….a imprensa, a justiça e a imagem dos presos….

a pretexto de documentar ou criticar um vazamento a imprensa acaba por fazê-lo existir

Outro dia assistia num quarto de hospital a um desses programas policiais de fim de tarde, em que os apresentadores gritam e denunciam barbaridades, ao mesmo tempo em que deliciam seus ibopes divulgando-as.

O caso era de uma criança de 5 anos, flagrada no interior de um baile funk.

Durante cerca de quinze minutos, apresentador e comentarista criticavam a exposição de uma criança tão pequena a um ambiente tão vulgar –ao mesmo tempo em que a imagem repetia freneticamente o rebolado de uma dessas mulheres-comida que o marketing sexista produz toda semana.

O comentarista criticava o excessivo hedonismo de quem apenas se preocupa com a exposição do corpo –voz ao fundo, pois a imagem da mulher rebolando, em trajes mínimos, não parou um só minuto.

Algo como: olhe bem aquilo que não se deve mostrar.

Uma espécie de “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, porque se é para não expor crianças ao que entende como vulgaridades, melhor seria não mostrá-las no meio da tarde, não é mesmo?

Um sentimento similar me ocorreu ao ver as fotos de presos provisórios da última operação da Polícia Federal na primeira página da Folha de S. Paulo –e na página do meio do caderno de política do Estadão- encabeçando matérias que reproduzem críticas sobre a exposição de presos. Parece que a imagem tinha saído primeiro na capa de um jornal do Amapá.

É certo que só se pensa na exposição da imagem do preso, quando ele tem alguma “imagem” a zelar. Só quando a classe alta vai ao inferno, se reclama da existência do Diabo.

Já foi assim quando um empresário foi preso nos anos 80 e sua identificação datiloscópica (“tocando piano”) foi fartamente exibida pela imprensa. O fato resultou na proibição constitucional de se colher na delegacia as digitais de quem se identifica com documento e acabou por gerar inúmeros processos e prisões de pessoas erradas, porque alguém portava suas carteiras no momento em que foram presas.

O mesmo ocorreu com o emprego de algemas, que levou até a edição de uma Súmula Vinculante, suscitada pela prisão temporária de empresários, embora as algemas sejam fartamente utilizadas no cotidiano de presos pobres.

Mas convenhamos, se é um abuso mostrar a figura de presos provisórios sem camisa com uma placa com seu respectivo número de identificação na polícia, como forma de punir pela humilhação –porque é que os jornais as reproduzem?

O vazamento das fotos dessa natureza pode até ser de responsabilidade da polícia –mas sem a publicação pelos jornais, o vazamento seria absolutamente inócuo.

A pretexto, então, de documentar, de descortinar o abuso, ou até mesmo de criticá-lo, a imprensa acaba justamente por fazê-lo existir.

É possível lavar as mãos depois?

E já que a defesa dos direitos se inicia mesmo quando os de cima são feridos, não será o caso, então, de aproveitar a situação para recolocar em discussão o tema do abuso de imagens de presos, cotidianamente mostrados como animais abatidos pelo sensacionalismo de plantão?

E aqui retornamos aos programas mundo-cão do fim da tarde, cujos princípios, métodos e estilos, verdade seja dita, cada vez mais se espalham pela ‘imprensa tradicional’.

Fica a dica para um tema que anos atrás chegou a ser regulamentado pela Justiça na cidade de São Paulo: imagens de pessoas presas só podiam ser exibidas com a autorização simultânea do próprio preso e do juiz responsável.

7 Comentários sobre ….a imprensa, a justiça e a imagem dos presos….

  1. AF Sturt Silva 14 de agosto de 2011 - 15:16 #

    Bom, os abusos são grandes.A record, por exemplo reproduzem em seus programas todo esse tipo de exibição violenta.Sempre é do mesmo jeito.E sempre é muito exagerado!

    Até que ponto isso ajuda a solucionar o problema?

