….Venezuela: concessão de TV e liberdade de expressão….

Caso venezuelano expõe potencial lesivo de meios de comunicação estruturados em oligopólios

O artigo que segue é do juiz paulista André Bezerra* e avalia, cinco anos depois, o processo de não renovação da concessão da RCTV venezuelana.

André, que obteve título de Mestre pelo Prolam/USP justamente com a dissertação “Liberdade de Expressão na Venezuela e no Brasil a partir do caso da RCTV”, conclui que a liberdade de expressão não foi suprimida pelo procedimento de não-renovação (“a mídia privada mantém-se como porta-voz do discurso opositor”) e se justificou diante da assunção da rede de televisão de
um papel de aparelho privado de hegemonia, com decisiva participação na tentativa de golpe de Estado.

Para o magistrado, “um caso como o da RCTV traz a memória o potencial lesivo de meios de comunicação estruturados em oligopólios e a necessidade de o Estado compelir emissoras prestadoras de serviço público a observar em sua programação o interesse público”, como, inclusive, previsto no artigo 221 da Constituição brasileira de 1988.

RCTV, cinco anos depois: a liberdade de expressão na Venezuela

Em maio passado, completou cinco anos a tomada de uma das medidas mais polêmicas pelo controverso governo venezuelano presidido por Hugo Chávez: a não renovação da concessão da emissora empresarial de televisão Radio Caracas Televisión, a RCTV.

O fato de uma emissora privada ter sido impedida de exercer a atividade que desde 1953 realizava (era a mais antiga da Venezuela) ensejou sérias dúvidas acerca dos rumos da democracia do
país. Tornou-se corrente a opinião, especialmente a veiculada pela grande mídia brasileira, de que tal medida consistiria em ato irreparavelmente violador da liberdade de expressão, podendo
levar a Venezuela a sucumbir frente a um regime despótico, tal como aqueles vigentes no Leste Europeu durante a Guerra Fria.

Uma análise mais detida do caso e da situação política venezuelana do final do século passado até os dias atuais, contudo, não confirma esse temor. Pelo contrário, conduz a uma conclusão oposta.

Nesses termos, é preciso voltar no tempo, lembrando que Hugo Chávez alcançou a presidência venezuelana por eleições livres e democráticas, tendo seu primeiro mandato iniciado em 1999. Em 2002, tal como tantos outros governantes da América Latina no decorrer dos séculos, sofreu duas tentativas de golpes de Estado: a primeira em abril, quando foi preso por forças ligadas à oposição e a segunda, em dezembro, quando sofreu uma greve patronal que paralisou a economia do país. Tudo isso, sob forte propaganda dos principais meios de comunicação empresariais, inclusive a RCTV, que, como verdadeiros aparelhos privados de hegemonia (na acepção dada à expressão pela sociologia gramsciana), promoveram apoio aos grupos opositores que lutavam pela derrubada do presidente democraticamente eleito.

Diante dessas circunstâncias e fracassados os golpes, no mês de janeiro de 2003, em um clima de absoluta normalidade institucional e sem que as liberdades públicas fossem suprimidas, o Ministério da Infraestrutura instaurou processo administrativo visando a apuração de infrações praticadas pela RCTV.

O início do processo se deu mediante a publicação de um auto de abertura, no qual foram descritas uma série de irregularidades praticadas pela emissora ao longo do tempo, determinando-se, ainda, a notificação da investigada para apresentar defesa – conforme os ditames do devido processo legal. Concluída a apuração e restando comprovadas as irregularidades praticadas pela empresa (desde a violação dos direitos de crianças e adolescentes em sua programação regular até a efetiva propaganda golpista em 2002), decidiu-se pela não renovação da respectiva concessão.
Note-se que o governo venezuelano não determinou o fechamento de nenhum jornal opositor, muito embora os impressos mais tradicionais do país (como os El Universal e El Nacional) tenham apoiado as tentativas de golpe de Estado de 2002.

A atuação do governo recaiu sobre uma emissora de televisão, isto é, uma concessionária de serviço público e que, em tal condição, jamais poderia fazer uso de um bem público, o espectro de radiofrequência, em desconformidade aos valores democráticos previsto na Constituição.

Importante ainda assinalar que tal medida não intimidou o trabalho de empresas de comunicação e de profissionais do jornalismo. A cobertura de matérias criticas ao governo, essencial à vigência da liberdade de expressão, resiste meia década após o término da concessão da RCTV.

Quem folheia diariamente os principais jornais do país, verifica que a divulgação do discurso oposicionista pela mídia perdura de maneira semelhante a que ocorria antes dos golpes. Quem, da mesma forma, assiste a um programa como o Aló Ciudadano, veiculado pela emissora de televisão e concessionária de serviço público Globovisión, testemunha diariamente entrevistas realizadas em quase sua totalidade com opositores ao governo. Isso, em um ano eleitoral como o de 2012,
no qual a mídia privada mantém-se como porta-voz do discurso opositor, agora representado pelo governador do Estado de Miranda, Henrique Capriles, o candidato anti-chavista à presidência da república.

É evidente que sempre existe a possibilidade de o governo fazer uso de ações como a da RCTV na forma de estratégia de eliminação da mídia independente. Como já dizia o federalista
norte-americano James Madison, os homens não são governados por anjos. Todavia, o que se tem, nesse específico caso, é uma providência favorável à democratização do país, em uma Venezuela de há muito formada por populações sujeitas ao trabalho de opinião pública de reduzidas empresas de comunicação altamente capitalizadas e, ainda que prestadoras de serviço público, comprometidas apenas com interesses hegemônicos de grupos políticos e econômicos.

Espera-se, por fim, que a legitimidade de tal medida, confirmada cinco anos após a sua tomada, leve à reflexão do quadro vigente em solo brasileiro. Isto, não necessariamente na prática de atos tão enfáticos, até porque nas últimas décadas, o Brasil não conheceu tentativas de golpes como a Venezuela.

O que se quer dizer é que um caso como o da RCTV traz a memória o potencial lesivo de meios de comunicação estruturados em oligopólios e a necessidade de o Estado compelir emissoras
prestadoras de serviço público a observar em sua programação o interesse público, tal como previsto no artigo 221 da Constituição brasileira de 1988.

*André Augusto Salvador Bezerra, juiz em São Paulo, membro da Associação Juízes para a Democracia, é mestre pelo Prolam/USP

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