civil discutiram Direito e a luta pela terra.

Em julgamento, o Estado brasileiro e sua omissão na Reforma Agrária.

Leia a seguir, a sentença do Tribunal Popular, proferida pelo juiz Alberto Alonso Muñoz*

O Estado Brasileiro foi denunciado perante o Tribunal Popular porque estaria descumprindo o Direito Humano Fundamental ao acesso à propriedade fundiária agrária. Em particular, porque, apesar do evidente caráter improdutivo dos imóveis rurais “Fazenda Inhumas” e “Fazenda Cabaça”, estaria tergiversando no processo de desapropriação dessas glebas. Esses exemplos demonstrariam que o Estado Brasileiro estaria deixando de cumprir o Direito Fundamental de todos os seres humanos à vida, à saúde, à habitação, ao trabalho e, acima de tudo, à dignidade, na medida em que vem deixando de cumprir seu dever de assegurar aos que necessitam a terra que pretendem cultivar e produzir. Ademais, estaria procedendo à criminalização dos movimentos sociais que lutam pela distribuição justa da terra, e também se estaria omitindo em apurar, processar e condenar os autores de crimes praticados contra aqueles que lutam pela reforma agrária.

Realizados os trabalhos na data de hoje, a acusação e a defesa apresentaram suas teses perante o Conselho de Sentença. O Tribunal, por unanimidade, CONDENOU o Estado Brasileiro. Diante da soberania de seu veredicto, passo a considerar qual será sua pena, mas não antes de fundamentar meu convencimento.

Primeiramente é preciso lembrar que é a Constituição Federal, a lei máxima do Brasil, quem estabelece o direito de propriedade. Sim, a propriedade é garantida no Brasil. Mas a própria Constituição, ao garantir o direito de propriedade, rapidamente se apressou em dizer que há uma condição para ser titular da propriedade: só pode haver propriedade, de qualquer espécie, se ela atender a sua função social. Este é um Direito Humano Fundamental: o direito à propriedade, mas apenas se satisfeita a condição de atingir sua função social.

Muitos restringem a função social ao cumprimento de exigências legais. As exigências são razoáveis. São elas o respeito à legislação ambiental, o cumprimento da legislação trabalhista, a produtividade da terra, a vedação de cultivo de drogas.
Embora razoáveis, essas condições não podem ser vistas como únicas. Aliás, o fato é que mesmo descumpridas essas exigências mínimas para caracterização da função social da propriedade da terra, esta continua a ser inconstitucionalmente assegurada e garantida pelo Estado brasileiro, especialmente pela via da omissão e das diversas delongas nos processos de desapropriação. É preciso lembrar, porém, que estas são condições mínimas da função social da propriedade. É preciso ir além e examinar mais amplamente o conceito de função social da propriedade, que não se deve restringir a essas poucas condições.

Não é produtiva uma propriedade agrária que, ainda que respeitada a legislação trabalhista, ambiental e as normas de produtividade da terra, se destina à produção de produtos primários para a exportação. O agronegócio, a monocultura exportadora, a produção agrícola e pecuária voltada para o mercado externo, cumprem sua função social? Evidentemente que não. Não é justo, não é razoável, não é legítimo que grandes glebas de terra sejam destinadas ao plantio de soja, cana, laranja, produtos tropicais ou a pastagens para a engorda de reses bovinas, todas destinadas ao mercado externo, ainda que sejam respeitadas as exigências legais — o que, sabemos, nem sequer o fazem na maioria das vezes.

Produtos agropecuários destinados ao mercado interno, resultantes de uma agricultura independente das grandes multinacionais fornecedoras de sementes, insumos, cultivares e defensivos agrícolas, buscando harmonia com o meio ambiente, buscando meios e técnicas produtivas que recorrem à mão-de-obra intensiva, a procedimentos orgânicos, destinando-se ao sustento da família que produz e da comunidade em que se insere — esse tipo de agricultura e pecuária, sim, respeita a função social, e não apenas aquela que não descumpre algumas regras mínimas de proteção ambiental, a legislação trabalhista ou o mínimo de produtividade da terra.