    E quais as conseguências negativas desses atos de sensacionalismo?

    É um debate que tem ser encarado pela sociedade com toda certeza…

  2. Anônimo 14 de agosto de 2011 - 15:17 #

    Coincidência ou não, também estava pensando no quanto a imprensa é voraz em demonstrar o quanto a lei é continuamente transgredida e o quanto o Brasil é o país da impunidade.
    No entanto, quando pessoas poderosas são presas, parece-me que há um silêncio da imprensa muito grande. Penso nisso porque fiquei sabendo agora – com a morte da juíza Patrícia Acioli – do número de prisões que ela havia decretado justamente contra pessoas que normalmente se acham acima da lei.Por que há esse silêncio da imprensa? Porque fazer respeitar a lei não vende jornal?

    Helena

  3. Diego Francisco Noleto Nunes 14 de agosto de 2011 - 15:51 #

    Muito interessante sua posição, por que o direito a privacidade e a imagem e lembrado apenas para alguns …

  4. Bruno Morais di Santis 14 de agosto de 2011 - 20:47 #

    O problema da exposição midiática de casos policiais é um tema ainda pouco suscitado nos bancos acadêmicos e no mundo profissional jurídico. Alguns pensadores do assunto aludem a casos que tiveram grande repercussão na mídia para mostrar a condenação prévia e sem fundamentação que os meios de comunicação impõem à réus que, diga-se de passagem, são inocentes até que se prove a verdade.
    Me recordo do caso "Nardone" onde o Dr. Roberto Podval teve – na prática – que discutir a pena, pois a condenação fora imposta durante os meses de exposição na mídia. Em entrevista à revista Carta Capital, o advogado fala sobre as agruras do caso e suscita que esta exposição seja objeto de estudos sociológicos.
    Outro fator que deflagra a indignação é o fato de atitudes serem tomadas somente quando se tem uma "imagem a zelar" ou quando se tem recursos pra dispor de grandes causídicos, o que demonstra, sob este prisma, a total falta de democracia neste sentido.
    Acredito que deveria haver mais regulamentação por parte do Estado neste sentido, não ao ponto de censura, mas ao ponto que isto que não deflagre nenhuma injustiça ou prévia condenação.

  5. ♪ ewerton M. 14 de agosto de 2011 - 21:45 #

    @Cabe_Monteiro,

    Muuutio bom, muito bom! merece sim um post exclusivo. Aliás eu tenho um texto falando sobre isso… O hrror que é esses programas e como eles expõe a privacidade alhiea e violam o direito de imagem das personas.

    Parabéns mais uma vez mestre.

    😉

  6. Anônimo 15 de agosto de 2011 - 00:48 #

    O que mais é hipócrita no nosso país é esse discurso ambíguo, pois quando estamos falando da mais alta casta da sociedade brasileira o tema é debatido de uma forma, mas quando são pobres e favelados a análise se dá por outra ótica. Nosso ordenamento jurídico e político ainda precisa avançar muito, pois agimos cotidianamente como hipócritas. (kassio costa)

  7. Ivan de Sampaio 15 de agosto de 2011 - 04:09 #

    Me parece que no fundo trata-se de uma política do espetáculo. Buscam transformar o delito num grande espetáculo público para disseminar tanto o medo do perigo, quanto formar um esteriótipo do individuo criminoso.
    É mais ou menos a mesma lógica de quando invadiram o Morro do Alemão no rio. Cheguei até a escrever sobre isso na época falando justamente do aspecto "espetacular" de uma ação como aquela. Segue o link: http://desmontadordeverdades.blogspot.com/2010/12/irracionalidade-de-estado.html
    Acho que num momento como esse, para todos nós vale ler aquele livrinho do Guy Debord A Sociedade do Espetáculo.

    Abraço

    Ivan de Sampaio
    Blog: http://desmontadordeverdades.blogspot.com/