….Marianna, apenas uma garota latinoamericana….

 

 

 

 

Ficamos juntos todo o ano de 1987, ano em que aprendemos a
nos amar. E como ficamos juntos por muitos anos depois, gosto de dizer que 1987
é um ano que não terminou

 

 
 
            No começo
era só política. Ou pelo menos assim que eu entendi. Marianna me dizia que era
preciso escolher um lado e arcar com os ônus da opção –e eu estava certo que
ela queria dobrar minha relutância e tentava convencer-me a votar de novo no
PMDB, em 86. Ela insistia para que eu alavancasse minha autoestima e eu apenas
intui o seu otimismo na disputa do XI de Agosto. E por aí a gente prosseguia
numa histriônica conversa de surdos. Não via um palmo adiante do meu nariz e
ela ainda não tinha esta coragem toda para se aproximar mais do que isso.
 
            Então eu
devo à política o fato de ela ter me levado para tão perto da Marianna. Perto o
suficiente para que eu pudesse conhecer e apreciar suas inúmeras qualidades. Ela
era boa conselheira, mas nem por isso menos despretensiosa. Suas certezas
advinham de uma sabedoria que unia simplicidade e sinceridade e quase nenhum
arrependimento. Ela era decidida e despreocupada. Eu achava que com aquele
otimismo todo ela ainda não sabia que eram demais os perigos dessa vida. E,
portanto, iludida e esperançosa, como eu bestamente me orgulhava de não ser
mais, não devia dar-lhe tantos ouvidos. Resisti uma ou duas vezes, mas depois,
como era de costume, obedeci. E não me arrependi jamais. Pois ainda quando não
parecia, quando tudo podia indicar o contrário, ela esteve sempre certa. Não me
lembro de uma só vez que estivesse errada em todo o caminho que percorremos
juntos, embora confessá-lo represente um custoso exercício de autocrítica.
           
            Havia uma paz de espírito nela a que
eu definitivamente não estava acostumado e com a qual demorei muito a me acostumar.
As mulheres da minha vida podiam ser divididas em dois grupos: aquelas pelas
quais me apaixonei e aquelas que por mim se apaixonaram. E nem é preciso dizer
que os conjuntos não se relacionavam, não havia uma só pessoa que fizesse parte
dos dois. Pelo menos não ao mesmo tempo. Parafraseando inconscientemente
Groucho Marx, não dava valor às mulheres que me aceitavam.
           
            Tudo isso acabou com a Marianna.
           
            Ou melhor dizendo para evitar
ambiguidades a Marianna acabou com tudo isso. Porque entre tudo isso e a Marianna, a Marianna ganhava de goleada.
           
            A princípio abriguei-me a seu lado
pela causa. Tínhamos em comum um espírito revolucionário latente de quem queria
viver para mudar o mundo. Estar juntos podia ser uma estratégia política. Mas
não era, como fui descobrindo ao me descobrir. Eu fingia me preocupar com o
útil, mas no fundo estava ansioso pelo agradável. Os laços de amizade iam se tornando
mais fortes, quanto mais se pavimentava a confiança entre nós. Desde Fortaleza,
nos acostumamos a falar quase que diariamente. Aquilo foi virando um vício e
sem saber eu fui me tornando dependente dela.
           
É verdade que tinha havido o fim de
tarde no ônibus de volta. Eu estive a milímetros de convidá-la a um beijo, mas
a libido de todos esteve solta enquanto o ônibus girava e voltamos ao normal no
trópico de Capricórnio. No dia das bruxas na Faculdade, a Mara, amiga comum,
bem que tentou fazer as vezes de cupido e conspirava nos alertando, a ambos
isoladamente, de um certo clima que rolava no ar. Mas eu mantive uma distância
regulamentar com medo de perder uma grande amiga. Já me bastou a Ana para
trocar as bolas no momento errado. Mas lá, suspeito hoje, era mais despeito que
paixão. E foi justamente a vergonha sofrida que por vias transversas me liberou
da dúvida cruel que corroeu meu pensamento anos a fio.
           
            Bom, eu demorei a perceber que havia
mais, muito mais na amizade com a Marianna, do que apenas a amizade e que esta
exigia mais –e não menos- de nós mesmos. Ela estava lá esperando, quando fosse
a minha hora, o meu momento de entender o que já sabia faz tempo. Quando
naqueles instantes de semiconsciência, eu supus que poderia tê-la perdido,
entendi o valor e a falta que ela me fazia. Foi no meio da noite, tentando
provar a mim mesmo e aos guardas minha sobriedade, que eu a vi por inteiro onde
eles só viam loucura. Longilínea, de pele clara, longos cabelos pretos lisos,
que deslizavam pelas costas, nariz pronunciado, lábios finos e precisos e olhos
verdes extraordinariamente amendoados. A ideia de rever este corpo foi tomando
conta de mim aos poucos. E foi aos poucos, bem aos poucos como era meu jeito,
que eu a peguei no meio de uma festa e a rodeei, e a olhei, e a toquei, até que
ela caísse nos meus braços, uma ou duas horas depois, já fatigada pelo excesso
de zelo.
           
            Marianna era apenas uma garota
latino-americana sem dinheiro no banco. E isso não importava a mínima para ela.
Ela tinha mais, tinha personalidade. Era estudiosa não por dever de ofício, mas
pelo prazer que o conhecimento lhe despertava. Quando instada a fazer política,
abriu-se numa enorme satisfação e descortinou seu imenso tirocínio até então
ignorado. Enquanto a maioria de nós estudava inglês ou francês, pensando no
mercado, ela quis aprender espanhol. Mas não por causa de flamencos, castanholas
ou paellas. Reagia ao imperialismo cultural como ninguém. Ela se emocionara com
as Veias Abertas de Eduardo Galeano,
vivia ouvindo Raíces de América e cantando como Mercedes Sosa. Foi dela a idéia
de me vestir de Che Guevara para a
última peruada e depois me acompanhou balbuciando os versos de Guantanamera,
que sabia como ninguém. Exultante, sentiu-se recompensada quando Quércia inaugurou
o Memorial da América Latina. Era mais que uma simples mulher, ela era um continente
no qual eu deliciosamente me perdia. E vivan los pueblos americanos.
           
            Nós estávamos juntos quando
emocionados ouvimos por três horas Luis Carlos Prestes na sala do Estudante.
Estávamos juntos colhendo assinaturas para emendas populares entre idosos,
religiosos e carentes. Estávamos juntos fazendo discursos em fins de tarde chuvosos
para quase ninguém ouvir, no centro da cidade. Porque nós ficamos juntos todo o
ano de 1987, ano em que aprendemos a nos amar. E como ficamos juntos por muitos
anos depois, gosto de dizer que 1987 é um ano que não terminou. Gracias a la
vida, que me ha dado tanto.
 
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