Além disso, é necessário lembrar que a criminalização dos movimentos sociais sempre foi a principal maneira de as classes dominantes procurarem conter as demandas sociais. É pela intimidação, fazendo muitas vezes com que seus membros percam a vida, que se tem cuidado da “questão social” no Brasil e no mundo. Dizia um Presidente da República Velha: “questão social é questão de polícia”. O movimento operário já teve de enfrentar a greve como crime no século XIX e XX, punível até mesmo com a morte. Ainda hoje a mídia, que no Brasil constitui um oligopólio, constrói uma imagem da greve nos meios urbanos como transtorno organizado por baderneiros, e não como o legítimo direito à luta pela plena efetividade de direitos e pela conquista de novos direitos — um direito a ter direitos.

Quando se cuida da luta pelo acesso à terra, a violência é a regra, realizada quer pelo Estado, ativa (reintegrações de posse) ou passivamente (deixando de apurar, processando e condenando os integrantes dos movimentos), quer pelas classes dominantes através da violência direta.

No caso do governo brasileiro tem faltado vontade política para avançar na luta das demandas sociais. Não basta o discurso: é preciso querer formar um arco de alianças com todas as forças progressistas do Brasil para que as mudanças possam ser implementadas. Lamentavelmente o que temos visto é que, para utilizar uma expressão de Frei Betto, muitas vezes o governo deixa um projeto de Brasil para desejar apenas um projeto de poder. Num quadro como esse, a luta dos movimentos sociais se torna ainda mais importante, ainda mais premente: é apenas não apenas sensibilizando os governantes, mas sim forçando-os a movimentar-se politicamente no atendimento das demandas sociais.

Por todo o exposto,

CONSIDERANDO que o Estado Brasileiro tem deixado de cumprir as determinações da própria Constituição Federal e dos Tratados e Convenções Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, a saber, a exigência de que a propriedade cumpra sua função social mínima;

CONSIDERANDO que o Estado Brasileiro tem deixado de cumprir sua determinação constitucional de realizar a reforma agrária de modo efetivo;

CONSIDERANDO que a função social da propriedade não pode limitar-se ao cumprimento de exigências mínimas de produtividade, e respeito à legislação trabalhista e ambiental, mas também deve cumprir o dever de seus produtos destinarem-se a todos e, em particular, o produto da terra deve voltar-se ao sustento daqueles que a cultivam e da comunidade brasileira, fomentando-se a agricultura familiar e preservando a segurança alimentar de todos no País;

CONSIDERANDO que o Estado Brasileiro tem procedido à criminalização dos movimentos sociais, numa visão policialesca da questão social em todas suas dimensões, ao mesmo tempo que se tem omitido na apuração dos crimes praticados contra seus membros;

CONSIDERANDO, por fim, que as classes dominantes no Brasil, ao longo de sua história, têm-se valido da violência, real, moral e simbólica para lidar com as demandas sociais,

1.º) DECLARO que o Estado Brasileiro é CULPADO pelo retardamento no avanço da reforma agrária;

2.º) CONDENO o Estado Brasileiro pela criminalização dos movimentos sociais e pela omissão na apuração dos atentados contra os membros que lutam pela plena implementação dos Direitos Humanos no país;

3.º) CONDENO as elites brasileiras pela brutalidade míope que têm empregado no tratamento das demandas sociais, tratamento míope, imediatista e violento, e que, deixando de considerar o outro como um ser humano dotado de dignidade, apenas nele vê o criminoso, ou um ser que, despojado de sua humanidade, apenas merece a execução.

Que a sociedade brasileira e o Estado Brasileiro cumpram com seus deveres éticos e constitucionais, o que nada mais significa do que assegurar plenamente todos os Direitos Humanos Fundamentais para todos os seres humanos no Brasil, sejam eles ricos ou pobres, inocentes ou culpados, homens ou mulheres, trabalhadores rurais e trabalhadores urbanos, homossexuais, negros, estrangeiros, portadores de deficiências, idosos, crianças e adolescentes, estudantes ou lideranças sociais.

Todos, sem exceção: todos os Direitos Humanos para todos os seres humanos no Brasil!
Cumpra-se esta sentença.

Dada em Uberlândia, no dia 18 de junho de 2011.

Alberto Alonso Muñoz

Juiz Presidente do Tribunal Popular
para o julgamento ético da questão agrária no Brasil

*Juiz de Direito em SP, secretário do Conselho de Administração da Associação Juízes para a Democracia

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